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Dossiê John Huston
Clássicos de Prestígio

Relíquia Macabra
Direção: John Huston
The Maltese Falcon, EUA, 1941.

Por Gabriel Carneiro

Havia visto Relíquia Macabra há mais ou menos um ano e meio. Gostei muito apesar de ter ficado com um certo gosto de decepção. Vendo obras tão genuínas e brilhantes do cinema chamado noir, esperava mais do seu, provavelmente, maior precursor, o primeiro filme de John Huston como diretor. Como me encarreguei de escrever sobre tal película, procurei o rever, e o fazendo cheguei a uma conclusão. O bom filme, bom mesmo, é aquele capaz de provocar diferentes sensações numa pessoa. E que delícia foi reassistir a O Falcão Maltês – título original, tendo sido lançado sob tal alcunha em DVD -, que maravilha de filme. Volto atrás em minha opinião, que decepção que nada. Huston inaugura seu cinema já com uma obra-prima. Inova o até então cinema policial – quase restrito, no momento, a fitas de mafiosos – com uma brilhante história de detetive, visceral e ambígua.

John Huston até então estava voltado a apenas escrever roteiros de sucesso para Warner, quando pede uma chance para dirigir. O estúdio concordou desde que não estourasse um orçamento de 300 mil dólares, e por ser baseado num livro de Dashiell Hammett que até então fracassara nas bilheterias. Huston convoca George Raft que recusa o papel, caindo nas mãos de Humphrey Bogart, ator de papéis de pouco destaque em filmes de gângsteres – 1941 seria realmente o seu ano, além desse, faz o ótimo O Último Refúgio, de Raoul Walsh. E Bogart explode e se torna o mito que hoje é. Com um orçamento modesto, nomes de pouca importância, Relíquia Macabra torna-se um sucesso e uma referência, angariando inclusive uma indicação ao Oscar de Melhor Filme, de Melhor Roteiro e de Melhor Ator Coadjuvante para o estreante Sydney Greenstret.

É brilhante ver como o cinema clássico é bonito, irreverente e inovador. Uma cena que me marca muito e que permite entender toda sua essência do cinema estético é o momento em que o carro sai em disparado, e numa montagem herdada de Pudovkin, vê-se o tempo passando não através de uma mudança de planos simulando o ‘enquanto isso’, mas com o rodar do pneu. Num simples close do movimento, seguido pelo desaparecimento gradual da imagem que se funde com o carro chegando, ele sintetiza todo um percurso com o uso da metonímia cinematográfica. São cenas de tal maestria, sutis, quase imperceptíveis, que me fazem questionar um certo anti-academismo dentro do cinema. Porque não usar tais elementos? Porque é ultrapassado? Porque o cinema deve esquecer a produção clássica e apenas se basear na estética Moderna ou Contemporânea? Há nuances de um cinema fundamentado na ação que jamais deveria ser preterido, deveria ser incorporado e talvez renovado. É pictórico demais.

E pensar que John Huston revolucionou o cinema. O policial encontrou uma nova identidade, o cinema noir – a palavra noir significa negro, sombrio, ébrio; o cinema noir é, portanto, a típica película em p&b, de caráter misterioso e embriagante. Relíquia Macabra narra a história de um detetive, Sam Spade, que se encarrega junto a seu amigo de solucionar o problema de uma mulher. Archer, seu companheiro, é morto; descobre-se também que o assassinado foi baleado e morto. Acusado pela polícia local, Spade vai atrás da mulher tentando encontrar um modo de se safar. Aos poucos, curiosos personagens surgem, e uma história ainda mais fantástica sobre um Falcão Maltês torna-se centro daquele grupo obstinado por dinheiro.

Caracteres com o Gordo (Sr. Gutman), Joel Cairo, Wilmer, são sujeitos derivados de um mundo criminoso e de um mundo fascinante. A fábula do cinema detetivesco é essa não-condenação à suposta imoralidade de Gutman, por exemplo, um homem que há 17 anos persegue uma escultura de um pássaro preto, tudo pela ganância e cobiça. Talvez o que fascine o homem não seja o dinheiro, e sim a história lendária por trás desse objeto. Um pássaro misterioso feito de ouro maciço e com muitas jóias incrustadas é roubado na época dos Cavaleiros Templários. Reaparece pouquíssimas vezes depois, já com uma película esmaltada negra. A obsessão por tal item justifica-se perfeitamente quando se quer desbravar um mundo que se tão pouco conhece. Além disso, há um fascínio cultural por tudo aquilo que brilha. O Falcão Maltês é instrumento de glorificação. De uma glória, seja dos cruzados, seja dos piratas, seja de quem for. É simplesmente a glória e um objetivo.

Joel Cairo, a personagem de caráter mais dúbio da película, é interpretada por um magro e bronzeado Peter Lorre. Um homem amedrontado pela própria circunstância sente-se corajoso apenas com uma arma na mão. Misterioso e fraco, Cairo parece muito mais motivado pelo meio do que pelo fim. E Wilmer é alguém criado para Spade exercer todo seu ar carismático e provocante. Tais seqüências são hilárias.

E Bogart imortaliza-se como cético, misterioso, cínico e sedutor. Seu sorriso já é trunfo da sua personalidade forte e dissimulada. Spade não se importa com os outros. Assim como Rick, em Casablanca. Frio, mas impossível de notar seu charme.

Uma aventura, um mundo fantástico. Porque é isso que o cinema melhor faz, conta uma história e conta bem. Sem maquiavelismos ou maniqueísmos, constrói-se algo extraordinário: o conto das almas errantes. E ser errante torna-se uma meta. Claro! É um ideal de vivência. Por isso Bogart, Huston e Relíquia Macabra são tão mirabolantes nossa essência, acaba a monotonia e o sentido de obrigação. A primeira coisa que quis fazer ao rever o filme foi tornar-me um detetive, correr riscos e viver histórias únicas. É o mundo das almas esquecidas, mas deliciosas.




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