Coluna Estranho Encontro
CINEMA BRASILEIRO PELA ÓTICA FEMININA
Por Andrea Ormond
CINEMA BRASILEIRO PELA ÓTICA FEMININA
Por Andrea Ormond
À Meia-Noite Levarei Sua Alma
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1964.
Em meados de 1963, uma história curiosa corria pelo meio cinematográfico de São Paulo: um maluco, acompanhado de um séquito de seguidores que o chamavam de mestre, estava realizando um filme sem qualquer verba em um galpão na capital paulista. O maluco era dono de um obscuro “curso de cinema” e tinha diversas passagens pela imprensa sensacionalista como salafrário.
O maluco em questão era José Mojica Marins – e era quase verdade que naquele momento, realizava um filme sem verba alguma, patrocinado apenas pela idolatria de seus “alunos”. Antes daquele filme, Mojica vinha de duas experiências fracassadas como diretor e chegara a passar fome por conta do seu sonho de filmar. Para a concretização daquela nova aventura, contava com o dinheiro arrecadado entre a turma e... a venda dos móveis e utensílios domésticos da sua casa, além de grande parte das próprias roupas! Mojica não tinha mais casa, sua mulher esperava um filho e ele achou por bem “morar” no estúdio, dentro do caixão que servia de cenário.
Não estamos obviamente falando de um homem comum, estamos falando de um gênio. Sem nunca ter entrado sequer em um curso básico de cinema, aquele paulistano da Casa Verde se metia a dirigir filmes e dar aulas do assunto. Seu pai tinha um cinema, verdade, mas donos de cinema nunca geraram filhos diretores. Quando aos vinte e oito anos de idade sua existência parecia condenada ao desespero – por conta dos retumbantes fracassos naquela que era a única coisa que acreditava fazer –, o jovem Mojica teve um sonho. E o sonho salvou sua vida profissional para sempre.
No sonho Mojica viu Zé. Encrespou-se para o gabinete do “curso” e solicitou que uma das alunas, que fazia as vezes de secretária, transcrevesse suas idéias para o papel. Do medo e do incômodo que sentiu por Zé, criou um argumento. Convocou os alunos e decidiu: “Vamos filmar”. Foi dessa forma que nasceu Zé do Caixão, e em 1964 chegou aos cinemas de São Paulo um filme com o gaiato título de “À meia-noite levarei sua alma”.
Zé do Caixão, não era nem é uma assombração, como muitos ainda pensam. Zé é apenas um cético, um zombeteiro, que acredita na força humana contra a punição divina. É um artífice de Nieztche, por um homem que nunca leu um livro. Talvez Mojica tenha temido o pesadelo com Zé do Caixão, porque Zé do Caixão afinal era ele próprio – e falava de seus medos, angústias e desejos mais contidos.
Em “À meia-noite...” Zé aterroriza uma cidade apenas com sua força. Parodiando o escritor Lúcio Cardoso, Zé do Caixão “não é um homem, é uma atmosfera”. Por onde passa espalha desgraça, covardia, pusilanimidade. Contrariando a ordem da Igreja, come carne de carneiro na sexta-feira santa. Toma dinheiro dos matutos da aldeia e quando um corajoso nega pagamento, decepa-lhe os dedos.
Além de todas estas atividades, Zé também é agente funerário. E, nas horas vagas, sonha em ter um filho, “que perpetue seu sangue”. A esposa não engravida – na vida real a esposa de Mojica também tinha dificuldades de engravidar – e Zé do Caixão dá seu vaticínio: “A mulher que não pode ter filhos não precisa de cuidados” – em seguida, ele a mata.
Zé cobiça a bela Teresinha (Magda Mei, a secretária do curso de Mojica), mas tem o amigo Antônio (Nivaldo de Lima) como rival. Para um homem que tudo pode e que tudo quer, aquilo não é problema. Zé mata Antônio, em cena brilhante. Quando Zé prega seu niilismo e ceticismo, Antônio rebate afirmando-se um conformado com orgulho, um temente a Deus. Zé então apanha uma barra de ferro, assassina Antônio e pergunta: “E agora, de que adiantou sua crença Nele?”.
Depois Zé vai atrás de Teresinha, com quem tem relações sexuais forçadas, enquanto a moça esmaga um passarinho nas mãos. Teresinha se suicida e Zé tem que continuar a matar, para sustentar sua liberdade. As vítimas vão se sucedendo e a descrença e o deboche de Zé aumentam. Tudo culmina em uma volta das almas penadas das vítimas e só nesse ponto é que o filme adquire um tom sobrenatural, de terror inexplicável. Antes Zé era só lógica, era a razão contra a superstição e a crença.
Mojica terminaria o caso melhor se Zé vencesse, triunfasse contra a cidade e provasse que nada existe, que, como ele diz após pisar em um despacho, “estão todos mortos, e mortos não podem fazer mal a ninguém”. Mas a proposta era uma trama além da razão, portanto Zé encontra, no fim da linha, o castigo. E o castigo contraria sua implacável lógica e o joga no difuso, no imponderável, ou como Mojica prefere dizer, nas trevas.
“À meia-noite...” é um filme para poucos. Em 1964, quando foi lançado, Mojica não foi tomado como cineasta, mas como um homem seriamente doente. O sucesso absoluto de público não se converteu sequer em lucro, pois havia vendido seus direitos na estréia por uma ninharia, e só arcou com o ônus das críticas pesadíssimas.
Em resposta, o realizador deu ao povo mais e melhor, em outras pérolas como “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” e “Ritual dos Sádicos”. É certo afirmarmos, portanto, que Mojica nunca fez cinema: o cinema é que morava dentro dele e Mojica apenas precisou colocá-lo, espontaneamente, para fora.
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1964.
Em meados de 1963, uma história curiosa corria pelo meio cinematográfico de São Paulo: um maluco, acompanhado de um séquito de seguidores que o chamavam de mestre, estava realizando um filme sem qualquer verba em um galpão na capital paulista. O maluco era dono de um obscuro “curso de cinema” e tinha diversas passagens pela imprensa sensacionalista como salafrário.
O maluco em questão era José Mojica Marins – e era quase verdade que naquele momento, realizava um filme sem verba alguma, patrocinado apenas pela idolatria de seus “alunos”. Antes daquele filme, Mojica vinha de duas experiências fracassadas como diretor e chegara a passar fome por conta do seu sonho de filmar. Para a concretização daquela nova aventura, contava com o dinheiro arrecadado entre a turma e... a venda dos móveis e utensílios domésticos da sua casa, além de grande parte das próprias roupas! Mojica não tinha mais casa, sua mulher esperava um filho e ele achou por bem “morar” no estúdio, dentro do caixão que servia de cenário.
Não estamos obviamente falando de um homem comum, estamos falando de um gênio. Sem nunca ter entrado sequer em um curso básico de cinema, aquele paulistano da Casa Verde se metia a dirigir filmes e dar aulas do assunto. Seu pai tinha um cinema, verdade, mas donos de cinema nunca geraram filhos diretores. Quando aos vinte e oito anos de idade sua existência parecia condenada ao desespero – por conta dos retumbantes fracassos naquela que era a única coisa que acreditava fazer –, o jovem Mojica teve um sonho. E o sonho salvou sua vida profissional para sempre.
No sonho Mojica viu Zé. Encrespou-se para o gabinete do “curso” e solicitou que uma das alunas, que fazia as vezes de secretária, transcrevesse suas idéias para o papel. Do medo e do incômodo que sentiu por Zé, criou um argumento. Convocou os alunos e decidiu: “Vamos filmar”. Foi dessa forma que nasceu Zé do Caixão, e em 1964 chegou aos cinemas de São Paulo um filme com o gaiato título de “À meia-noite levarei sua alma”.
Zé do Caixão, não era nem é uma assombração, como muitos ainda pensam. Zé é apenas um cético, um zombeteiro, que acredita na força humana contra a punição divina. É um artífice de Nieztche, por um homem que nunca leu um livro. Talvez Mojica tenha temido o pesadelo com Zé do Caixão, porque Zé do Caixão afinal era ele próprio – e falava de seus medos, angústias e desejos mais contidos.
Em “À meia-noite...” Zé aterroriza uma cidade apenas com sua força. Parodiando o escritor Lúcio Cardoso, Zé do Caixão “não é um homem, é uma atmosfera”. Por onde passa espalha desgraça, covardia, pusilanimidade. Contrariando a ordem da Igreja, come carne de carneiro na sexta-feira santa. Toma dinheiro dos matutos da aldeia e quando um corajoso nega pagamento, decepa-lhe os dedos.
Além de todas estas atividades, Zé também é agente funerário. E, nas horas vagas, sonha em ter um filho, “que perpetue seu sangue”. A esposa não engravida – na vida real a esposa de Mojica também tinha dificuldades de engravidar – e Zé do Caixão dá seu vaticínio: “A mulher que não pode ter filhos não precisa de cuidados” – em seguida, ele a mata.
Zé cobiça a bela Teresinha (Magda Mei, a secretária do curso de Mojica), mas tem o amigo Antônio (Nivaldo de Lima) como rival. Para um homem que tudo pode e que tudo quer, aquilo não é problema. Zé mata Antônio, em cena brilhante. Quando Zé prega seu niilismo e ceticismo, Antônio rebate afirmando-se um conformado com orgulho, um temente a Deus. Zé então apanha uma barra de ferro, assassina Antônio e pergunta: “E agora, de que adiantou sua crença Nele?”.
Depois Zé vai atrás de Teresinha, com quem tem relações sexuais forçadas, enquanto a moça esmaga um passarinho nas mãos. Teresinha se suicida e Zé tem que continuar a matar, para sustentar sua liberdade. As vítimas vão se sucedendo e a descrença e o deboche de Zé aumentam. Tudo culmina em uma volta das almas penadas das vítimas e só nesse ponto é que o filme adquire um tom sobrenatural, de terror inexplicável. Antes Zé era só lógica, era a razão contra a superstição e a crença.
Mojica terminaria o caso melhor se Zé vencesse, triunfasse contra a cidade e provasse que nada existe, que, como ele diz após pisar em um despacho, “estão todos mortos, e mortos não podem fazer mal a ninguém”. Mas a proposta era uma trama além da razão, portanto Zé encontra, no fim da linha, o castigo. E o castigo contraria sua implacável lógica e o joga no difuso, no imponderável, ou como Mojica prefere dizer, nas trevas.
“À meia-noite...” é um filme para poucos. Em 1964, quando foi lançado, Mojica não foi tomado como cineasta, mas como um homem seriamente doente. O sucesso absoluto de público não se converteu sequer em lucro, pois havia vendido seus direitos na estréia por uma ninharia, e só arcou com o ônus das críticas pesadíssimas.
Em resposta, o realizador deu ao povo mais e melhor, em outras pérolas como “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” e “Ritual dos Sádicos”. É certo afirmarmos, portanto, que Mojica nunca fez cinema: o cinema é que morava dentro dele e Mojica apenas precisou colocá-lo, espontaneamente, para fora.