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Dossiê John Huston

CIDADE DAS ILUSÕES
Direção: John Huston
Fat City, EUA, 1972.

“Cidade das Ilusões” ou a vida dentro de um ringue sob os olhos de John Huston

Por Eduardo Aguilar, especialmente para a Zingu!.

Como recusar o convite do amigo Matheus Trunk para que participasse do dossiê John Huston, um dos meus cineastas favoritos? E como se não bastasse, ele me pediu para escrever sobre “Cidade das Ilusões” (Fat City), filme que considero um dos 05 melhores da história do cinema.

A primeira questão que me ocorreu foi a tese levantada por Tarkovski de que é bastante difícil verbalizarmos o que sentimos sobre os filmes que nos tocam profundamente. E é tentando superar essa barreira que comecei por rever o filme fazendo uma série de anotações. Bem, as anotações estão espalhadas pela casa e pelos bolsos, mas juntei as que encontrei e decidi ser menos racional e apostar mais na emoção e intuição típicas de um canceriano pra expressar o impacto que causou na minha vida descobrir o filme “Cidade das Ilusões”. Vamos ver no que dá!

Pra começar, eu não curto boxe e acho um esporte tremendamente idiota que nos remete a uma pré-civilização na qual se entende como prazeroso assistir 02 pessoas se batendo sem ao menos existir um motivo para tal. Mas se o boxe é a essência do filme de Huston, que inclusive foi boxeador, talvez especialmente por isso, “Cidade das Ilusões” é um filme que transborda um olhar sobre o ‘viver’, mas um viver que se detém sobre os ‘perdedores’ e isto está mais do que claro em uma das aberturas mais antológicas do cinema, na qual, fazendo uso do registro documental, a câmera de John Huston / Conrad Hall capta as faces dos perdedores, o ‘olhar perdido’, a desesperança. Algumas dessas figuras tentam manter uma certa dignidade (o mendigo que tem seu cabelo cortado) enquanto outras não sabem mais onde encontrá-la. Corta.

Interior de um quarto, Jimmy Tully (Stacy Keach em estado de graça!!!) está no meio dessa busca por dignidade, a um passo da mendicância, algo ainda lhe permite acreditar que será possível se levantar. Ele procura seu cigarro mas não acha os fósforos, a câmera acompanha sua ação, ora deixando a luz da janela ‘estourar’ o enquadramento, mas a maior parte do tempo deixando o personagem numa penumbra que parece anunciar que a tal ‘luz’ pouco se deterá no rosto dessas pessoas. Está claro que o boxe servirá de metáfora sobre a vida, sobre cair e levantar e cair de novo. Em outro plano memorável, Keach atravessa o corredor escuro do hotel vagabundo em que mora com o cigarro ainda apagado, corta para a câmera que recua no corredor de saída acompanhando o personagem até seu encontro com a ‘luz’ do dia, será mais uma tentativa de se reerguer e é isso que o filme nos contará.

É preciso ressaltar que essa abertura desnorteante tem como trilha a música de Kris Kristofferson: “Help me Make it Through the Night”, vale dizer, eu descobri essa música ao assistir “Taxi Driver” de Martin Scorsese, melhor, não foi bem uma descoberta, mas o despertar da curiosidade por conhecê-la, já que no filme, a personagem de Cybell Sheppard comenta com De Niro que gosta do álbum de Kris que tem essa música que fala de um padre drogado que tenta ‘atravessar a noite’ do seu calvário, convenhamos, altamente instigante! Pois bem, a música é usada no filme em diversos arranjos, perfeita quando conduzida junto com a letra, mas ainda melhor quando utilizada apenas instrumentalmente. E na abertura, Huston se vale de um trecho musical até introduzir a parte com a letra após um breve silêncio do personagem Jimmy Tully ‘aparentemente’ desistindo de encontrar os fósforos.

O filme segue Jimmy que decidiu retomar os treinos em um ginásio e lá encontra o jovem Ernie Minger (Jeff Bridges na melhor atuação de sua carreira), eles se tornam amigos e Jimmy recomenda a Ernie que procure seu antigo treinador, pois acha que o ‘garoto’ tem talento. Ernie seguirá o conselho de Jimmy e somos apresentados ao velho treinador que se entusiasma com a possibilidade de ter um lutador branco, tipo irlandês. A noite ele comenta com a mulher que sequer lhe dá atenção que “surgiu no ginásio esse jovem e que os negros são bons lutadores, mas que as pessoas querem pagar e também ver um bom lutador branco”. Uma cena memorável, nela se vê a paixão de alguém pelo que faz e como isso as vezes pouco interessa para uma outra pessoa com a qual você convive.

Pouco tempo depois Ernie participará de sua 1.ª luta, momento impagável e inesquecível. De um lado, 03 jovens lutadores cheios de esperança, um garoto negro convicto de seu talento e da certeza que vencerá. Tudo é explorado, a viagem de ida a pequena cidade aonde acontecerão as lutas, o porta-mala que não fecha, o carro desmanchando e apinhado de gente, os botecos fuleiros de beira de estrada e as condições precárias de acomodação no ginásio nos momentos que precedem a luta. Após a derrota de Ernie e sem muita enrolação, o treinador repassa o calção de Ernie encharcado de sangue ao 2.º lutador que reclama sem receber atenção. No momento seguinte, em uma das várias elipses geniais, estão todos em volta de uma mesa, é visível que os outros 02 lutadores também levaram a pior, então o assistente do treinador procura levantar a moral deles com comentários que buscam explicações para o completo desastre do trio.

No meio da tentativa de Ernie iniciar sua carreira de boxeador, acompanhamos o envolvimento de Jimmy Tully com Oma, o personagem de Susan Tyrrell, talvez no melhor ‘overaction’ que conheço do cinema, e eu que tendo a ser muito severo com as atuações ‘exageradas’ e dificilmente embarco com elas, tiro o meu chapéu pra Susan que acabou levando um merecido Oscar por essa. A personagem dela aparece envolvida com um cara chamado Earl, mas ele é preso e então surge a aproximação dela com Jimmy Tully. Trata-se de um grande momento de improvisação dos atores, de um lado ela falando de como gosta de seu companheiro que está preso e ele insistindo na cantada, daí ela se incomoda e parece que não vai rolar, então Stacy dá uma cabeçada na máquina de junkebox e tudo se acerta de tal forma que os dois saem abraçados e bêbados do bar e ela ainda lhe diz chorando: “I love you so much!!!”. ‘Duca’!!!

Entrecortando a trajetória de Jimmy e Ernie, o filme volta-se para o segundo personagem que esta envolvido com uma nova namorada: Candy Clark, ótima como todo o elenco. Eles estão voltando de um encontro e o carro atola em um lamaçal por conta da chuva. Difícil traduzir em texto a força da cena, mas deixando de lado a excelente mise’en’scène, a dramaturgia se sobrepõe, mostrando as diferenças masculino / feminino com um olhar muito aguçado e sensível. Em dado momento, Candy muito manhosa dá a entender “que nunca tinha feito ‘aquilo’ e que receia engravidar, mas sabe que é responsabilidade dela, mas que não quer forçar nada, no entanto, ele voltará a ligar?” E por aí vai.

Nessa altura é que surgem algumas das cenas que sempre me marcaram muito no filme, é quando os dois personagens, Jimmy e Ernie, cada qual por seus motivos, se afastam do ringue e procuram a sobrevivência como bóias-frias. São cenas muito poéticas tendo como fundo o mais belo arranjo instrumental da música de Kris. Ver aqueles 02 personagens colhendo laranjas é algo muito marcante, tipo, os caras fazerem um trabalho que não os agrada em função da necessidade de sobreviver, mas falar dessas cenas sem comentar a 1.ª inserção desse contexto e que conta somente com o personagem de Stacy, seria imperdoável! Nessa 1.ª cena, Stacy está colhendo cebolas e um outro cara começa a contar como perdeu sua mulher, e ele diz que o culpado foi o vinho, todos ficam curiosos, então ele narra que por conta do vinho se envolveu com outra mulher, todos se entreolham e riem. E que depois ele deu rosas para essa amante, mas sua esposa descobriu e tudo acabou, e sobre o protesto de um dos ouvintes, conclui que não foi apenas o vinho mas ‘rosas e vinho’ o motivo da separação.

Desse reencontro dos dois personagens, surge a vontade em Jimmy de retornar de fato, ao ringue. E os dois procuram o velho treinador. É marcada a luta de Tully com Luccero, nesse ponto, as coisas estão se complicando na vida de todos, Jimmy não anda se entendendo com Oma, fica claro que ele não consegue aceitar a separação que aconteceu com sua ex-mulher após ele perder o que já havia conquistado no auge de sua carreira, enquanto Ernie se defronta com a gravidez de sua garota com quem acaba se casando. Jimmy se desentende gravemente com Oma em mais outra cena genial, quando ele prepara a comida (sic!!!) para ambos, na verdade, dois bifes e 01 pote de ervilhas encharcados de catchup, porém, ela não quer comer e ele insiste, depois desiste e começa a comer sozinho, então ela decide que vai comer e ele não aceita tirando o seu prato. Ela chora, o prato retorna, ela come, elogia, de repente, novo desentendimento, ela se irrita e larga a comida. Então, Jimmy procura o treinador querendo largar Oma, o treinador o atende no meio da madrugada, mas existem histórias obscuras entre ambos, lutas arranjadas sem o consentimento de Jimmy.

E finalmente após Jimmy se separar de Oma, vem a luta tão esperada do seu retorno, é acertada com um lutador também decadente, aqui talvez o momento mais triste dessa balada sobre o fracasso e a solidão que ele trás em sim. É quando chega Luccero, o oponente de Jimmy que se instala em um hotel vagabundo, e ao ir ao banheiro, podemos vê-lo urinar sangue. Na luta, Jimmy sem saber os motivos, percebe que Luccero se abate de forma evidente quando atingido na região dos rins, então, Jimmy insiste nesse local e vence a luta, talvez, a mais bem filmada da história do cinema, sem firulas, muito realista sem perder o humanismo de seus personagens e sem torná-los duas marionetes a serviço da pancadaria. Ao final, enquanto se ouvem promessas de que Jimmy terá um retorno triunfal e todos se despedem, surge ao fundo Luccero atravessando os corredores com as luzes sendo apagadas uma atrás da outra, sempre impedindo o espectador de ver o seu rosto até sua saída por completo. Seguramente, uma das 10 maiores cenas já filmadas na história do cinema e podem apostar que há pelo mais 01 dessas em “Cidade das Ilusões”. Nessas horas, fica difícil entender como Clint Eastwood que filmou “Coração de Caçador”, ao ser perguntado sobre a influência do filme de Huston em “Menina de Ouro”, pouco reconheceu esse dado, pois é bom que fique claro, mas nem em pensamento a idéia de deixar os personagens no escuro sequer se aproxima do resultado estupendo de “Fat City” com o adicional que nesse último, Conrad Hall trabalha no registro de imagens ‘sujas’ que ajudam a reforçar o clima ‘nihilista’ do filme de Huston.

Então, vem o momento em que Jimmy quer receber sua parte, a decadência da sua carreira tem a ver com lutas arranjadas, com sacanagens do tipo de cortes intencionalmente provocados nos supercílios e que naturalmente não permitem uma cicatrização eficiente para suportar novas lutas. Jimmy não considera justo a parte que lhe coube e se desentende com o treinador, e em nova cena antológica, que honestamente, não sei como foi filmada, considerando que se trata de uma produção de pouquíssimos recursos, Jimmy saí do carro sem olhar o transito e em meio a uma avenida movimentada atravessa a rua de costas sob os berros do treinador que lhe pede pra ter cuidado. Pode até ser que estava tudo sob controle e os caminhões e carros que passam buzinando faziam parte da produção, mas a atuação de Stacy é tão deslumbrante que você acredita que o cara topou fazer a cena no escuro, sem saber o que poderia acontecer, se não foi assim, parece que foi.

Chegamos ao epílogo, Jimmy procura Oma, mas o antigo parceiro dela saiu da cadeia e eles reataram. Ernie está enchendo o tanque de seu carro quando percebe Jimmy a deriva e evidentemente embriagado. Ernie procura evitá-lo entrando rapidamente no carro, mas Jimmy o alcança. Ernie recusa o convite pra beber e Jimmy quase suplica que tomem juntos ao menos um café. Corta.

Jimmy e Ernie sentados no balcão olham em silêncio o velho que faz o atendimento, Jimmy pergunta a Ernie se o ‘velhinho’ será feliz, Ernie diz que pode ser que sim, Jimmy volta a lhe perguntar o que acha da idéia de 01 dia acordar como aquele velho que parece ser levado pela vida, Ernie parece não gostar da idéia. Jimmy comenta que as vezes parece que a vida traça um caminho direto para o ralo. Então, Jimmy se volta para o outro lado do balcão, leve e rápido zoom para seu rosto, ele vê uma mesa com caras ‘iguais’ a ele jogando dominó, o som desaparece. Silêncio absoluto!!!! Novo close de Jimmy assustado que se volta para o balcão, Ernie fala que já vai mas Jimmy insiste que conversem mais um pouco, Ernie aceita e ficam assim em total silêncio até começarem a subir os créditos sobre a música de Kris Kristofferson. E jamais o cinema conseguiria mostrar os ‘perdedores’ como nesse filme!!!

Espero ter conseguido transmitir a emoção que esse filme me causou e segue causando, independentemente de necessitar revê-lo, ele está preso na minha retina para sempre. Tremenda ‘responsa’ essa que o ‘brother’ Matheus me passou, decididamente, o papel do crítico é cruel, por isso, me interessa mais fazer do que falar sobre.

Eduardo Aguilar é cineasta e editor do blog Cine Rebeldia (www.cinerebeldia.zip.net). Dirigiu diversos curta-metragens como “Lourdes- Um Conto Gótico”, “O Quadro”, “Claustro”, “Jogos”, entre outros. Iniciou-se em cinema como estagiário de Antônio Meliande (“Sol Vermelho” e “As Viúvas Eróticas”) e depois Jean Garret (“Tchau, Amor”). Foi continuísta em “Extremos do Prazer” de Carlos Reichenbach, “Forever” de Walter Hugo Khouri e “The Guest” de Carlos Pizzini Hansen. Como assistente de direção, esteve ao lado dos diretores Conrado Sanchez (“A Menina e O Estuprador”), Alfredo Sternheim (“Tensão e Desejo”) e principalmente de Carlos Reichenbach (“Anjos do Arrabalde”, “Alma Corsária” e “Garotas do ABC”). Ministra diversos cursos e workshoops pelo Brasil inteiro sobre assistência de direção e continuidade.



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