Dossiê Ivan Cardoso
Ivan Cardoso
Sob o Signo do Terrir
Sob o Signo do Terrir
Por Jairo Ferreira
Eu, eu ando de passo leve pra não acordar o dia
Sou da noite a companheira mais fiel, que ela queria
Amo a guerra, adoro o fogo
Elementos natural do jogo
Senhores:
Jamais me revelarei
(...)
Seja bom o que não presta
Acendo as luzes para nossa festa
Senhores:
Eu sou o mistério do sol !
RAUL SEIXAS
Sou da noite a companheira mais fiel, que ela queria
Amo a guerra, adoro o fogo
Elementos natural do jogo
Senhores:
Jamais me revelarei
(...)
Seja bom o que não presta
Acendo as luzes para nossa festa
Senhores:
Eu sou o mistério do sol !
RAUL SEIXAS
Se Rogério Sganzerla se diz herdeiro direto de Galuber Rocha (o que me parece ter sido necessário antes que alguns aventureiros lançassem mão), temos de eleger Ivan Cardoso, após a revelação do inusitado O Segredo da Múmia/1982, herdeiro do primeiro na tradição de um cinema de invenção, dos enfeitiçados pelo filme, tensão estrutura/tesão experimental, estirpe/astral/família, desde Afonso Segreto, passando pela independência de Mário Peixoto, Humberto Mauro, Watson Macedo, Carlos Maga, Walter Hugo Khouri, José Mojica Marins, Carlos Reichenbach, Júlio Bressane, Andrea Tonnaci- entre outros visionários/irmãos de universo.
São Paulo, quinta-feira, 25 de fevereiro de 1982, Mostra Perspectivas do Cinema Brasileiro, no Museu de Arte de São Paulo.
Não se trata de um filme de mimemografia, mas de mumiografia-, saca logo o poeta Augusto de Campos. Bem por aí em muitas: a múmia é vista em diversas camadas que se repetem- um cinema de grafismo, écriture, ideograma. Contra a cópia mimeográfica, a invenção mumiográfica.
O Segredo da Múmia, não é apenas uma tentativa de decifração de hieroglifos egípcios, mas dos meandros da linguagem audiovisual: os compositores Bernard Hermann, Alfred Newman, Mikos Rozsa e Henry Mancini a nosso inteiro dispor. E isso numa movimentação experimental que sempre impregnou a procedução (processo da produção) e o produssumo (produção do consumo) interbrasilicos desde 1967 até hoje & talvez sempre. Lance só melhor conscientização porque incrementado a partir de O Bandido da Luz Vermelha, a inimitável imitação genial. Por aí uma quase tese que lancei durante uma entrevista com Paulo César Saraceni:
O Cinema Novo tem muito de experimental, mas o Experimental não tem nada de Cinema Novo (Folha de São Paulo, 19/1/1979).
O longa-metragem de Ivan Cardoso, amante do cinema e que faz cinema com amor , não é outra coisa: é cinema, fotograma por fotograma, plano por plano, seqüência por seqüência. Tudo por meio do cinema, respiração no corte, pelo cinema, para o cinema. Será isso que incomoda tanto ? Ora, os incomodados que mudem o registro: filmem através do visor e não de viseiras. Pois- nas relações estruturais entre os filmes dessa mesma escola sem professores nem discípulos- importa ser intenso e não extenso, isto é sintético-ideogrâmico e não discursivo-ideológico. Não é por menos que Júlio Bressane fala numa ideologia de fotograma...E Orson Welles como sempre capta tudo que paira no ar: Gostaria de filmar uma história política, sem mensagens ideológicas (o que é uma definição estética de um cinema político mesmo- JF) apenas para expor os vícios e as virtudes da condição humana.
Eis um gol mágico, sem chute: a múmia em questão pode ser o político biônico que dormiu séculos e séculos nas catacumbas, esperando ver a luz no fim do túnel...ignorando que a abertura vem do latim apertura...Eis como um personagem de tal necrose vê o Brasil: através de bandalheiras infernais, bancarrotas retumbantes: através das bandagens, em planos-diversão, o ponto de vista de uma múmia..vadia: múmiabígua, no que dá a tortura, tontura, passo-síncope...
As pessoas que sonham de dia descobrem coisas que escapam somente à noite- POEtiza o cineasta magnificamente interpretado por Wilson grey.
Em outro momento, reprisando José Lewgoy em Gigante da América, ele garante com conseqüência: é preciso experimentar.
Só. E então experimentamos o inexperimentado: coloque-se, por exemplo, uma múmia no lugar de um bandido ou de uma mulher de alguns, obsorva-se e atue-se sobre tudo o que acontece de importante ou não no Brasil/isto é no mundo (seleção, condensarem paideuma), o antigo Egito & Poesia de Um, Egito/neto da América & o cinema e/ou sintonia experimental entre nós nos últimos 16 anos, cultura/glutural, cósmico/comicamente- por aí teremos uma análise de outra ordem, provável painel pinel de muitos séculos e não apenas de uma década ou duas...o elo perdido (e aqui encontrado?) de antiqüíssima linguagem ideogrâmica que o cinema das cavernas, o cinema atual & paleolítico.
Nesse aspecto extenso no tempo, O Segredo da Múmia é realmente epsteiniano (o cinema é sobrenatural por essência...) e talvez mais abrangente que O Bandido da Luz Vermelha, mas as proporções não são tão (i/des)limitadas: este continua sendo mais intenso no espaço, dado seu nervossismo atomizante.
O lance de Ivan, seu segredo, é o passo sincopado da múmia tranqüila, tornando o incomunicável (múmia no Brasil ? múmia no hotel ?) plenamente comunicável às platéias da maioria.
Ivampirismo, já escrevia o poeta Haroldo de Campos (Correio da Manhã, 14/8/1972).
Cinema de energia das formas, sempre cósmico/comicamente, O Segredo da Múmia seria também serial tragichanchada, pira piramidal Maia, desmumificação/desmitificação, lance altamente crítico em relação a toda uma esta nação dos clichês pornoboca ou pornochic.
Com uma estrutura narrativa facilmente assimilável por qualquer espectador, o filme é cinema de forma agitando fórmulas, O Egito que Hollywoood não mostrou, reciclagem/transfiguração de clichês de spetacle num filme de baixo custo, um susto no cinemão. Não lhe falta vôo nem os ingredientes de aventura, violência e erotismo. Tudo num reencontro da inteligência com a bilheteria.
E nem poderia ser diferente: a coisa começou modestamente em Super 8, lá por 1971, deixando alguns exemplares antológicos (Nosferatu no Brasil, Sentença de Deus, Amor e Tara, Alô Alô Cinédia, Aventura nos Mares do Sul, Chuva de Brotos- multiparódias das metaparódias de Júlio Bressane), passando a curta-metragens 16/35mm do melhor naipe (O Universo de Mojica Marins; Dr. Dyonélio; HO, História de um Olho). Entre aqueles Super 8, não se pode esquecer a Múmia Volta a Atacar, embrião da atual Múmia, uma súmula da brilhante soma de experimentações, talvez seu melhor trabalho em concepção e acabamento técnico. Sempre a serviço da re/criação de uma linguagem cinematográfica sintético-ideogrâmica onde invariavelmente é do signo que nasce a idéia. É o caso da utilização de antigos cinejornais aqui, começando por noticiar o trabalho de um cineasta brasileiro no Cairo e, no embalo, aproveitando para fazer uma saborosa crônica dos anos 50, com o poeta Manuel Bandeira condecorando a então miss Brasil 1954, Marta Rocha. Assim, vai se formando um mosaico em, que a ficção se confunde (e da consistência) com o documental, culminando comicamente com a visita de um ministro brasileiro ao sarcófago da múmia de Runamb.
O acerto maior, sua originalidade, é o tom encontrado, mistura fina: neochanchada no horror, não escapando a sina do aventureiro: a sina ensina: o horror-faz-me-rir. Mas como existe aí um requinte que o mestre não ensinou, Walter Hugo Khouri chegou a observar que “Ivan é o que Mojica quer ser e não é”...
Impossível deixar de comentar o extraordinário trabalho de atores. Desde o expressionismo alemão, de fato, não surge um ator tão expressivo como Felipe Falcão, o abilolado assistente do cientista. Ao lado de uma Regina Case fantástica brejeira, ele dá um banho de interpretação, enquanto ela lhe dá um banho de língua na reluzente careca.
Note-se que Ivan Cardoso encontrou a entonação certa para cada um deles, a originalidade na maneira de falar. Colé está genial: Melhor que eu só dois eu. Odaliscas altamente sensuais, Tânia Boscoli à frente, egípcios impagáveis (Anselmo Vasconcelos, Hélio Oiticica, Ruban Barra), ótimos Paulo César Pereio, Jardel Filho, José Mojica Marins, Júlio Medaglia.
Em suma: Ivan Cardoso está num ponto de partida avançado para o cinema dos anos 80, um pouco pra lá de Bagdá, filmou no Cairo sem sair do Rio de Janeiro...porque sabe que cinema é um sonho, pode até ser um pesadelo, mas nunca mentira.
Um dos melhores- senão o melhor- fotógrafos de still que conheço, Ivan Cardoso é a amabilidade em pessoa & especialista em marketing. Demorou cinco anos para chegar à primeira cópia do filme & em seguida cuidou pessoalmente da divulgação do produto, passando com uma múmia ao vivo durante a campanha de lançamento nas principais capitais do país. Levou o filme aos festivais internacionais de cinema fantástico e retornou triunfante com páginas e mais páginas dedicadas ao filme em jornais e revistas européias. Para que não prevaleçam apenas as minhas opiniões, cito trechos:
Talvez seja difícil encontrar um filme fantástico realizado com um amor tão grande pelo gênero como este. Por essa razão, é uma obra rara o bastante para ser destacada: O Segredo da Múmia é, antes de tudo, um trabalho feito por um grande e generoso coração de cinéfilo. (Gilberto Verschooten, editor da revista belga Fantoom).
Saborosa paródia da série B hollywoodiana, homenagem irreverente porém autêntica aos célebres clássicos da Universal dos anos 30, O Segredo da Múmia inscreve as gags à la Mack Sennet com a maior eficácia no universo fílmico cortante do impressionante realizador brasileiro (o de José Mojica Marins). Uma verdadeira história em quadrinhos cinematográfica, construída sobre o registro deliberado mau gosto, O Segredo provoca a liberação a uma divertida nostalgia. Um novo e talentoso diretor brasileiro acaba de nascer . (Alain Scholocoff, editor da revista Écran Fantastique, Paris).
O Segredo da Múmia, além de ser um pastiche, é também um quase manifesto de cinema (Carlos Santos Fontella, ABC Espetáculos, Madri).
Se fazer um bom filme fantástico já é difícil, uma paródia ao gênero é ainda mais. Ivan Cardoso realizou um pastiche de todos os clichês que povoam o gênero, com o amor e o entusiasmo de um autêntico amador. (Jean Claude Bernadet, Heretic, Cinema de L´Imagineire, Paris).
O realizador brasileiro Ivan Cardoso trouxe o seu primeiro filme ao Festival de Madrid e logo recebeu o Prêmio da Crítica. Embora tais galardões não signifiquem o mesmo para todas as pessoas, o menos que se pode dizer deste filme é que foi feito com amor apaixonado pelos filmes e pelo cinema. As relíquias da Universal, RKO e Hammer Films tiveram em Ivan Cardoso um inovador poético e bem-humorado de algumas cenas dos clássicos do cinema fantástico. O Segredo da Múmia é também um mosaico em preto e branco ou a cores, tão depressa documental como de ficção, correndo da farsa para o drama, tudo à mistura com o calor tropical, e non-sense tipicamente brasileiro (Beatriz Pacheco Pereira, Revista Cinema Novo, Lisboa).
Geralmente recuso a referenciar crítica de cinema no Brasil...vagamente sem acusá-la de nada: essa talvez seja a pior das acusações. Nesse sentido destaco a sensibilidade de Nelson Hoineff: “Num país que ignora o mercado alternativo, como o nosso, pensar sobre o veículo é atrevimento cultural. Aí desperta essa múmia, apaixonada e impertinente, que sai de seu túmulo milenar no Egito para interromper carícias em motéis da Baixada. Para a perplexidade geral, ela vem disputar seu espaço numa selva meticulosamente patrulhada pelos ignóbeis senhores da verdade”.
Os filmes mais importantes de todo o cinema raramente são sacados por gente de cinema, não é vero Gilberto Vasconcelos ?
O Segredo da Múmia é um filme de terror, mas vai além do esquema dos filmes de terror, um filme épico com corrida de cavalo e angulação de história em quadrinhos (Folha de S; Paulo).
O Escorpião Escarlate (1993, 90 min) é outra obra-prima de Ivan Cardoso, fiel escudeiro de Hélio Oiticica: “O artista só pode ser inventor ! Se ele não for inventor ele não é artista.”
** Artigo retirado de: FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo: Editora Limiar, 2000.
São Paulo, quinta-feira, 25 de fevereiro de 1982, Mostra Perspectivas do Cinema Brasileiro, no Museu de Arte de São Paulo.
Não se trata de um filme de mimemografia, mas de mumiografia-, saca logo o poeta Augusto de Campos. Bem por aí em muitas: a múmia é vista em diversas camadas que se repetem- um cinema de grafismo, écriture, ideograma. Contra a cópia mimeográfica, a invenção mumiográfica.
O Segredo da Múmia, não é apenas uma tentativa de decifração de hieroglifos egípcios, mas dos meandros da linguagem audiovisual: os compositores Bernard Hermann, Alfred Newman, Mikos Rozsa e Henry Mancini a nosso inteiro dispor. E isso numa movimentação experimental que sempre impregnou a procedução (processo da produção) e o produssumo (produção do consumo) interbrasilicos desde 1967 até hoje & talvez sempre. Lance só melhor conscientização porque incrementado a partir de O Bandido da Luz Vermelha, a inimitável imitação genial. Por aí uma quase tese que lancei durante uma entrevista com Paulo César Saraceni:
O Cinema Novo tem muito de experimental, mas o Experimental não tem nada de Cinema Novo (Folha de São Paulo, 19/1/1979).
O longa-metragem de Ivan Cardoso, amante do cinema e que faz cinema com amor , não é outra coisa: é cinema, fotograma por fotograma, plano por plano, seqüência por seqüência. Tudo por meio do cinema, respiração no corte, pelo cinema, para o cinema. Será isso que incomoda tanto ? Ora, os incomodados que mudem o registro: filmem através do visor e não de viseiras. Pois- nas relações estruturais entre os filmes dessa mesma escola sem professores nem discípulos- importa ser intenso e não extenso, isto é sintético-ideogrâmico e não discursivo-ideológico. Não é por menos que Júlio Bressane fala numa ideologia de fotograma...E Orson Welles como sempre capta tudo que paira no ar: Gostaria de filmar uma história política, sem mensagens ideológicas (o que é uma definição estética de um cinema político mesmo- JF) apenas para expor os vícios e as virtudes da condição humana.
Eis um gol mágico, sem chute: a múmia em questão pode ser o político biônico que dormiu séculos e séculos nas catacumbas, esperando ver a luz no fim do túnel...ignorando que a abertura vem do latim apertura...Eis como um personagem de tal necrose vê o Brasil: através de bandalheiras infernais, bancarrotas retumbantes: através das bandagens, em planos-diversão, o ponto de vista de uma múmia..vadia: múmiabígua, no que dá a tortura, tontura, passo-síncope...
As pessoas que sonham de dia descobrem coisas que escapam somente à noite- POEtiza o cineasta magnificamente interpretado por Wilson grey.
Em outro momento, reprisando José Lewgoy em Gigante da América, ele garante com conseqüência: é preciso experimentar.
Só. E então experimentamos o inexperimentado: coloque-se, por exemplo, uma múmia no lugar de um bandido ou de uma mulher de alguns, obsorva-se e atue-se sobre tudo o que acontece de importante ou não no Brasil/isto é no mundo (seleção, condensarem paideuma), o antigo Egito & Poesia de Um, Egito/neto da América & o cinema e/ou sintonia experimental entre nós nos últimos 16 anos, cultura/glutural, cósmico/comicamente- por aí teremos uma análise de outra ordem, provável painel pinel de muitos séculos e não apenas de uma década ou duas...o elo perdido (e aqui encontrado?) de antiqüíssima linguagem ideogrâmica que o cinema das cavernas, o cinema atual & paleolítico.
Nesse aspecto extenso no tempo, O Segredo da Múmia é realmente epsteiniano (o cinema é sobrenatural por essência...) e talvez mais abrangente que O Bandido da Luz Vermelha, mas as proporções não são tão (i/des)limitadas: este continua sendo mais intenso no espaço, dado seu nervossismo atomizante.
O lance de Ivan, seu segredo, é o passo sincopado da múmia tranqüila, tornando o incomunicável (múmia no Brasil ? múmia no hotel ?) plenamente comunicável às platéias da maioria.
Ivampirismo, já escrevia o poeta Haroldo de Campos (Correio da Manhã, 14/8/1972).
Cinema de energia das formas, sempre cósmico/comicamente, O Segredo da Múmia seria também serial tragichanchada, pira piramidal Maia, desmumificação/desmitificação, lance altamente crítico em relação a toda uma esta nação dos clichês pornoboca ou pornochic.
Com uma estrutura narrativa facilmente assimilável por qualquer espectador, o filme é cinema de forma agitando fórmulas, O Egito que Hollywoood não mostrou, reciclagem/transfiguração de clichês de spetacle num filme de baixo custo, um susto no cinemão. Não lhe falta vôo nem os ingredientes de aventura, violência e erotismo. Tudo num reencontro da inteligência com a bilheteria.
E nem poderia ser diferente: a coisa começou modestamente em Super 8, lá por 1971, deixando alguns exemplares antológicos (Nosferatu no Brasil, Sentença de Deus, Amor e Tara, Alô Alô Cinédia, Aventura nos Mares do Sul, Chuva de Brotos- multiparódias das metaparódias de Júlio Bressane), passando a curta-metragens 16/35mm do melhor naipe (O Universo de Mojica Marins; Dr. Dyonélio; HO, História de um Olho). Entre aqueles Super 8, não se pode esquecer a Múmia Volta a Atacar, embrião da atual Múmia, uma súmula da brilhante soma de experimentações, talvez seu melhor trabalho em concepção e acabamento técnico. Sempre a serviço da re/criação de uma linguagem cinematográfica sintético-ideogrâmica onde invariavelmente é do signo que nasce a idéia. É o caso da utilização de antigos cinejornais aqui, começando por noticiar o trabalho de um cineasta brasileiro no Cairo e, no embalo, aproveitando para fazer uma saborosa crônica dos anos 50, com o poeta Manuel Bandeira condecorando a então miss Brasil 1954, Marta Rocha. Assim, vai se formando um mosaico em, que a ficção se confunde (e da consistência) com o documental, culminando comicamente com a visita de um ministro brasileiro ao sarcófago da múmia de Runamb.
O acerto maior, sua originalidade, é o tom encontrado, mistura fina: neochanchada no horror, não escapando a sina do aventureiro: a sina ensina: o horror-faz-me-rir. Mas como existe aí um requinte que o mestre não ensinou, Walter Hugo Khouri chegou a observar que “Ivan é o que Mojica quer ser e não é”...
Impossível deixar de comentar o extraordinário trabalho de atores. Desde o expressionismo alemão, de fato, não surge um ator tão expressivo como Felipe Falcão, o abilolado assistente do cientista. Ao lado de uma Regina Case fantástica brejeira, ele dá um banho de interpretação, enquanto ela lhe dá um banho de língua na reluzente careca.
Note-se que Ivan Cardoso encontrou a entonação certa para cada um deles, a originalidade na maneira de falar. Colé está genial: Melhor que eu só dois eu. Odaliscas altamente sensuais, Tânia Boscoli à frente, egípcios impagáveis (Anselmo Vasconcelos, Hélio Oiticica, Ruban Barra), ótimos Paulo César Pereio, Jardel Filho, José Mojica Marins, Júlio Medaglia.
Em suma: Ivan Cardoso está num ponto de partida avançado para o cinema dos anos 80, um pouco pra lá de Bagdá, filmou no Cairo sem sair do Rio de Janeiro...porque sabe que cinema é um sonho, pode até ser um pesadelo, mas nunca mentira.
Um dos melhores- senão o melhor- fotógrafos de still que conheço, Ivan Cardoso é a amabilidade em pessoa & especialista em marketing. Demorou cinco anos para chegar à primeira cópia do filme & em seguida cuidou pessoalmente da divulgação do produto, passando com uma múmia ao vivo durante a campanha de lançamento nas principais capitais do país. Levou o filme aos festivais internacionais de cinema fantástico e retornou triunfante com páginas e mais páginas dedicadas ao filme em jornais e revistas européias. Para que não prevaleçam apenas as minhas opiniões, cito trechos:
Talvez seja difícil encontrar um filme fantástico realizado com um amor tão grande pelo gênero como este. Por essa razão, é uma obra rara o bastante para ser destacada: O Segredo da Múmia é, antes de tudo, um trabalho feito por um grande e generoso coração de cinéfilo. (Gilberto Verschooten, editor da revista belga Fantoom).
Saborosa paródia da série B hollywoodiana, homenagem irreverente porém autêntica aos célebres clássicos da Universal dos anos 30, O Segredo da Múmia inscreve as gags à la Mack Sennet com a maior eficácia no universo fílmico cortante do impressionante realizador brasileiro (o de José Mojica Marins). Uma verdadeira história em quadrinhos cinematográfica, construída sobre o registro deliberado mau gosto, O Segredo provoca a liberação a uma divertida nostalgia. Um novo e talentoso diretor brasileiro acaba de nascer . (Alain Scholocoff, editor da revista Écran Fantastique, Paris).
O Segredo da Múmia, além de ser um pastiche, é também um quase manifesto de cinema (Carlos Santos Fontella, ABC Espetáculos, Madri).
Se fazer um bom filme fantástico já é difícil, uma paródia ao gênero é ainda mais. Ivan Cardoso realizou um pastiche de todos os clichês que povoam o gênero, com o amor e o entusiasmo de um autêntico amador. (Jean Claude Bernadet, Heretic, Cinema de L´Imagineire, Paris).
O realizador brasileiro Ivan Cardoso trouxe o seu primeiro filme ao Festival de Madrid e logo recebeu o Prêmio da Crítica. Embora tais galardões não signifiquem o mesmo para todas as pessoas, o menos que se pode dizer deste filme é que foi feito com amor apaixonado pelos filmes e pelo cinema. As relíquias da Universal, RKO e Hammer Films tiveram em Ivan Cardoso um inovador poético e bem-humorado de algumas cenas dos clássicos do cinema fantástico. O Segredo da Múmia é também um mosaico em preto e branco ou a cores, tão depressa documental como de ficção, correndo da farsa para o drama, tudo à mistura com o calor tropical, e non-sense tipicamente brasileiro (Beatriz Pacheco Pereira, Revista Cinema Novo, Lisboa).
Geralmente recuso a referenciar crítica de cinema no Brasil...vagamente sem acusá-la de nada: essa talvez seja a pior das acusações. Nesse sentido destaco a sensibilidade de Nelson Hoineff: “Num país que ignora o mercado alternativo, como o nosso, pensar sobre o veículo é atrevimento cultural. Aí desperta essa múmia, apaixonada e impertinente, que sai de seu túmulo milenar no Egito para interromper carícias em motéis da Baixada. Para a perplexidade geral, ela vem disputar seu espaço numa selva meticulosamente patrulhada pelos ignóbeis senhores da verdade”.
Os filmes mais importantes de todo o cinema raramente são sacados por gente de cinema, não é vero Gilberto Vasconcelos ?
O Segredo da Múmia é um filme de terror, mas vai além do esquema dos filmes de terror, um filme épico com corrida de cavalo e angulação de história em quadrinhos (Folha de S; Paulo).
O Escorpião Escarlate (1993, 90 min) é outra obra-prima de Ivan Cardoso, fiel escudeiro de Hélio Oiticica: “O artista só pode ser inventor ! Se ele não for inventor ele não é artista.”
** Artigo retirado de: FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo: Editora Limiar, 2000.