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Coluna CINEMA Extremo
ONDE O CINEMA PODE SER VIOLENTO...

Por Marcelo Carrard

A Ilha
Direção: Kim Ki Duk
Seom, Coréia do Sul, 2000.

Em outubro do ano 2000, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o público foi surpreendido por uma produção vinda da Coréia do Sul, que causou escândalo, revolta e admiração para os que a assistiram: A Ilha, um filme escrito e dirigido pelo então desconhecido Kim Ki Duk. Com essa produção polêmica o Cinema vindo da Coréia do Sul começou a chamar a atenção de críticos e cinéfilos do Ocidente. Marcadas por uma riqueza e variedade estético-narrativa essas produções tem lugar de destaque dentro da Cinematografia Asiática Contemporânea. Com uma narrativa de momentos extremos, personagens inusitados e uma poesia visual estranha e bela, A Ilha surge como uma revelação naquele momento e ainda ganha seu lugar de destaque dentro do que denominamos de Cinema Extremo.

O cenário da trama é um lago habitado por pescadores solitários que vivem em pequenas casas flutuantes, numa excelente solução de Direção de Arte que cria a tensão dessas pequenas casas que surgem como ilhas alegóricas. Flutuando nesse lago os seres estranhos que vivem no lugar tem como ponte com o continente uma bela jovem chamada Hee-Jin, interpretada com rara sensibilidade pela atriz Jung Suh. Essa protagonista feminina não fala uma palavra sequer durante todo o filme. Ela vende mercadorias para os pescadores durante o dia e seu próprio corpo durante a noite. Vemos o cotidiano dessa jovem mulher cuja beleza parece um alívio para aquele ambiente de tanta melancolia e fealdade. Durante o filme vemos cenas de crueldade contra animais, ao menos para os padrões ocidentais, onde comer um peixe ainda vivo pode ser encarado como crueldade. A questão da jovem mercadora/prostituta estar isenta de expressão pelas palavras nos remonta a um filme posterior de Duk, o belo Casa Vazia, 2005, onde o casal de protagonistas não fala uma palavra sequer. Nesse silêncio a expressão dos atores se configura nos olhares, nos gestos que vão da sutileza a violência extrema, através das polêmicas e angustiantes seqüências de auto-mutilação que são encenadas em A Ilha.

O tema do suicídio surge no filme com o encontro da jovem Hee-Jin com um dos perturbados e solitários habitantes das pequenas casas flutuantes. A primeira cena de auto-mutilação é encenada de maneira surpreendente causando o choque imediato do público que tem uma reação de intensa catarse na sala de cinema. Algumas pessoas se levantaram e deixaram a sala de exibição na sessão em que eu estava, uma pena, perderam a chance de ver o interessante percurso traçado pelo diretor, que conduz seus personagens por caminhos surpreendentes. A auto-mutilação é feita com anzóis. O homem os engole e permanece debaixo d’água como um peixe fisgado, com o sangue turvando essa água que parece cercar todos os cenários do filme nessa espécie de “Dramaturgia Insular”, repetida pelo diretor no recente filme: O Arco. Aos poucos os pescadores e os peixes parecem se mesclar com a utilização dos anzóis como forma de auto-punição, recalque e busca de uma redenção através da dor extrema, dos limites dessa dor sobre os corpos.

Práticas espirituais ligadas a auto-mutilação existem em diversos países da Ásia. Nas Filipinas homens se crucificam na Sexta-Feira Santa, na Tailândia existem homens que durante rituais religiosos, em transe profundo, perfuram seus corpos com ganchos e caminham sobre lâminas sem se ferirem, o que se repete em outros países da região. Duk, em suas expiações espirituais que o levaram para uma obsessiva visão budista do mundo, parece ao mesmo tempo estar testando seu público, a tolerância deste com relação ás dores do corpo e da alma. A obsessão ligada a sexualidade e a auto-mutilação em A Ilha cria uma agonizante história de amor doentia entre seres estraçalhados emocionalmente. A cada momento a relação entre a jovem e o pescador suicida, iniciada por uma situação limite, se torna mais desesperada conduzindo a mulher a um ato cruel de auto-mutilação genital, em uma seqüência mais sugerida pelo som e pela interpretação vigorosa da atriz do que revelada ao espectador de forma gráfica.

Os anzóis surgem como o elemento de condução das personagens para uma busca interior abissal, sem retorno. As seqüências finais constroem momentos de uma beleza monumental como a do corpo despido da mulher flutuando em estado de suspensão dentro d’água. São pequenos quadros filmados com maestria por Duk revelando os instantâneos dessa jornada de auto-destruição, redenção e renascimento que as personagem vivem durante todo o filme. Da mais pura amargura e fealdade, Duk, em A Ilha, nos transporta para o sublime, de maneira não muito ortodoxa e com momentos absolutamente perturbadores, mas no final se configura o sublime levando os espectadores mais sensíveis às lágrimas.

A Ilha é um filme difícil de fato, senão não estaria aqui nessa galeria de produções extremas. Sua fábula grotesca onde além da auto-mutilação existe espaço para a abjeção e a escatologia, nos remete a um profundo pesadelo de onde não conseguimos escapar mas que no final nos desperta para uma experiência estética inesquecível. Com uma fotografia que vai da gélida melancolia até a elaboração extrema, principalmente nas cenas noturnas e submarinas, A Ilha surge também como um retrato profundo da solidão e do desespero que conduzem muitas vezes os seres para o abismo. A cruel solidão em que vivem as personagens em suas “ilhas” se expressa com a auto-mutilação dos corpos, mas as feridas mais profundas estão em suas almas, com certeza.

A Ilha teve diversos problemas com a censura ao redor do mundo, tendo sofrido diversos cortes em muitos países como no Reino Unido e na Irlanda. Jamais foi lançado no Brasil, sequer em DVD, mesmo com o sucesso e o retorno positivo de boa parte do público que assistiu o filme na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Somente alguns anos após com o deslumbrante: Primavera, Verão, Outono, Inverno e Primavera, que as produções de Kim Ki Duk passaram a ser lançadas comercialmente no Brasil. Infelizmente, embora tenham anunciado seu lançamento várias vezes por aqui, até hoje não tivemos a sorte de ver A Ilha comercialmente lançado no Brasil. Uma grande lacuna a ser preenchida por algum distribuidor corajoso e com bom gosto e sensibilidade cinematográfica.



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