Dossiê Ozualdo Candeias
A Freira e a Tortura
Direção: Ozualdo Candeias
Brasil, 1983.
Por Marcelo Carrard
Dez anos depois de Caçada Sangrenta Ozualdo Candeias lança um curioso filme repleto de características singulares no que se refere a mistura de gêneros e subgêneros: A FREIRA E A TORTURA. Produzido e protagonizado por David Cardoso, o filme tem como destaque do elenco a atriz Vera Gimenez no papel de uma freira ligada a uma espécie de Pastoral das Favelas ligada a grupos de Esquerda em plena Ditadura Militar no Brasil. Vemos inicialmente a mulher religiosa vestindo o hábito tradicional que cobre seu corpo deixando somente seu rosto a mostra. Ela percorre ambientes sórdidos, com prostituas doentes e um clima de tensão e violência no ar. Em seguida começa um trabalho com os habitantes de uma favela na periferia de São Paulo, vestindo roupas convencionais ela transita entre os barracos mostrados de maneira realista, sem efeitos de fotografia encobrindo a realidade daquele ambiente e as pessoas marginalizadas que o habitam.
Com sutileza Candeias fala de política sem ser panfletário e mostrando ao espectador sua visão muito honesta da miséria, sem recursos maniqueístas. O encontro entre a freira com o agente da repressão política interpretado por David Cardoso revela mais uma vez a capacidade de Candeias em extrair de atores marcados por um esteriotipo, como David Cardoso e Vera Gimenez, atuações fortes e contundentes. Cardoso encarna um torturador escroto, vulgar, ameaçador. Sua relação com a freira interpretada por Gimenez é marcada por uma crescente tensão sexual que será encenada até o final do filme. Na prisão, clandestina, a freira testemunha as atrocidades e aberrações daquele espaço hermético do cárcere. Além da imagem de Gimenez com o hábito de freira, que insere na trama elementos do Nunexploitation, vemos a rotina de torturas e práticas sexuais encenadas na prisão com mulheres aprisionadas, que nos remetem aos clássicos WIP. Candeias assim mistura subgêneros e os recria mostrando seqüências de um anti-erotismo que beira o grotesco com figuras masculinas e femininas desnudando corpos repletos de fealdade e abjeção.
A tensão central de A Freira e a Tortura fica mesmo em torno da relação de atração e repulse que nasce entre o carrasco, e sua vítima aprisionada. Cardoso usa a sexualidade como arma de seu personagem torturador para derrubar psicologicamente sua vítima que por ser freira teme ter sua virgindade violada. Esse clima de assédio sexual ligado à tortura e o suspense da entrega da freira que aos poucos deseja seu torturador conseguem conduzir bem o filme até seu alegórico final. Vemos Cardoso se desnudando explicitamente diante de Gimenez como demonstração de força. O desejo se realiza posteriormente em uma situação limite, encenada de maneira realista em uma ruína próxima a uma ferrovia. Ao optarem pela entrega ao amor e o desejo, o casal de protagonistas sabe que está condenado ao abismo...
O filme tem como curiosidade uma inusitada cena de sexo entre homens rapidamente encenada durante uma orgia, numa das celas da prisão. Candeias ousa não só por tratar dessa questão de explicitar a homossexualidade masculina, um tabu até hoje no Cinema Brasileiro, mas também ousa por falar abertamente de tortura e repressão política em uma época de transição pela qual o Brasil passava no momento em que o filme foi lançado.
Com relação ao final alegórico temos um momento onde explicitamente elementos do Nunexploitation se revelam, na cena em que Vera Gimenez despe o hábito de freira para se lançar num idílio onírico com o amante também despido. Candeias parece acreditar nesse momento no grande poder redentor da natureza como único espaço possível para a plena liberdade dos seres em busca de seu gozo. Menosprezado por alguns, aclamado como grande obra por outros, A Freira e a Tortura vai além de um possível título erótico da longa produção de David Cardoso na Boca do Lixo de São Paulo. O filme surge como uma ruptura nessa produção de Cardoso que tem nesse filme seu grande trabalho de ator. Detalhe interessante é a presença de seu filho David Cardoso Junior no papel do filho de seu personagem que nos intervalos das sessões de tortura vive uma pacata vida familiar. Candeias não humaniza a figura do torturador, pelo contrário, mostra essa criatura como um burocrata que faz o “trabalho sujo” na manutenção do que o Governo Militar chamava de “Segurança Nacional”. As imagens de grande força dramática de A Freira e a Tortura foram fotografadas pelo próprio Candeias que acumulou as funções de Diretor do filme e também de Fotógrafo. As figuras grotescas que encenam as orgias são um capítulo a parte dentro do filme. Corpos isentos de sensualidade, encenações over e situações bizarras acentuam o caráter grotesco dessas encenações “anti-eróticas”. Um filme que merece ser visto com olhos isentos de preconceitos para descobrir as muitas qualidades desse grande filme de Ozualdo Candeias.
A Freira e a Tortura
Direção: Ozualdo Candeias
Brasil, 1983.
Por Marcelo Carrard
Dez anos depois de Caçada Sangrenta Ozualdo Candeias lança um curioso filme repleto de características singulares no que se refere a mistura de gêneros e subgêneros: A FREIRA E A TORTURA. Produzido e protagonizado por David Cardoso, o filme tem como destaque do elenco a atriz Vera Gimenez no papel de uma freira ligada a uma espécie de Pastoral das Favelas ligada a grupos de Esquerda em plena Ditadura Militar no Brasil. Vemos inicialmente a mulher religiosa vestindo o hábito tradicional que cobre seu corpo deixando somente seu rosto a mostra. Ela percorre ambientes sórdidos, com prostituas doentes e um clima de tensão e violência no ar. Em seguida começa um trabalho com os habitantes de uma favela na periferia de São Paulo, vestindo roupas convencionais ela transita entre os barracos mostrados de maneira realista, sem efeitos de fotografia encobrindo a realidade daquele ambiente e as pessoas marginalizadas que o habitam.
Com sutileza Candeias fala de política sem ser panfletário e mostrando ao espectador sua visão muito honesta da miséria, sem recursos maniqueístas. O encontro entre a freira com o agente da repressão política interpretado por David Cardoso revela mais uma vez a capacidade de Candeias em extrair de atores marcados por um esteriotipo, como David Cardoso e Vera Gimenez, atuações fortes e contundentes. Cardoso encarna um torturador escroto, vulgar, ameaçador. Sua relação com a freira interpretada por Gimenez é marcada por uma crescente tensão sexual que será encenada até o final do filme. Na prisão, clandestina, a freira testemunha as atrocidades e aberrações daquele espaço hermético do cárcere. Além da imagem de Gimenez com o hábito de freira, que insere na trama elementos do Nunexploitation, vemos a rotina de torturas e práticas sexuais encenadas na prisão com mulheres aprisionadas, que nos remetem aos clássicos WIP. Candeias assim mistura subgêneros e os recria mostrando seqüências de um anti-erotismo que beira o grotesco com figuras masculinas e femininas desnudando corpos repletos de fealdade e abjeção.
A tensão central de A Freira e a Tortura fica mesmo em torno da relação de atração e repulse que nasce entre o carrasco, e sua vítima aprisionada. Cardoso usa a sexualidade como arma de seu personagem torturador para derrubar psicologicamente sua vítima que por ser freira teme ter sua virgindade violada. Esse clima de assédio sexual ligado à tortura e o suspense da entrega da freira que aos poucos deseja seu torturador conseguem conduzir bem o filme até seu alegórico final. Vemos Cardoso se desnudando explicitamente diante de Gimenez como demonstração de força. O desejo se realiza posteriormente em uma situação limite, encenada de maneira realista em uma ruína próxima a uma ferrovia. Ao optarem pela entrega ao amor e o desejo, o casal de protagonistas sabe que está condenado ao abismo...
O filme tem como curiosidade uma inusitada cena de sexo entre homens rapidamente encenada durante uma orgia, numa das celas da prisão. Candeias ousa não só por tratar dessa questão de explicitar a homossexualidade masculina, um tabu até hoje no Cinema Brasileiro, mas também ousa por falar abertamente de tortura e repressão política em uma época de transição pela qual o Brasil passava no momento em que o filme foi lançado.
Com relação ao final alegórico temos um momento onde explicitamente elementos do Nunexploitation se revelam, na cena em que Vera Gimenez despe o hábito de freira para se lançar num idílio onírico com o amante também despido. Candeias parece acreditar nesse momento no grande poder redentor da natureza como único espaço possível para a plena liberdade dos seres em busca de seu gozo. Menosprezado por alguns, aclamado como grande obra por outros, A Freira e a Tortura vai além de um possível título erótico da longa produção de David Cardoso na Boca do Lixo de São Paulo. O filme surge como uma ruptura nessa produção de Cardoso que tem nesse filme seu grande trabalho de ator. Detalhe interessante é a presença de seu filho David Cardoso Junior no papel do filho de seu personagem que nos intervalos das sessões de tortura vive uma pacata vida familiar. Candeias não humaniza a figura do torturador, pelo contrário, mostra essa criatura como um burocrata que faz o “trabalho sujo” na manutenção do que o Governo Militar chamava de “Segurança Nacional”. As imagens de grande força dramática de A Freira e a Tortura foram fotografadas pelo próprio Candeias que acumulou as funções de Diretor do filme e também de Fotógrafo. As figuras grotescas que encenam as orgias são um capítulo a parte dentro do filme. Corpos isentos de sensualidade, encenações over e situações bizarras acentuam o caráter grotesco dessas encenações “anti-eróticas”. Um filme que merece ser visto com olhos isentos de preconceitos para descobrir as muitas qualidades desse grande filme de Ozualdo Candeias.