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Coluna Estranho Encontro
CINEMA BRASILEIRO PELA ÓTICA FEMININA

Por Andrea Ormond

Muito Prazer
Direção: David Neves
Brasil, 1979.

“Muito Prazer”, de 1979, é o melhor filme de um gênio chamado David Neves. Advogado que nunca exerceu a profissão, apaixonou-se pela arte cinematográfica e foi diretor, produtor, assistente e roteirista. O amor de David Neves pelo cinema era tão grande que, conta a lenda, mesmo depois de se tornar diretor consagrado, continuava a aceitar cargos de assistência em filmes de amigos e colaboradores, apenas para fazer aquilo que gostava.

Foi também o mais carioca dos diretores nacionais, dedicando a maior parte da sua filmografia a traçar um painel, rico e generoso, dos hábitos e da gente da Zona Sul da cidade. “Muito Prazer”, primeira parte de uma trilogia de filmes que inclui ainda “Fulaninha” e “Jardim de Alah”, mostra ao mundo uma espécie de paraíso antes da chegada da serpente. A cidade cordial, relaxada, irreverente, abriga o escritório de arquitetura de três sócios.

Ivan (Otávio Augusto), Aquino (Cecil Thirré) e Chico (Antônio Pedro) são homens de temperamentos diferentes, constantemente observados e postos em cheque por um trio de pivetes de rua, vendedores de amendoim.

A relação destes extremos sociais em princípio não é tensa, não amedronta -- pelo contrário, é amistosa e calorosa. Os arquitetos protegem os meninos e perdoam sua existência errática no bairro de classe média alta. Os meninos, por sua vez, olham os arquitetos apenas como as crianças olham os adultos: num misto de curiosidade, deboche e admiração.

Em outro plano da história temos a relação dos arquitetos com suas respectivas esposas. Ivan (Otávio Augusto) é alcoólatra; Aquino (Thiré) reprimido e metódico; Chico escorregadio e solteirão, o que desperta suspeitas sobre sua sexualidade. As esposas de Ivan e Aquino literalmente vagam em torno do trio, até que Nádia (Ítala Nandi), esposa de Ivan, dá o bote em Aquino e passa a ter um caso com o sócio do marido.

Nenhum outro cineasta brasileiro parece captar melhor o espírito de um microcosmo social, com seus valores e coloquialismos. Estamos de fato no Rio no final da década de 70, do princípio ao fim da trama. Todas as gírias se fazem presentes; todos os hábitos, conversas e símbolos. Neves, um homem sedutor e cheio de amigos, nos faz cúmplices de sua aventura, qualquer que seja ela.

“Muito Prazer” rende cenas poéticas e hilárias: Ivan, bêbado, vaga pelos botequins e encontra Nelson Cavaquinho. O pivete tenta vender amendoins para um executivo de Mercedes (Carlos Kroeber) e o executivo, assim que o farol abre, rouba os amendoins do pivete.

A vida dos três sócios vai degradando à medida que o alcoolismo de Ivan se agrava e que a mulher o trai. Por outro lado, os pivetes abandonam sua postura pacífica, de vendedores ambulantes, e assaltam Nádia. A confiança da relação cordial é quebrada. Arquitetos, esposas e pivetes não se entendem mais e apesar da promessa de civilidade, está esgotada a capacidade de diálogo, em qualquer combinação.

“Muito Prazer” foi perfeito em metaforizar o ocaso do Rio e o término das convivências pacíficas no espaço urbano. Ivan sabe que sua mulher o trai com Aquino; a amizade e a sociedade nunca mais serão as mesmas. Os homens agora sabem que não podem confiar nos meninos; eles assaltam e trabalham para um bandido mais velho.

Está encerrada a era da inocência para todos. A cidade-paraíso onde harmonizavam, em pouco tempo virou um grande inferno paranóico. “Muito Prazer” não é só uma obra-prima, é também o documento final de um estilo de vida.



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