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Dossiê Ozualdo Candeias

Ponto de partida avançado

Por Jairo Ferreira

Os verdadeiros grandes filmes ainda não foram feitos e não serão obra das grandes empresas, mas de amadores, no sentido literal, de gente apaixonada, sem fins comerciais. E esses filmes serão feitos de arte de verdade.

Robert Flaherty

Numa pequena sala do Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo, então na rua Jaceguai, assisti aos primeiros copiões de A margem e presenciei algumas rusgas de Candeias, sandálias havaianas ou não, com o montador Máximo Barro, “muito preocupado com os escândalos amorosos de Hollywood”. Candeias já tinha feito quase tudo sozinho: roteiro, produção, fotografia adicional e direção; não custava perder alguns dias na montagem e garantir a integridade do filme, fotograma por fotograma. O crítico Rubem Biáfora também assistiu, ficou muito bem impressionado, e logo chamou Candeias de “Pasolini brasileiro” (O Estado de S. Paulo, 5/2/1967):

“Em A margem, que foi feito em tempo e condições recordes, com orçamento baixíssimo e absoluta parcimônia de recursos técnicos, Candeias procurou narrar histórias paralelas que não se entrosam, mas no final dão unidade à ação fílmica. Numa delas ele buscou uma inovação: a narração inteiramente em câmera subjetiva, processo que lhe inédito (e o diretor patrício, com toda a simplicidade, declara ignorar que, já em 1946, Robert Montgomery, com A dama do lago, havia feito um filme inteiro por esse sistema). Já na segunda, narrando uma história entre verista e simbólica, indiscutivelmente ligada ao mais genuíno primitivismo paulistano, Candeias apresenta uma obra com características tais que o tornam – a julgar pelo cinqüenta por cento do copião que nos foi dado apreciar – uma espécie de Pasolini brasileiro, de Pasolini paulista.”
O marginal Ozualdo Candeias, um dos raros cineastas brasileiros a andar a pé pela cidade, estava muito inquieto e preparou diversas sessões especiais antes do lançamento. Lembro-me de uma em que se falou em surrealismo e impressionismo, remetendo o barco da morte que aparece no filme (e que curiosamente lembra o barco de Mário Peixoto em Limite/30) à mitologia grega de Caronte. Candeias estava lisonjeado, mas reduziu as pretensas erudições ao arroz-com-feijão do dia-a-dia. Biáfora já tendo assistido ao filme inteiro, voltou a carga em sua seção dominical (17/2/1967): “Uma total surpresa. Uma obra difícil [...] uma obra singular, ao mesmo tempo realista, fantástica e poética [...] Lembra Aleluia, de King Vidor, Mais próximo do Céu, de William Keighley, Uma cabana no Céu, de Minnelli, O pequeno rincão de Deus, de Anthony Mann, Himlaspelet, de Sjoberg [...] Uma obra absolutamente pessoal, isenta de influências ou citações à maneira de Godard ou Glauber Rocha, com a qual Candeias pode, sem desdouro, reivindicar para si o título de autêntico primitivo”.

O crítico Alex Viany também tentou descobrir influências: “Em atmosfera e intenções, o filme de Candeias lembra certas coisas de avant-garde francesa da década de 20; seu lumpen-prole-tariat parece ter saído de certos filmes europeus e norte-americanos sobre a crise que marcou a segunda metade da década de 20 e a primeira de 30”.

Em que pese a excelência dos filmes que faria a seguir, com destaque para o bangue-bangue Meu nome é Tonho (1969), foi com Zézero (1974) que Candeias procurou novos caminhos. Em Zézero, a miséria é tanta que um personagem não usa seu cofre poupança para depositar moedas e sim para tomar leite. Já comida é o que não falta em As bellas da Billings (1986): num rancho onde duas beldades (Claudette Joubert e Silvia Gles) vivem com a mãe, a miséria é grande, mas está sobrando comida (na falta de panelas, comida é guardada até no urinol!); e, é claro, os personagens comem com a mão. Candeias conta que quem adorou essas seqüências foi Carlos Augusto Calil, diretor da Embrafilme (1985-6).

As bellas da Billings é puro cinema – de transgressão. Feito com um suborçamento, não tem o acabamento de Aopção, mas extrai do nada o néctar. Há cenas eróticas antológicas, que sugerem ou quase mostram o sexo. O filme é explícito mesmo no texto (“Vá dá o rabo, sua arrombada” – é assim que a mãe trata a filha) e na canção (“Faca de ponta, espingarda, baioneta; nunca vi couro tão duro como couro de buceta”).

José Mojica Marins não poderia faltar num filme de Candeias e, aqui, ele faz o papel de um herege, um pregador de rua, um falso evangélico. Quando ele vê que seu discurso religioso não está agradando, trata de substitui-lo por texto pornográfico dos mais sórdidos. Eis a ousadia desse filme de transgressão.

Independente em tudo e por tudo, Candeias confessa que nunca foi muito chegado ao cinema de um Glauber, Lima Barreto ou Humberto Mauro, além de fazer muitos reparos aos filmes de Sganzerla, Carlão e Mojica. Nada disso tem importância, claro, e quem o conhece sabe que não se trata exatamente de um megalômano e sim de uma personagem rara, intransigente em seus métodos de trabalho e grande contador de casos. Quando toma uma boa cachaça, o que só acontece em ocasiões muito especiais, torna-se extremamente generoso com quase todos. O exmotorista de caminhão nascido no interior de São Paulo continua realizando provocações como A freira e a tortura (1983) e freqüentando a Boca do Lixo com a mesma disposição que o fazia nos anos 60. Primeiro e último marginal entre marginais, Candeias é monumento do experimental em nosso cinema.

Fevereiro 85: tomando um choque ao cair da tarde com Carmelita & Plácido, vem à tona um antigo projeto de Candeias: o livro que ele preparou desde 1976 sobre a Boca do Lixo. Plácido de Campos me informa que Candeias acaba de gravar um amplo depoimento para o MIS, e digo que isso é fundamental e que é necessário gravar também o de todos os cineastas/capítulos do Cinema de invenção. Plácido ainda vê Candeias ao lado de muitos cineastas da Boca do Lixo 69/ 85 & nisso não há contestação: em 1984, Candeias fez direção de fotografia & iluminação em filmes hard-core da Boca do Lixo, lance de sobrevivência & sem preconceito algum. Tudo bem. O trabalho técnico do profissional nada tem a ver com suas mais lídimas proposições (Carlão Reichenbach e Aloysio Raulino acabam de fotografar abacaxis de consumo respectivamente para profissionais como Jean Garret e Ody Fraga). Nada contra. Profissional é profissional. Fiz trilhas sonoras para filmes de consumo & não acho que isso me comprometa em nada. Ao contrário, significou coerência.

Março 85: Pergunto a Candeias a respeito de um livro sobre ele. Mal estar. Alguém estaria preparando, mas Candeias descurte e quer fazer novas fotos. Pergunta como vai o meu livro e eu pergunto: e o seu? O livro de Candeias seria uma espécie de almanaque, contendo mil fotos da Boca, sempre no estilo dele: se Jairo está com Carlão, então colocamos também um Carlos Coimbra; se numa esquina estão os jovens cineastas Conrado Sanchez e Carlos Shintomi, lá vem Candeias com um desconhecido a tiracolo “pra compor uma foto”.

Abril 85: Candeias insiste em dizer que o melhor filme do Mojica Marins é O estranho mundo de Zé do Caixão. Me diz que os dois primeiros filmes do Mojica são “invenções” do Glauber (se refere a Levarei/67) – silencia sobre Encarnação do demônio (projeto mojical de 66 & nunca realizado). Digo que À meia-noite levarei sua alma é “invenção” de Rogério Sganzerla (verbalmente aos amigos desde janeiro 64 e, em documento, desde outubro 1967: Jornal Artes, 1967, texto reproduzido no capítulo “Mojica Marins” desse meu livro, o que mais quer Candeias?). Ano 2000: Celso e o pessoal da FAAP, documentário mais completo sobre a obra de Ozualdo Candeias rodado em 16mm. Duração aproximada de quarenta minutos. Depoimento de Carlão Reichenbach, José Mojica Marins e Jairo Ferreira.

Cinema de invenção – pp. 41-9 – São Paulo, 1986.



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