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O Homem do Riquixá

Por Filipe Chamy

O Homem do Riquixá
Direção: Hiroshi Inagaki
Miyamoto Musashi, Japão, 1953

Matsugoro (Toshiro Mifune) é um honesto e bronco condutor de riquixá — aquelas espécies de “táxis humanos” japoneses. Simples, de bom coração e um tanto impulsivo, um dia acaba socorrendo um menino (Toshio, interpretado quando pequeno por Kaoru Matsumoto) que vê acidentar-se. Os responsáveis são avisados, a criança é assistida e salva de qualquer problema, e Matsugoro passa a gozar de grande estima e amizade dos pais do garoto, freqüentando sua casa e tendo agradáveis horas em companhia de seus anfitriões. Um dia, o pai do guri (Hiroshi Akutagawa) morre, de uma doença grave e súbita. Após as honras fúnebres, a viúva diz que conseguirá levar a sua vida adiante e acaba contratando o humilde Matsugoro como uma espécie de “criado de estimação”. Ao longo do tempo, o papel do pai é assumido indiretamente pelo homem do riquixá, que brinca com o garoto e o vê crescer, ao mesmo tempo que desenvolve um amor platônico pela patroa.

Remake de Hiroshi Inagaki para seu próprio filme feito em 1953 (e com o mesmo título, “Muhomatsu no issho”), “O homem do riquixá” é uma fábula sobre como o acaso pode relacionar vidas, mas nunca sentimentos. A patroa (Hideko Takamine) sempre se mantém distante de um eventual relacionamento com Matsugoro, nem ao menos percebendo as evidentes emoções do pobre homem; Toshio (Kenji Kasahara), já crescido, não corresponde ao afeto paterno com que o condutor de riquixá o recebe — aliás, chega a envergonhar-se quando seus colegas flagram o tratamento informal e carinhoso com que um serviçal o trata. É a ingratidão, em sua estupidez magnânima. Acompanhamos então a jornada melancólica e depressiva passada no interior machucado de Matsugoro, um homem perdido nos tempos modernos — o filme se passa em meio à grande euforia gerada pela vitória japonesa contra a Rússia alguns anos antes da Primeira Guerra Mundial, o que dá razão a belíssimos e coloridos desfiles comemorativos ao longo do filme; além de termos cortes evidenciados por queimas de fogos de artifício, num recurso belíssimo utilizado à exaustão.

A estrutura do filme garante um programa agradável, com belas imagens, momentos divertidos ou dramáticos, trilha sonora interessante e fotografia impactante. Atuações excepcionais como um todo, mas logicamente o talento dramático de Toshiro Mifune apaga o dos demais, sempre corretos. Os personagens são perfeitamente contextualizados na história e suas ações nunca soam falsas ou mentirosas, e sim uma conseqüência óbvia de suas opções. É um filme de cores bastante fortes e contrastantes, talvez para evidenciar o choque entre o caráter das personagens — mais especificamente, a bondade do homem do riquixá e a opressão da sociedade em que vive. Há uma cena de delírio envolvendo os tortuosos rumos da mente deteriorada de Matsugoro, linda, surrealista, caótica e quase expressionista. Do mesmo modo, as já mencionadas cenas dos desfiles têm bastante música e caos, num provavelmente perfeito retrato dos singulares dias pelos quais o Japão passava.

Se é verdade que a ingratidão por vezes proporciona filmes repletos de viradas e finais brandos, aqui isso não só não é verdade como é totalmente ao contrário: nunca nos surpreendemos propriamente com alguma coisa, pois que elas estão todas em seu lugar e correm naturalmente como na vida, com suas nítidas injustiças; também o final de tanta podridão não poderia ser feliz, pendendo naturalmente a uma tragédia que o tempo apagará, a memória consumirá e a História repetirá, inequivocamente. “O homem do riquixá” certamente não é o filme mais profundo feito no Japão, tampouco o melhor estrelado por Toshiro Mifune, mas certamente é um ótimo filme e que de maneira alguma merece a triste fama que o acompanha: a de, a despeito de ter ganho o Leão de Ouro em Veneza, ser um filme obscuro e pouquíssimo visto e comentado. Quero crer que um dia os cinéfilos entendam que Japão (e Toshiro Mifune) não é apenas mestre Akira Kurosawa.



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