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O que a Crítica sabe?!

Por Gabriel Carneiro

Alphaville
Direção: Jean-Luc Godard
Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution, França, 1965.

Sim. Godard. Idolatrado por muitos – principalmente pela crítica e pela cinfelia -, e detratado por outros tantos – geralmente aqueles a qual cinema é puro entretenimento. Godard é o sujeito da Nouvelle Vague francesa originária (dos 5 da Rive Droite) que mais se aproximou de um diferente ideário, baseado no apreço à imagem, no multi-sensorialismo e na multi-significância. E na construção desse cinema, o homem consegue brilhantes construções de cenas e diálogos lúdicos. E para quê? Na sua revolução cinematográfica preserva o cinema autoral, e detrata o cinema popular. Seu maior erro foi, talvez, buscar tanto um novo sentido para a imagem e para a linguagem, que se perde no amadorismo e no exclusivismo. Buscando o futuro em Alphaville, Godard rechaça sua película com discursos intelectualóides que de certa forma contradiz a ambientação moderna e o grito da imagem.

E é isso me incomoda tanto. É a presunção do intelectualismo. Não digo que Godard não o seja, ele o é. Mas a maneira com que se aborda em seu filme trai sua essência. À parte da patética cena na piscina, quando os hereges do sistema estão sendo mortos – proferindo, como últimas palavras, idealismos de amor, de paixão, de liberdade, de fraternidade, de igualdade... E o pior é ver a ironia escancarada imposta no questionamento de Lemmy ao perguntar o que fizeram para serem condenados e ouvir seguidamente “Ele se comportou de maneira ilógica”, “Chorou quando a esposa morreu”. Ainda segue “Foi condenado por isso?”,Claro!”. Em seu ímpeto de criticar o autoritarismo e dizer que ilógicos são os cruéis desalmados, o suíço constrói algo insípido, que foge do cômico assim como do trágico, soando apático e desnecessário. Quer defender uma tese, seja contundente. Creio que antes de querer fazer um discurso persuasivo deve saber argumentar. Godard não sabe. Expõe suas idéias, tenta inovar na sobreposição imagem irreverente e discurso eloqüente, mas transforma seu exercício numa comédia que não faz rir. Emprega muito porcamente o recurso satírico, a crítica através do humor. O dizer dos infelizes é quase um consolo do diretor, um grito de guerra, um pedido de humanidade. Só que não o sabendo transmitir, esvai-se, torna-se clichê, torna-se “desimportante”.

Fico pensando. Nos bons diálogos, o centro é o Alpha 60, o comandante de Alphaville que é uma espécie de computador/ventilador gigante. Muitas semelhanças com o HAL 9000 do filme de Kubrick, 2001: Uma Odisséia no Espaço. Só não sei se Kubrick busca inspiração no filme de Godard, ou se Godard busca inspiração em The Sentinel, livro que originou 2001. De qualquer forma, o trunfo na criação do computador psicótico (isso sim já existe em The Sentinel) são seus monólogos. Seu diálogo com o universo. Isso é interessante. Aí colocam Lemmy Caution em cena, dando respostas horríveis às perguntas insossas, que funcionam como uma espécie de apresentação do caráter do homem – exceto à “Ouro e mulher”.

Talvez o que mais me irrite em Alphaville é a tentativa de tornar lúdico 1984. Os elementos do livro de George Orwell estão presentes em massa. O futuro autoritário, a restrição vocabular, o conhecimento do presente de cada um... E mantém-se uma fidelidade tão grande ao universo de 1984, que perde a originalidade. Mesmo a ambientação de um futuro sombrio na própria França da década de 60 não foge à concepção do escritor. A Bíblia, para tantos muito inovadora, corresponde ao dicionário de 1984, palavras é a religião. E a cada semana palavras são removidas. O ser supremo incutido na mente de ambas as situações não é um ser e sim um símbolo. E agora dizer que é criativo? De maneira alguma. Seu futuro, dito desolador, não é nada perto do verborrágico 1984. Alphaville se espelha em algo, mas não inova. Cai na redundância e no desprazer. É uma sensação de “já vi”, com um diálogo pobre e um sério problema de multi-referências. Ele quer tanto brincar com a imagem, que fica escasso esse meio. É como se perdesse o equilíbrio. É exaustivo, mesmo porque muitas são fora de contexto.

O passeio com a câmera é belo, é lírico. Talvez seja por isso que vejo algo bom em Godard. Uma das cenas mais belas é a focalização na Anna Karina enquanto declama. A câmera se fecha inicialmente em seu olho e passa para um todo num fundo negro. Um cinema assim é um cinema de ludismo, de imagem e de exploração da linguagem. Transcende o real e embarca na forma. Busca na imagem a poesia, a reflexão do momento, não quer ser inovador, quer ser pueril. Não é bobagem puramente imagética ou uma auto-necessidade de massagear seu ego com situações despropositadas, construções impróprias ou inserções descontextualizadas. Para descobrir a essência da linguagem, a essência da imagem não precisa invocar diversos prospectos em um único quadro. Elas se bastam. Quando brinca com o SS nazista, utiliza bem os recursos fílmicos e discursivos. Não precisa de todo um jogo com o ventilador, ou com o isqueiro. Tais artificialismos deveriam ser esquecidos, ou raramente usados.

Outra coisa, nunca termine um filme de maneira tão piegas/clichê, com elementos que só podem destruir toda sua narrativa precedente. Terminar um filme cheio de desesperanças e inconformismo com um “eu te amo” proferidos pela boca de uma humanóide em estado semi-decrépito, com lapsos de consciência e num tom extremamente sofrido, é dizer não somente que há esperanças, mas é passar uma mensagem que não importe o que aconteça o amor florescerá e ele sempre será meloso e previsível. Terminar uma obra como Alphaville, reinada por ceticismo e melancolia, da maneira insustentável como o faz, mais uma vez brincando com a linguagem, é sepultar qualquer poética ou retórica de um filme que já não é grande.



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