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Dossiê Howard Hawks

Jejum de Amor
Direção: Howard Hawks
His Girl Friday, EUA, 1940.

Por Filipe Chamy

“Jejum de amor” é, antes de mais nada, Howard Hawks. O título completo em inglês já diz tudo: “Howard Hawks’ His girl Friday”. Hawks era um dos sujeitos mais versáteis da Hollywood clássica — e, mais do que isso, um dos magos que combinou triunfalmente comércio e arte (entendida aqui como sublimação de potencialidades estético-cinematográficas). Seus filmes são interessantes tanto a críticos e profissionais da área como ao público que vê um filme no final de semana esperando apenas divertir-se. Em outras palavras: entretenimento mais do que inteligente — ou inteligência que entretém brilhantemente. Hawks é um dos raros diretores que dominou vários gêneros, atestando a vitória da autoralidade frente a eles; de musicais a faroestes, passando pelas famosas screwball comedies (comédias malucas), sempre deixou sua inequívoca marca de competência e genialidade.

Este “Jejum de amor” pertence à última categoria citada no parágrafo anterior, uma das muitas especialidades de Hawks. Alguns consideram-no sua melhor obra, o que não é pouco quando se analisa a carreira de um cineasta que praticamente só fez grandes filmes. A fama não é imerecida. É um primor da primeira à última cena, perfeitamente construído e desenvolvido. A trama, adaptada de uma peça, conta a história de Hildy Johnson (Rosalind Russell, que muitos conhecem apenas como a solteirona xarope de “Férias de amor”, de Joshua Logan) e Walter Burns (Cary Grant, rápido na fala e nas caretas), dois jornalistas bem-humorados que foram casados e se divorciaram, separando-se também profissionalmente — Hildy sai do jornal em que trabalha Walter, voltando apenas para contar que está de casamento marcado com um certo Bruce Baldwin (Ralph Bellamy, bobalhão pleno). Walter quer reconquistá-la, e, para isso, a seduz com a possibilidade de cobrir o caso de Earl Williams (John Quale), que foi condenado à forca e em breve será despachado deste mundo.

O que vemos aqui são olhares cruzados, diálogos cortantes e ações contrastantes e velozes. Reina o caos, quase sempre cômico: as muitas frases são atropeladas, as personagens gritam e interrompem os outros, muitas pessoas falam ao mesmo tempo, telefones são atendidos freneticamente (acompanhados pelo correr das câmeras atentas de Hawks). A montagem também não pode ser lembrada por ser lenta; tudo é ritmado, o timing das passagens foi perfeitamente estudado para que cada cena alcance a proporção e o efeito ansiados. Todos elementos coordenados para criar na tela as idéias almejadas.

O casal de protagonistas (obviamente, Hildy e Walter; Bruce é sempre um ser à parte, sem entender nada do que passa à volta — e sempre pedindo ajuda à noiva) decididamente tem uma química que permite dar ao seu relacionamento uma estranha roupagem de habitualidade: parecem ter sido feitos um para o outro. Têm o mesmo jeito de se expressar, uma personalidade parecida e (afinal o óbvio é aparente) uma tensão romântica que mesmo o divórcio não conseguiu diminuir, talvez até tendo aumentado. Não à toa, o título original, “His girl Friday”, parece significar que, para Walter, Hildy seria de uma espécie de utilidade semelhante à do indígena Sexta-Feira para Robinson Crusoé, ou seja, fiel cumplicidade, braço-direito. A harmonia da trama reside na aparente instabilidade do triângulo amoroso, que, na verdade, é um casal apaixonado e briguento lidando com um terceiro elemento — introduzido pela parte feminina apenas para provocar ciúmes e motivar a conseqüente reação do amado provocado.

Inseridos no cínico (quando levado a sério, trágico) contexto da imprensa sensacionalista — quase marrom — e dos acordos políticos, as figuras do filme de Hawks têm de contornar com tiradas rápidas (e por vezes inacreditáveis) e humor fisicamente nervoso (com muitos trejeitos) os momentos em que não são donos da situação. A expectativa é de que a situação se inverta, o que quase sempre mostra-se acertado. Temos assim uma amostragem de altos e baixos sofridos pelos personagens, comunicados visualmente também pela plasticidade sombria de certas cenas, principalmente as que envolvem Earl Williams, candidato à corda ensaboada. Seria um espetáculo deficiente, se não estivéssemos lidando com um mestre do calibre de Howard Hawks — que entende que às vezes o importante não é ter algo para dizer, mas apenas falar algo e não dar espaço a argumentos em contrário.



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