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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque

OS CATECISMOS, de Carlos Zéfiro (1950)

Dependendo da sua idade e grau de interesse por histórias em quadrinhos, é bem provável que você nunca tenha ouvido falar em Carlos Zéfiro. Entretanto, são enormes as chances de seu pai ou seu avô conhecerem a obra deste lendário artista brasileiro, e mais do que isso, de terem se masturbado pela primeira vez enquanto liam algum de seus gibis. Zéfiro indiscutivelmente foi o mestre supremo das HQs pornográficas tupiniquins, mas por vezes chega a ser difícil para jovens acostumados às liberdades do século XXI entenderem o porquê de toda a importância que lhe é atribuída.

Para melhor compreender este fenômeno, é fundamental que nos transportemos de volta à época em que estes quadrinhos foram produzidos, dias de governos autoritários e conservadores, bem como de uma ainda forte influência da Igreja Católica no comportamento da juventude. Naqueles tempos, onde a pornografia era proibida por lei e tudo tinha sabor de descoberta, representações visuais e explícitas do sexo eram praticamente inexistentes no Brasil, fazendo com que os adolescentes aliviassem suas tensões com compêndios de medicina, imagens de tribos indígenas ou quando muito com alguns romances mais picantes de Jorge Amado. As "casas de luz vermelha" eram verdadeiras instituições, onde o garoto era levado pelo pai para "ter sua primeira vez", no que era auxiliado pela prostituta, profissional e expert que lhe daria todo o suporte e conhecimentos básicos para não fazer feio na lua-de-mel, já que a noiva do cliente era "moça de família" e nunca transaria antes do casamento. Embora a "moral" e os "bons costumes" já fossem verdadeiras piadas, as pessoas ainda fingiam levá-los a sério, e em meio a este cenário deveras bizarro, a obra zefiriana surtiu como uma bomba atômica.

Estamos falando do início dos anos 50; período em que, de maneira repentina e misteriosa, um novo tipo de publicação começou a ser editada: os catecismos -- gibizinhos vagabundos de 32 páginas em formato pocket, cujas histórias sacanas recheadas de sexo explícito eram impressas de modo rudimentar e em papel da pior qualidade. Confeccionados no Rio de Janeiro e escoados pelo Brasil inteiro a partir de São Paulo, estes quadrinhos eram encontrados de forma clandestina nos mais diversos pontos de venda, tais como padarias, botequins e bilheterias de pequenos cinemas. Contudo, o local onde mais abundavam era nos jornaleiros, responsáveis por um verdadeiro ritual na venda destas relíquias: o leitor deveria comprar um jornal ou uma revista "séria", que por sua vez serviria apenas para esconder entre suas páginas a mercadoria ilegal. A origem do termo é nebulosa, mas segundo a lenda era muito comum os jovens camuflarem essas HQs também dentro de livros religiosos, daí o nome de catecismo. Assim, convencionou-se que uma coleção de 12 exemplares constituía um "testamento", enquanto 24 deles formavam uma "Bíblia". Para desespero dos pais, padres e professores, em pouco tempo os catecismos se tornaram uma febre entre o público masculino, rodando de mão em mão e dando início à vida sexual de toda uma geração.

Vários foram os artistas que se dedicaram a estas publicações, mas devido à peculiaridade de seu trabalho e ao fato de ser o mais prolífico de todos, Zéfiro foi o único que se destacou, angariando uma legião de fãs e imitadores. Como desenhista, era medíocre: faltava-lhe conhecimento de anatomia, as imagens eram visivelmente decalcadas de outras fontes e, de um quadrinho para o outro, os personagens costumavam sofrer mudanças físicas inexplicáveis. Todavia, estes desenhos toscos tinham um charme especial e eram cheios de estilo, bastando uma rápida passada de olhos para reconhecer o autor, que supria as deficiências de seu traço com textos envolventes e ótimos roteiros.

Verdadeiras crônicas, as histórias zefirianas quase sempre eram narradas em primeira pessoa e protagonizadas por gente comum. Este era o segredo do sucesso: o sexo tratado de maneira natural e descompromissada, praticado por indivíduos como eu, você, a mulher do seu amigo, sua professora, o cobrador do ônibus, o colega tímido de serviço, etc. Longe de serem compostos apenas por um monte de trepadas desconexas, os catecismos apresentavam enredo bem definido, com começo, meio e fim. Em geral, eram tramas razoavelmente realistas sobre homens e mulheres que, por mera coincidência, se encontravam e transavam em um momento marcante de suas vidas. Existiam também algumas narrativas mais insólitas, como a de um sofá que falava ao leitor de todas as transas que já haviam ocorrido sobre sua superfície. Outras vezes, o enfoque era cômico; exemplo dessa safra é "As Aventuras de João Cavalo", o mais vendido de todos os catecismos, cujo protagonista era um nordestino feio e disforme que, por possuir um pênis absurdamente grande, se enfiava nas maiores encrencas: não conseguia se masturbar, causava pavor em todas as garotas, provocava a morte dos animais nos quais descontava seu apetite sexual e era recusado até pelas prostitutas mais experientes, dentre outros absurdos. O catolicismo também era recorrente; Zéfiro era obcecado por conventos e criou uma grande quantidade de historinhas blasfemas onde padres e freiras trepavam feito coelhos. Numa delas, "Pecadora", há uma frase que deixaria Nelson Rodrigues orgulhoso: "Sem deixar escapar um só milímetro, rolamos pelo chão como dois loucos possessos e se eu tivesse à mão um rosário, as contas não bastariam para anotar todas as vezes que gozamos". Variações à parte, um fator em comum unia todas as tramas: o sexo era sempre algo decisivo e inesquecível na vida dos protagonistas, que nas últimas páginas mudavam seus rumos, pensamentos ou atitudes devido a alguma transa em particular. Acima de qualquer coisa, estas revistinhas de putaria eram autênticas "câmeras escondidas", um retrato histórico e registro dos desejos mais íntimos da população brasileira, sufocados e ocultos por força da caretice vigente.

Apesar de terem atravessado com êxito a década de 60, os catecismos fraquejaram nos anos 70, quando começaram a pintar por aqui as primeiras fotonovelas pornográficas, contrabandeadas diretamente da Europa. Muito mais baratas e com cenas reais de sexo, em pouco tempo elas aniquilaram o concorrente desenhado, mas o estrago já estava feito: as pessoas não eram mais as mesmas e muitos antigos leitores, no embalo da cena underground americana e influenciados pelos gibis fuleiros que escondiam da mãe, passaram a fazer seus próprios quadrinhos, desta vez marcados por um forte cunho político.

Porém, uma dúvida persistia: quem era o sujeito por trás daquelas histórias? Muitas lendas e boatos especulavam a respeito de sua identidade. Uns diziam que ele era um delegado corrupto envolvido com o tráfico de drogas, outros acreditavam ser o autor um presidiário que bolava as HQs dentro da cadeia, e havia também a hipótese de que ele seria um ex-seminarista pervertido. O mistério findou apenas em novembro de 1991: numa antológica reportagem feita para a revista Playboy, o jornalista Juca Kfouri revelou que Carlos Zéfiro era pseudônimo de Alcides Caminha, parceiro musical de Nelson Cavaquinho. Funcionário público aposentado, Caminha tinha receio em se apresentar aos fãs, por causa de uma lei que cancelava os direitos trabalhistas de qualquer cidadão que se envolvesse em escândalos. Ciente do culto em torno de sua obra e cansado dos inúmeros picaretas que se faziam passar por Zéfiro, resolveu dar a cara pra bater. Resultado: ganhou manchetes nos principais veículos de imprensa, foi entrevistado no programa Jô Soares Onze e Meia, recebeu um troféu HQ Mix e, cercado de playmates, foi o responsável pela mais concorrida sessão de autógrafos da Bienal. Senhor idoso de feições simpáticas, o mais célebre pornógrafo do país confessou ter buscado inspiração no seu cotidiano para desenvolver alguns enredos e afirmou que vendia os originais por qualquer ninharia, sempre sem o conhecimento dos filhos e esposa, de quem escondera suas atividades por cerca de trinta anos. Atendendo a pedidos, chegou a anunciar sua volta aos quadrinhos, mas o tão aguardado retorno, para a infelicidade de todos, nunca ocorreu: apenas oito meses após ter saído do anonimato, Caminha faleceu num hospital do Rio de Janeiro.



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