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Como fazer Histórias em Quadrinhos
Por Filippo Scozzari
Seleção e transcrição: Daniel Salomão Roque


Quando eu escolhi falar sobre o Ranxerox na coluna de quadrinhos desse mês, fiquei com muito medo de não conseguir transmitir uma coisa primordial: o quão diferente e inusitado era o processo criativo de seu criador, o roteirista e designer gráfico Stefano Tamburini, e como o modo que organizava suas idéias se refletia na estrutura caótica de seus trabalhos. Pois bem, neste exato momento acabo de terminar minha matéria e cheguei à conclusão de que, ao menos neste aspecto, eu fracassei. E digo isso na maior cara-de-pau e sem o menor constrangimento, pois como vocês logo verão, o italiano era tão pirado que se fez necessária a transcrição de um artigo apenas para jogar um pouco de luz sobre o que se passava na sua cabeça.

Este texto foi extraído do sétimo número da saudosa Animal, a maior divulgadora da obra de Tamburini no Brasil, mas foi originalmente publicado na Frigidaire, a revista que consagrou Ranx. Seu autor, o quadrinhista Filippo Scozzari, era amigo pessoal do falecido roteirista e foi um dos grandes nomes revelados pela Cannibale no final dos anos 70. Aqui, ele se utiliza de um imenso sarcasmo na tentativa de reconstituir o raciocínio de seu companheiro.
Boa leitura.

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Em uma das últimas vezes que Tamburini e eu realmente conversamos (nos conhecíamos há mais de dez anos e quase sempre nos chamávamos pelo sobrenome, como se faz na escola, ou entre funcionários milaneses; entre os amores e disputas, para ele eu era Scozzari e para mim ele é Tamburini), ele me contou como e porque tudo começou: por volta de 74 / 75, se não me engano, conseguiu enganar um editor idiota de figurinhas, vendendo por uma puta grana uma série de desenhinhos para uma história de bang-bang, desenhinhos obtidos DECALCANDO UMA QUANTIDADE INFINITA DE VINHETAS DE OUTRAS REVISTINHAS! Se levo em consideração como eu estava naqueles anos (muito mal: universitário, serviço militar, zero de grana, zero de perspectivas, idiotice a quilos), se simplesmente comparo os SEUS vinte anos com os MEUS vinte anos, me parece evidente o extraordinário percurso de Strékeno, que era o nome com o qual assinava seus trabalhos.

Desde o início sua meta, o seu sonho, era fazer parte de um estranho tipo de editora, oscilante entre o underground e o oficial, na qual ao mesmo tempo cumpria as funções de gráfico, editor, quadrinhista, diretor, diretor de arte, guru e amigão. Sob uma dessas funções-qualidades me encontrou, em um período (77) no qual eu só tinha uma preocupação-função, a de “autor” (como fazer lindos quadrinhos subversivos). Em termos simples, e com o bom senso de depois, agora para mim é claro como aquele encontro tenha mudado a minha razão de ser, e tenha, de algum modo, me tamburinizado: de autor de quadrinhos a editor, fustigador da cretinice, gráfico e gostosão. Para ele não significou absolutamente nada, uma vez que todas essas coisas já estavam dentro dele; funcionou mais como um catalizador das minhas vontades... Para falar de Stefano apenas como desenhista/inventor de HQ, me limito a destacar que o “golpe” do início é na verdade o “BANG!” de partida de uma trajetória que, etapa por etapa, chega aos “golpes muito mais criativos”, como as histórias xerocadas, remontadas, reescritas de Yorga (revista Cannibale) e Snake Agent (revista Frigidaire). O seu moto, a sua mola, a sua força, era esta: “Não sei desenhar, mas tô pouco me fudendo”. Para mim, que então me danava de um lado para o outro em Milão com as minhas coisinhas, pelas quais me pagavam (quando pagavam) com uma esmola, o “golpe” tamburiniano é uma saudável lição, ensinada também com outros meios: “Tamburotella”, as fotos de moda recicladas, o logo Xerocomix (tamburinização de uma marquinha de uma revista americana), a fita de mongoholi-nazy (obtida gravando ao contrário uma fita que um leitor de Red Vinyle tinha enviado, e como tal revendida – HAHAHAHAHAHA!). Mas será que Tamburini realmente NÃO SABIA desenhar? Deixando de lado o “seu” Rank Xerox, que já entrou para a história, “Fuzzi Rat” é o Strékeno do início dos inícios. Queria dizer mais uma coisa: com todos os anos e as águas passadas, ainda chegam à redação, sob os meus olhinhos horrorizados, coisas mil vezes piores. Como desenho, como idéia, como tudo.

Uma bela lição

O desprezo que senti imediatamente em confronto ao Ranxerox da Cannibale (e que nutro ainda) só foi comparável ao desapontamento que senti ao notar o quanto “aquela ignóbil cagada” chamou a atenção dos leitores da nossa amada revistinha. Com o passar dos números, o desapontamento se transformou em consternação quando mais de uma vez notei, soube, me disseram e vi que Ranxerox era sempre a primeira história a ser lida, não tendo a mínima importância se fosse a primeira, a última ou a do meio do álbum daquele mês.

Mas, como? Por Deus! Eles lêem Ranxerox antes de ler o divino Pazienza? E até mesmo ANTES das MINHAS histórias? Mas como é que não percebem que o desenho é uma merda? E depois o próprio Stefano, que pede para o Andrea Pazienza e o Tanino Liberatore fazerem o lápis, AINDA SAI CONTANDO ISSO? E essa história dos níveis nos quais é dividia a megalópole Roma, mais velha que andar pra frente e que eu, aos quinze anos, já julgava hiper-explorada pelas toneladas de romances de ficção científica que eu tinha lido? Cristo! E como me cansava de repetir, para todos com quem falava, que a sacada semântica “studelinquente” foi literalmente roubada por Stefano de uma história minha, que saiu na Alter Linus um ano antes! E como era mal desenhada! E pior ainda contada! Esse maldito Ranxerox! MAS O QUE AS PESSOAS VÊEM NELE? Bom, vou dizer aos jovens lobos dos quadrinhos o que eu vi, que é também o que Stefano me ensinou, e que demorei tanto para entender:

1-) Não sei desenhar? E quem se importa? Tenho mil possibilidades, desde o xerox à máquina fotográfica ou o amigo que desenha melhor. O importante, absolutamente básico, é ter a idéia, insistir nela e foda-se quem diz que não funciona. É minha, não é? Dá e sobra.

2-) Que importa se “alguns” detalhes dessa idéia são copiados, velhos, cretinos, roubados, rançosos, bobos? Isto eu já sei, afinal não sou nenhum idiota. E justamente por isto, porque não sou um idiota, sei que terei que reajeitar tudo com o “meu” cérebro.

3-) Referir-se ao mundo como se fosse Deus: se depois você o demonstra, alguém vai acreditar!

4-) Trabalhar sozinho pode levar à obra-prima. Mas se trabalharmos em dupla, em três, ou em quatro, e se além disso, pelas minhas insondáveis capacidades empresariais, pré-cognitivas, culturais, cromossômico-caracteriais, etc, consiga fazer com que este trabalho de grupo venha a ser não uma soma não só da cultura total do grupo, mas também da cultura geral de uma geração (melhor se for a minha, as outras vem atrás), então a obra-prima é certa. Talvez não em termos absolutos, não sou Michelangelo, mas nos tempos que correm até mesmo incidir sobre o gosto, e só sobre ele, já começa a ser uma bela prova de genialidade.

5-) E, depois de todo o esforço que fiz para ter a idéia ou o personagem, tenho que me lembrar que o mundo é constituído por aproximadamente 4 bilhões de filhos da puta. Se recuso o conceito, ou o deixo de lado, acabo de mãos abanando. Portanto, de artista sublime devo me transformar em empreendedor de mim mesmo. O que isto quer dizer? Quer dizer que no almoço e no jantar, sem esquecer do lanche, tenho que comer paranóia, esperteza, vontade de estar por cima. Quem diz que meu Ranxerox vai durar anos? Se as pessoas se cansam até de trepar, imagine então de quadrinhos. Os tempos de Walt Disney acabaram, e mesmo assim funcionaram só para ele. Por isso, de jovem lobo em busca de glória tenho que me esforçar, quando a glória chegar, para virar uma velha pantera carniceira. E não esquecer nunca que a minha idéia é uma ÓTIMA idéia, que EU a tive e não outro; que os outros sabem disso e, portanto, no mínimo vão me encher o saco e, no máximo, vão tentar roubá-la: ou ao som de grana (“som” mesmo: se não sou uma pantera carniceira só vou ouvir o tilintar da grana no bolso dos outros), ou ao som da buceta (acontece... acontece...) ou ao som de heroína (acontece... acontece...).

6-) Jogar incansavelmente na defesa de si mesmo e da própria idéia pode dar meningite: os perigos são tantos! Os inimigos são tantos! As dificuldades, as incompreensões e as idiotices são tantas! Por isso, tenho que tomar cuidado: a-) com a consciência de que se emplaquei uma vez, não quer dizer que vou emplacar de novo; b-) se exagero, pego meningite; portanto, olha lá outra idéia! - Ei, mas esse é um círculo vicioso! - Por que, a vida é o quê?



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