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Dossiê Howard Hawks

Clássicos de Prestígio

Uma Aventura na Martinica
Direção: Howard Hawks
To Have and Have Not, EUA, 1944.

Por Gabriel Carneiro

Baseado numa obra de Ernest Hemingway, Uma Aventura na Martinica, diferentemente da obra original (Ter e Não Ter), se passa durante a Segunda Grande Guerra. Talvez seja nisso que a história referente ao filme tome lugar. Dizem que Hawks se gabara a Hemingway, falando que faria um ótimo filme de seu pior livro. O escritor então o teria desafiado a adaptar To Have and Have Not para as telas. Dito e feito, Hawks entregou um filmaço, porém com um perfil completamente diferente do da trama da obra literária, que se passa em Cuba e na Flórida, sem relações alguma com as disputas Eixo-Aliados. Aliás, o livro foi escrito em 1937, antes mesmo da eclosão de tal fato. William Faulkner e Jules Furthman transportaram a história de um empreendedor honesto do ramo pesqueiro que se vê envolvido no contrabando para alimentar a família, para o clima de Segunda Guerra, em 1940 – o filme fora filmado em 1944, já após a entrada americana na guerra -, numa colônia antilhana da França, Martinica, tendo o personagem principal um bon vivant solteiro que deve transportar franceses da Resistência até o local de conflito. Isso torna um tanto esquisito o longo título Ernest Hemingway’s To Have na Have Not (Uma Aventura na Martinica de Ernest Hemingway).

Com um pano de fundo político, Hawks abre as portas para um filme tipicamente bogartiano. Bebe da fonte dos noir, e coloca Humphrey Bogart como o charmoso anti-herói, conquistador, que não deve nada a ninguém, carregado de um tom misterioso e dramático. Contra a França colaboracionista – representada pelo delegado, o estereotipo do francês -, a Resistência Francesa de Martinica entra numa luta. Envolvem Harry Morgan e conseqüentemente Marie. Hawks admite, ao longo da trama, uma posição antinazista, contrária aos absurdos da Gestapo, tendo como uma das cenas emblemáticas o confisco do dinheiro de Morgan na polícia – justificado por uma dúvida: seria dele mesmo? Há também nesse momento uma menção à neutralidade norte-americana que de desfaria em 1941.

Uma Aventura na Martinica inicia a carreira de então uma jovem atriz promissora, Lauren Bacall, e da parceria Bogart-Bacall (com 5 filmes). Sua primeira cena no filme é talvez tão poderosa quanto à de John Wayne em No Tempo das Diligências – o filme que alavancou sua carreira -, sua sutileza encarnada de mistério e sensualidade é instigante e seu “Anybody got a match?” é uma preciosidade. Bacall instaurou-se como uma diva de Hollywood, com seus apenas 19 anos, em pose austera, e um quê de sensualidade muito maior que qualquer musa de hoje semi-nua – que convenha, insignificantes -, conquistando o coração de Bogart, com 44 na época, nas telas e fora delas, já que viriam a se casar em 1945.


O excepcional enquadramento: pertos
no quadro, distantes na realidade

O que mais me agrada no filme são seus diálogos. Sim, porque são simples, e dotados de volúpia. Não há intelectualismo, há um ar imponente e revigorante, e cada palavra tem uma dimensão enorme, cada cena, cada movimento encabeça a mais sutil das ironias, a frase é solta, com efeitos expressivos diante de toda sua sofisticação e elegância. O diálogo se estabelece principalmente pelo jogo de olhar entre Bogart e Bacall, que juntos dizem muito, e suas acepções acerca da relação se dá de maneira mais intrigante, a exemplo disso temos a cena que Sra. De Bursac desmaia e é então carregada por Mogan, que ao ser visto, escuta “What are you trying to do, guess her weight?” (“O que está fazendo, tentando adivinhar seu peso?”).

Outra personagem que se destaca é o bêbado Eddie, interpretado pelo magnífico Walter Brennan. Eddie é a veia cômica do filme, bêbado e eloqüente, surpreende pelas suas tiradas acerca do mundo que os rodeia e dos conceitos tradicionais da vida. O que melhor o define é o dizer de Morgan, falando que segundo Eddie, ele que cuida de Harry e posteriormente de Marie, e não ao contrário, colocando em voga o caráter paternalista do beberrão que quer fazer o bem, mas não consegue largar o vício. Eddie é bom, e se faz coisas erradas, não é por querer, está isento de toda possível culpa. Afinal, um ser espirituoso, que a todo o momento pede ternamente um trago, e revoluciona conceitos como o da relação entre bebida e esquecimento da memória (“Drinking don't bother my memory. If it did I wouldn't drink. I couldn't. You see, I'd forget how good it was, then where'd I be? Start drinkin' water, again.”), e solta pérolas do humor como “Você já foi picado por uma abelha morta?”, merece muito do destaque do prazer de se assistir à película.

Howard Hawks é um esteta. Seus enquadramentos são milimetricamente calculados. Não há nada que fique de fora e cada plano mostra-se de suma importância ao entendimento da obra. Regado de planos americanos e de planos médios, um nas cenas dinâmicas e o outro nas cenas estáticas, principalmente, Hawks revigora o aspecto ambivalente da persuasão pela linguagem corporal, seja no olhar – já referido e fundamental -, seja no movimento dos membros superiores e inferiores. Para entender Bogart, deve-se entender a sutileza de seus movimentos, seja em apanhar os fósforos para Bacall, seja em apanhar a arma e revirar a perseguição. Hawks prioriza isso, e acompanha o movimento sem nunca esquecer o seu redor e as conseqüências de tal ato. E não há nada mais bonito do que do que seu enquadramento centralizado no rosto do protagonista da cena, ou sua incorporação das várias personagens, pertos no quadro, distantes na realidade.


Importância dos olhos e dos gestos;
enquadramento centralizado no protagonista

Seu aspecto clássico mais marcante – visto que Hawks é um transeunte entre o Classicismo e o Modernismo -, é uma das coisas mais fascinantes que o Clássico impôs. Para duas pessoas ficarem juntas, basta a atração e a interação. Quem se importa e se é amor, paixão, ou seja lá o que for? Para quê construir um relacionamento? O importante é o momento, o desejo, e o jogo da sensualidade. Bogart e Bacall mal se conhecem, mas o charme... ah, o charme, ele é tudo. Se não fosse tal elemento, nada explicaria essa vontade de permanecer ao redor. Porque a felicidade deriva de estímulo físico, e atração é o seu maior. Não é à toa que Marie pouco se importa com a passagem de avião, ela quer Harry, pois se conectam, seus olhares se encaixam. É quase uma explosão hedonista.

Uma Aventura na Martinica pode não ser considerado um dos melhores filmes do gênero ou da época, mas certamente é um dos mais belos de se ver.



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