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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque


RANXEROX, de Stefano Tamburini & Tanino Liberatore (1977)


Uma noite qualquer na capital da Itália. Um andróide sobe pelas escadas rolantes e caminha em direção a um bar, onde é aguardado pela namorada. Esta anda sofrendo bastante com uma crise de abstinência e implora ao amado para que consiga um pouco de droga. Enquanto ele liga para um amigo traficante, percebe que sua garota está sendo assediada por um bando de deliquentes juvenis. Furioso, nosso protagonista arranca o orelhão da parede e, utilizando-se do aparelho telefônico, esfacela o rosto de cada integrante da trupe.

É assim que começa Ranxerox, uma das mais controversas séries dos quadrinhos italianos. O leitor que tiver fôlego para encará-la irá se deparar com sequências ininterruptas de ultraviolência, sexo bizarro e perversidades em geral, narradas de maneira tão veloz que beira o absurdo: os momentos descritos no parágrafo anterior, por exemplo, ocupam apenas as três primeiras páginas do episódio inicial!

O cenário desta degradante obra-prima é uma Roma futurista e apocalíptica. Toda a classe e elegância da metrópole européia foram aniquilados, sobrando apenas a decadência, sordidez, indiferença e o que de pior pode passar pela cabeça do ser humano. Neste ambiente superpovoado, as pessoas injetam substâncias ilícitas em estabelecimentos públicos, ninguém se choca quando um maníaco provoca um verdadeiro massacre numa estação de trem, mulheres se prostituem a troco de nada e a pedofilia é o modo mais rotineiro de relacionamento sexual. Em meio a este verdadeiro caos, dois personagens vivenciam aventuras completamente anárquicas e amorais: Ranxerox, o homem-robô-gorila que batiza a série, e sua namoradinha Lubna, uma junkie de apenas 12 anos com cara de criança e jeito de dominatrix (quase uma Christiane F. em versão sci-fi). Tamanha atrocidade em forma de HQ foi produto da parceria entre dois gênios do ofício: o roteirista Stefano Tamburini e o desenhista Tanino Liberatore.

Tamburini, a despeito de sua importância para os quadrinhos, foi uma figura no mínimo enigmática e quase nada se sabe de sua vida pessoal; entretanto, é consenso a opinião de que ele era um cara excêntrico e pouco afeito às convenções sociais. Quando faleceu, vítima de overdose, tinha apenas 31 anos e já era considerado uma celebridade de primeira linha no mundo dos comics: na ocasião de sua morte, alguns fãs exaltados chegaram até a compará-lo com Jim Morrison.

Felizmente, Liberatore teve mais sorte e ainda está vivo. Nascido em 1953 na cidade de Quadri, Itália, estudou Artes Plásticas na universidade e, tão logo se formou, mudou-se para Roma, onde cursou Arquitetura. Nos anos 80, tornou-se um astro da nona arte, publicando nas mais baladas revistas americanas, européias e japonesas. Seu prestígio ultrapassou os limites da banda desenhada - mídia que ainda hoje é vista com maus olhos por uma parcela considerável da opinião pública - e alcançou setores como a televisão, o cinema e até mesmo a música: são de sua autoria a capa do disco de "The Man from Utopia", de Frank Zappa; os figurinos do filme "Asterix e Obelix - Missão Cleópatra", trabalho pelo qual ganhou um César; e inúmeras vinhetas televisivas para emissoras do mundo todo. Hoje em dia, mora na França.

Estes artistas formaram uma dupla tão simbiótica que é impossível falar da carreira de um sem traçar paralelos com a trajetória do outro. A parceria teve início em 1977, quando Tamburini pirou e resolveu editar uma revista underground nos moldes da lendária Zap Comix: surgia a Cannibale. Embora as influências mais evidentes fossem Crumb, Shelton, Griffin e outros cartunistas do udigrudi americano, os colaboradores daquela publicação eram dotados de estilos únicos e posteriormente atingiriam o status de mestres. Como se já não fosse suficiente ter revelado Andrea Pazienza, Filippo Scozzari, Massimo Mattioli e os supracitados Stefano Tamburini e Tanino Liberatore, a Cannibale ainda foi berço do anti-herói que é o tema da coluna deste mês.

A princípio, a criatura se chamava Rank Xerox, o mesmo nome da gigantesca corporação cujas máquinas fotocopiadoras eram uma obsessão de Tamburini. Este era responsável não apenas pelos roteiros, mas também pelo desenho, que antes de ser arte-finalizado era retocado pelos desenhistas mais competentes da revista. As histórias eram em preto & branco, curtas - raramente ultrapassavam as quatro páginas - e ainda não eram tão boas, mas já mostravam o quão especial era aquele andróide. Foi uma questão de tempo para que a empresa honônima descobrisse o personagem, acontecendo o inevitável: os altos executivos não ficaram nenhum pouco satisfeitos ao verem sua marca sendo associada a um robô pedófilo e boçal que proferia frases como "Deixe-me bater uma punheta, sua puta". Sob ameaça de processo, Tamburini efetuou uma ligeira modificação - Rank Xerox virou Ranxerox, e todos ficaram contentes.

Com o término da Cannibale, o casting da publicação logo se envolveu numa outra empreitada, ainda mais radical que a anterior. Tratava-se da Frigidaire, um gibi diferente de tudo o que já havia sido feito antes e que a cada folha esbanjava inovação. Mais do que uma revista de quadrinhos, a Frigidaire era uma revista de comportamento: além das HQs de praxe, nela havia também matérias sobre música, política, pornografia e literatura. Só para ficar nos exemplos mais conhecidos, o número de estréia - datado de 1980 - trazia resenhas irreverentes de discos lançados na época; uma entrevista com a banda DEVO; uma reportagem sobre o alto índice de criminalidade nos países da América Central; outra sobre abrigos nucleares em Nova Iorque; fotos brutais de pessoas que morreram em acidentes decorrentes de práticas sexuais sadomasoquistas; e um artigo sobre a obra de Raymond Chandler, que acompanhava a primeira parte de uma HQ de Scozzari que se baseava num roteiro do famoso escritor. E dentre os quadrinhos, o carro-chefe era a nova fase de Ranxerox.

Ranx continuava sujo, tosco, podre e doentio, mas algumas alterações saltavam aos olhos. As histórias não mais se restringiam a uma curta duração e tornaram-se mais longas, sendo cada uma constituída por cerca de 40 páginas que eram publicadas gradualmente ao decorrer das edições da revista. E Tamburini largou a arte, encarregando esta função a Liberatore. O desenhista, por sua vez, deixou o PB de lado e inseriu deslumbrantes cores nas ilustrações da série. Mestre da imagem, Liberatore impregnou o universo do anti-herói com uma identidade visual inconfundível. Seu traço era ao mesmo tempo caricato e realista: profundo conhecedor de anatomia, conseguia a proeza de elaborar figuras humanas onde os detalhes grotescos eram acentuados de maneira bastante discreta, obtendo um resultado mais verossímil, mas não menos aterrador - visando atingir o máximo de impacto, o artista era adepto de técnicas e experimentações das mais malucas, incluindo o uso de maquiagem no rosto dos personagens! De fato, a sensação que se tem ao observar suas ilustrações é de que a qualquer hora o sangue, o esperma, os miolos, as vísceras e as fezes podem espirrar na nossa face.

O que talvez mais impressione na leitura de Ranxerox é a habilidade de Tamburini em passear pela ficção científica sem medo de, quando necessário, agarrar-se aos clichês do gênero e fazê-los parecerem extremamente originais (ver texto de Scozzari anexado nesta edição da Zingu!). Em contrapartida, não são poucas as vezes em que ele acrescenta na trama alguns elementos que passariam batido em outro tipo de história mas que causam bastante estranhamento numa sci-fi, tais como carros vintage, monumentos históricos da antiguidade, bandas do pós-punk britânico, astros de Hollywood, etc. A dupla tinha plena noção de que sua obra era apenas uma HQ e frequentemente lançava mão da metalinguagem para advertir o publíco de que tudo aquilo era mentira: em diversas ocasiões podemos avistar "figurantes" lendo exemplares da Frigidaire ou de algum modo fazendo referência aos quadrinhos, chegando ao cúmulo de Lubna, em determinado momento, dizer que "está cansada de vagabundear dentro de um gibi de merda". Por outro lado, o roteirista tinha uma imaginação tão fértil para criar absurdos que o maior prazer em ler o que ele escrevia não reside na apreciação de um enredo bem construído ou na beleza estética de suas palavras, mas sim em adivinhar qual seria a próxima bizarrice que cruzaria o caminho dos protagonistas.

As características mencionadas acima se fazem presentes de modo gritante logo na primeira história longa do personagem, cujo início descrevemos na abertura deste texto. Nela, Ranxerox e Lubna são traídos pelo traficante em quem confiavam e são entregues a um estranho artista plástico, que sequestra a garota e sabota o cérebro eletrônico do andróide, com o objetivo de utilizá-lo como ferramenta para matar o filho, um renomado crítico de arte que anda metendo o pau na última exposição do papai. Daí em diante, somos brindados com imoralidades a granel, apresentadas como se fossem a coisa mais normal deste planeta: sexo "quase implícito" com menores de idade, uma angelical ciganinha tendo suas frágeis mãos dilaceradas, chacinas em ferrovias, pescoços quebrados, um maníaco que alivia suas frustrações disparando balas nos transeuntes e até mesmo o robô fazendo uma performance como sósia de Fred Astaire!

O segundo episódio - que começa de onde termina o primeiro mas pode ser lido individualmente - não fica atrás no quesito esquisitice, se inspirando no romance "Crash" (anos antes de Cronenberg realizar seu filme) para traçar uma trama que aborda as relações existentes entre morte, acidentes de carro, mutilações e prazer sexual. A grande sacada, porém, está no clímax, onde Tamburini, com conotações completamente distintas das originais, recria a célebre corrida de bigas do clássico "Ben Hur".

Em abril de 1986, a dupla mal tinha concluído o terceiro capítulo quando o roteirista exagerou na heroína e morreu. Nessa época, a criação de Tamburini já era uma mania, sendo editada em revistas como a norte-americana Heavy Metal, a espanhola El Víbora, a francesa L'Echo des Savanes e a brasileira Animal. Levando em consideração a qualidade artística da obra, o sucesso obtido por Ranxerox dentro do nicho das HQs acaba não parecendo tão surpreendente, mas mesmo assim é de se espantar como uma série tão extrema possa ter agradado o grande público com tamanha intensidade: quando lançado no Brasil em meados da década de 80, muros foram grafitados com a cara do personagem, os gibis se esgotaram em pouquíssimo tempo e os cartazes de divulgação eram roubados por fãs ardorosos. No exterior, Ranx foi parodiado (Wanxerox, de Bob Fingerman), ganhou jogo de videogame e sua adaptação cinematográfica já foi anunciada uma infinidade de vezes: na melhor das hipóteses o filme seria falado em italiano e dirigido por Chris Cunningham (responsável pelos clipes do Aphex Twin); na pior, o andróide seria interpretado por Arnold Schwarzenegger, numa superprodução da Warner que amenizaria a violência e transformaria o protagonista num soldado patriótico a serviço do governo norte-americano.

BIBLIOGRAFIA BRASILEIRA DE RANXEROX

- Ranxerox em New York

Animal #1 Capa: Ranxerox, de Stefano Tamburini & Tanino Liberatore
Animal #2 Capa: Kraken, de Jordi Bernet & Antonio Segura
Animal #3 Capa: Burton & Cyb, de Antonio Segura & José Ortiz
Animal #4 Capa: ilustração de Jordi Bernet
Animal #5 Capa: Ranxerox, de Stefano Tamburini & Tanino Liberatore
Coleção Animal #2 Capa - Ranxerox, de Stefano Tamburini & Tanino Liberatore (o episódio completo num único volume e com tradução direta do original em italiano, acrescido de páginas inéditas)

- Feliz Aniversário, Lubna

Animal #15 Capa: Ranxerox, de Stefano Tamburini & Tanino Liberatore
Animal #16 Capa: Torpedo, de Sanches Abuli & Jordi Bernet
Animal #17 Capa: Bionda, de Franco Saudelli
Animal #18 Capa: ilustração de Jaime Martin

- Amém

Heavy Metal BR #11 Capa - Gullivera, de Milo Manara
Heavy Metal BR #12 Capa - ilustração de Simon Bisley
Heavy Metal BR #13 Capa - Ranxerox, de Stefano Tamburini & Tanino Liberatore



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