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Musas Eternas...
PORQUE O QUE É BOM, É ETERNO...

Pam Grier

Por Daniel Salomão Roque

No final da década de 60 e início dos anos 70, a cultura negra tomou o mundo de assalto: nas ruas americanas, os Panteras Negras travavam tiroteios contra a polícia; o movimento Black Power era manchete de todos os jornais; protestos raciais pipocavam em todos os cantos do mundo; na música, James Brown, Isaac Hayes, Funkadelic, Sly and the Family Stone, Quincy Jones e Curtis Mayfield estavam no auge da criatividade e popularidade; nos quadrinhos, surgiam criações como Lobo (pouco conhecido gibi de faroeste da Dell Comics, escrito por D. J. Arneson e desenhado por Tony Tallarico, onde o mocinho era um pistoleiro negro; não confundir com o honônimo da DC) e Luke Cage. Nunca antes a etnia negra havia provocado tanto barulho. E, até hoje, ainda não superou as façanhas daquela época.

Obviamente, o cinema não passou incólume por toda essa efervescência e tratou logo de presentear os espectadores com mais um fruto da árvore exploitation: os blaxploitations, filmes baratos sobre e para negros (quase sempre também produzidos e dirigidos por eles). Obras como "Shaft", "Superfly" e "Sweet Sweetback's Baadasssss Song", bastante emblemáticas, eram estreladas exclusivamente por negros e ambientadas no submundo da bandidagem, onde ladrões, assassinos, traficantes, prostitutas e cafetões davam a tônica; os brancos praticamente não apareciam, e quando apareciam, eram interpretando policiais racistas. Muito criticado (inclusive por negros mais engajados) devido ao seu uso exagerado de esteriótipos (branco opressor X nigger marginal), o blaxploitation foi um gênero que sumiu de maneira tão rápida quanto apareceu, marcando para sempre a história da cultura pop. Dentre os vários talentos que se revelaram nesse fascinante e hoje cultuado tipo de filme, um se destaca não só por seus papéis antológicos, mas também por sua beleza e carisma: Pam Grier.

Nascida dia 26 de maio de 1949 na Carolina do Norte, EUA, Pamela Suzette Grier é filha de uma enfermeira e de um mecânico das Forças Aéreas, tendo passado toda sua infância em bases militares européias, na companhia do pai. Durante a adolescência, mudou-se com a família para Denver, onde tornou-se modelo e foi backing vocal do cantor Bobby Womack. Aos 18 anos, conseguiu o segundo lugar num concurso local de beleza, em que impressionou os jurados com seu rosto marcante e seios mais do que fartos. A convite do agente hollywoodiano David Baumgarten, passou a morar em Los Angeles; lá, trabalhava como manequim fotográfica e passou a alimentar o sonho de ser uma estrela de cinema, chegando até mesmo a conseguir um emprego de recepcionista nos estúdios do lendário Roger Corman.

Sua estréia nas telonas foi extremamente discreta, mas nem por isso deixou de ser especial: em 1970, ela seria figurante do cult "Beyond the Valley of the Dolls", roteirizado pelo crítico Roger Ebert e com direção do mestre Russ Meyer. Trazendo todas as marcas registradas do cineasta e uma trama tão bizarra quanto rocambolesca, o filme narrava a trajetória de uma banda de rock formada exclusivamente por garotas e empresariada pelo namorado de uma delas. Graças a tia da vocalista, o grupo consegue assinar contrato com o influente produtor musical Ronnie "Z-Man" Barzell e atingir o estrelato, fato que será o pontapé inicial para a decadência moral de todos os personagens da trama. Nossa musa pode ser vista de relance dentre os convidados de uma festa.

Foi em "The Big Doll House", clássico absoluto dos "Women in Prison movies", que Pam Grier de fato conseguiu seu primeiro papel; aliás, podemos ouvir sua voz logo nos créditos iniciais, já que a canção-tema é cantada por ela. Início de uma bem-sucedida parceria entre Grier e o diretor Jack Hill, com quem a atriz faria alguns dos seus mais célebres trabalhos, o filme tem uma premissa simples: norte-americana acusada de assassinato é condenada à prisão numa cadeia de segurança máxima localizada no meio da selva. Sua cela é ocupada por mais cinco presidiárias, dentre elas uma prostituta bissexual "caminhoneira" interpretada por Grier, uma viciada em drogas e uma ativista política. Esta última mantém um relacionamento amoroso com o líder de uma facção revolucionária, e ao saber que o amado e seus camaradas correm risco de vida, arma um plano de fuga para ela e suas companheiras de cárcere. No entanto, a estranha diretora do presídio e um cruel capataz da instituição dificultarão um pouco as coisas. O sucesso desta produção garantiu a participação da atriz em alguns outros WIPs, como "Women in Cages", "Black Mama, White Mama" e "The Big Bird Cage", dirigidos respectivamente por Gerardo de Leon, Eddie Romero e Jack Hill.

Em 1972, Grier fez suas incursões iniciais no blaxploitation, gênero que a transformou num mito. São deste ano as fitas "Cool Breeze", de Barry Pollack, e "Hit Man", de George Armitage, este último uma versão negra de "Get Carter". A consagração definitiva como musa black, porém, só viria no ano seguinte, quando estrelou aquele que talvez seja o título mais amado de toda sua carreira: "Coffy". Obra-prima do cinema B, é um dos muitos filmes protagonizados por mulheres vingativas, sendo eternamente lembrado pelos fãs desse tipo de produção. Aqui, Grier encarna uma enfermeira que se martiriza ao ver sua irmã caçula enveredando pelo caminho das drogas. A partir do momento em que a garota é hospitalizada por injetar uma dose contaminada de heroína, os traficantes tornam-se alvos de uma vingança brutal e violenta. "Coffy" apresentava a atriz no auge de sua boa forma e dando vida a uma personagem cujos métodos de persuasão variavam entre o sexo e a tortura. Feito para concorrer com o também cultuado "Cleopatra Jones" e embalado por composições arrasadoras de Roy Ayers, este clássico é repleto de cenas gráficas: cabeças explodem, um cara é preso no pára-choque de um automóvel e arrastado até a morte, etc.

Ainda em 1973, Pam marcaria presença em duas fitas de horror no mínimo peculiares: "The Twilight People", uma bagaceiríssima atrocidade trash sobre um cientista maluco que vai parar numa ilha habitada por estranhos seres mezzo humanos mezzo animais, gema na qual ela fez o ridículo papel de Ayesa, A Mulher-Pantera; e "Scream, Blacula, Scream", sequência do lucrativo "Blacula" (Black + Drácula = Blacula, sacou?).

A atriz iniciaria o ano de 1974 atuando numa produção bastante atípica na sua filmografia: trata-se de “The Arena”, um filme épico de baixo orçamento dirigido por Steve Garver e pelo monstro sagrado do cinema extremo Joe D'Amato, sendo que o nome deste não consta nos créditos. A ação se passa na Roma Antiga e é focada no cotidiano de um grupo de gladiadoras, uma delas interpretada por Grier, que são vendidas como escravas a um sujeito sádico que promove eventos no Coliseu da cidade. Produzido por Roger Corman, não foi um grande êxito e está longe de ser algo memorável, mas vale como curiosidade.

A próxima empreitada da artista seria uma sequência de “Coffy” - o original rendeu ótimas bilheterias e foi hit até no Japão – entitulada “Burn, Coffy, Burn!”, com Jack Hill mais uma vez na direção. Inexplicavelmente, os produtores mudaram de idéia e, apenas alguns dias antes das filmagens, decidiram que não seria bom transformar a saga da enfermeira numa série. A solução encontrada para cortar qualquer vínculo da nova fita com sua antecessora seria mudar o nome da personagem principal e eliminar qualquer referência à sua profissão. Surgia “Foxy Brown”.

Por motivos óbvios, “Foxy Brown” guarda inúmeras semelhanças com “Coffy”, o que pode causar uma certa má impressão no espectador que não saiba dos bastidores da produção. Pam Grier novamente é a mulher forte que jura vingança contra o crime organizado, dessa vez motivada pelo assassinato de um namorado. Nas suas investigações, descobre uma agência de prostituição que pode estar envolvida no caso e resolve se passar por garota de programa na tentativa de desvendar os segredos daquela máfia. A despeito das filmagens conturbadas – Hill vivia se atracando com o produtor Buzz Feitshans e já afirmou detestar esse filme - “Foxy Brown” é muito bom e possui diversos momentos antológicos, a começar pela abertura “inspirada” em James Bond e a famosa cena em que a protagonista exibe o pênis que decepou de um dos seus desafetos.

Já considerada um ícone, Pam Grier estrelou em seguida diversos outros filmes direcionados ao público negro: "Sheba, Baby", "Bucktown", "Friday Foster" e "Greased Lightning" são só alguns dos mais conhecidos. Ter atingido tamanho patamar foi uma conquista tão gloriosa quanto ingrata: em pouco tempo, os blaxploitations declinaram e a atriz, que era sinônimo do gênero, passou a enfrentar dificuldades cada vez maiores para conseguir papéis decentes. Do final dos anos 70 em diante, ela começou a aparecer regularmente em séries de TV como "O Barco do Amor" e "Miami Vice", tendo amargado um hiato de quatro anos longe do cinema. A partir daí, pouquíssimas são as coisas aproveitáveis de sua filmografia. Uma avalanche de tragédias coroou a década de 80 como a pior não apenas da sua carreira, mas também de sua vida: a primeira delas foi a morte de sua irmã, vítima de câncer; a segunda, a perda do sobrinho, que cometeu suicídio por não suportar a perda da mãe; a terceira e última foi o diagnóstico de que ela teria apenas mais dezoito meses de vida por também padecer da doença. Mediante rígido tratamento médico, conseguiu sobreviver sem nenhuma seqüela, para a felicidade de todos.

Prosseguiu atuando nos anos 90, que se não foram tão brilhantes quanto os áureos tempos setentistas, pelo menos ofereceram à lendária e subestimada intérprete algumas oportunidades interessantes, como as pontas que fez nos filmes "Marte Ataca!" e "Fuga de L.A.", de Tim Burton e John Carpenter respectivamente. Em 1996 ela também participou de "Original Gangstas", uma homenagem de Larry Cohen ao blaxploitation, cujo elenco era quase todo composto pelos antigos astros do gênero.

No ano de 1997, seus antigos fãs se surpreenderam com o lançamento de "Jackie Brown". Dirigido por Quentin Tarantino, um de seus mais badalados admiradores, e escrito especialmente para ela, o filme era uma homenagem à altura da musa, tão negligenciada em épocas recentes. O enredo, costurado com rara habilidade, acompanha o dia-a-dia da personagem-título interpretada por Grier: uma aeromoça da compania aérea mais fuleira dos EUA que, ao ser flagrada contrabandeando dinheiro para um perigoso traficante de armas, acaba se envolvendo numa confusa rede de intrigas, da qual só consegue sair com o auxílio do seu agente de fianças, por quem se apaixona. Tarantino, como bom cinéfilo, entupiu sua obra de referências, construindo uma bela homenagem ao cinema feito por negros e um monumento à figura da atriz: o título da fita e o logotipo usado nos cartazes de divulgação remetem diretamente à "Foxy Brown"; a música que toca na cena inicial é o tema do blax "Across 110th Street"; a música "Long-time Woman", que Grier canta em "The Big Doll House", também faz parte da trilha sonora, etc. O diretor chegou a declarar que a obra não seria feita caso Pam Grier recusasse o papel, e deixa isso bem evidente ao colocar Robert De Niro e Samuel L. Jackson - astros de cachês milionários - como meros coadjuvantes da atriz, que há muito tempo já era uma ilustre desconhecida do grande público. Subestimado pelas platéias e crítica da época, "Jackie Brown" é um dos melhores filmes dos anos 90 e cresce a cada revisão.

É uma pena que nem todos os cineastas atuais sejam tão respeitosos quanto Tarantino quando o assunto são os talentos esquecidos do passado. Em situações assim, todos saem perdendo, sobrando principalmente para os fãs, que são obrigados a ver gente como Pam Grier tendo que fazer parte de bombas como "As Aventuras de Pluto Nash".

FILMOGRAFIA DE PAM GRIER apenas filmes feitos para o cinema

1970 BEYOND THE VALLEY OF THE DOLLS, de Russ Meyer
1971 THE BIG DOLL HOUSE, de Jack Hill
WOMEN IN CAGES, de Gerardo de Leon
1972 BLACK MAMA WHITE MAMA, de Eddie Romero
COOL BREEZE, de Barry Pollack
THE BIG BIRD CAGE, de Jack Hill
HIT MAN, de George Armitage
1973 THE TWILIGHT PEOPLE, de Eddie Romero
COFFY, de Jack Hill
SCREAM BLACULA SCREAM, de Bob Kelljan
1974 THE ARENA, de Steve Carver e Joe D'Amato
FOXY BROWN, de Jack Hill
1975 SHEBA BABY, de William Girdler
BUCKTOWN, de Arthur Marks
FRIDAY FOSTER, de Arthur Marks
1976 DRUM, de Steve Carver e Burt Kennedy
1977 LA NOTTE DELL' ALTA MAREA, de Luigi Scattini
GREASED LIGHTNING, de Michael Schultz
1981 FORT APACHE THE BRONX, de Daniel Petrie
1983 SOMETHING WICKED THIS WAY COMES, de Jack Clayton
TOUGH ENOUGH, de Richard Fleischer
1985 ON THE EDGE, de Rob Nilsson
STAND ALONE, de Alan Beattie
1986 THE VINDICATOR, de Jean-Claude Lord
1987 THE ALLNIGHTER, de Tamar Simon Hoffs
1988 ABOVE THE LAW, de Andrew Davis
1989 THE PACKAGE, de Andrew Davis
1990 CLASS OF 1999, de Mark Lester
1991 BILL & TED'S BOGUS JOURNEY, de Peter Hewitt
1993 POSSE, de Mario Van Peebles
1995 SERIAL KILLER, de Pierre David
1996 ORIGINAL GANGSTAS, de Larry Cohen
ESCAPE FROM L.A., de John Carpenter
MARS ATTACKS!, de Tim Burton
1997 FAKIN' DA FUNK, de Timothy A. Chey
STRIP SEARCH, de Rod Hewitt
JACKIE BROWN, de Quentin Tarantino
1999 FORTRESS 2, de Geoff Murphy
JAWBREAKER, de Darren Stein
NO TOMORROW, de Master P
IN TOO DEEP, de Michael Rymer
HOLY SMOKE, de Jane Campion
2000 SNOW DAY, de Chris Koch
WILDER, de Rodney Gibbons
2001 3 A.M., de Lee Davis
LOVE THE HARD WAY, de Peter Sehr
GHOSTS OF MARS, de John Carpenter
BONES, de Ernest Dickerson
2002 BABY OF THE FAMILY, de Jonee Ansa
THE ADVENTURES OF PLUTO NASH, de Ron Underwood
2007 THE CONJURING, de Ryan McKinney




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