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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque

MIRZA - A MULHER VAMPIRO, de Eugênio Colonnese (1967)

É fácil entender por que Eugênio Colonnese é tão conceituado no pequeno, porém fiel, nicho de fãs da HQ nacional: quando nem sequer imaginava em lançar algo por aqui, este verdadeiro mestre já havia colaborado com diversas editoras estrangeiras, adquirindo uma experiência que o colocaria numa posição de destaque entre os desenhistas radicados no Brasil. Nascido na Itália (o ano é desconhecido, pois o artista não gosta de revelar a idade), mudou-se para a Argentina logo na infância e lá publicou seus primeiros trabalhos, no final da década de 40. A extrema qualidade do seu traço não passou despercebida, e em pouco tempo ele estaria em Londres produzindo gibis de temática bélica para a aclamada Fleetway Publications. Em 1957, ainda morando no exterior, travou seu contato inicial com o mercado tupiniquim ao adaptar para os quadrinhos, sob encomenda da Ebal, o texto "Navio Negreiro", obra-prima do poeta Castro Alves. Sete anos depois, ele passaria a viver no nosso país, onde reside até hoje, e a nos brindar com uma infinidade de ilustrações magníficas.

Assim que pisou em solo brasileiro, Colonnese se aventurou por diversos gêneros da nona arte. Além das supracitadas adaptações de obras literárias, fez também gibis românticos endereçados ao público feminino, criou super-heróis nos moldes norte-americanos e lançou outras histórias de guerra similares às que havia publicado na Inglaterra. Contudo, foi no terror que ele concebeu sua mais célebre criatura: Mirza, A Mulher Vampiro. Esta bela e fascinante personagem estreou em 1967 numa revista que levava seu nome, e de lá para cá foi reeditada inúmeras vezes, sempre conquistando novos admiradores.

Surgida um ano antes da mundialmente famosa Vampirella, Mirza não era uma vampira tradicional. Tal qual as beldades hematófagas de Jess Franco, ela não tinha pudor algum em tomar banho de sol e desfilar de biquini por cenários paradisíacos mundo afora. Não se tratava de uma vilã na acepção da palavra, embora fosse abordada desta forma nas primeiras histórias, onde sacrificava inocentes visando apenas satisfazer seu apetite pelo sangue humano. De maneira gradual, a personagem deixaria de ser um poço de maldade para se transformar numa quase justiceira. Convém destacar o advérbio "quase", utilizado na frase anterior: ao contrário do que se pode imaginar, Mirza passava longe de ser uma super-heroína, não apenas por fugir daquilo que se convencionou como sendo politicamente correto, mas também por não ter a mínima pretensão de salvar o planeta. Seu cotidiano pode ser resumido da seguinte forma: aproveitar a vida. Ex-condessa milionária, ela dirigia carrões, praticava esportes radicais, frequentava lugares badalados, convivia com pessoas do meio artístico, era arroz-de-festa nos eventos da alta sociedade e viajava por tudo quanto é ponto turístico do globo: Istambul, Londres, Paris, Cataratas do Niágara, Ipanema, etc. Na maioria das vezes, estas localidades maravilhosas ocultavam pessoas não tão louváveis: tarados, maridos infiéis, esposas interesseiras, psicopatas, contrabandistas, policiais corruptos e governantes negligentes acabavam - por mera obra do destino - cruzando o caminho da vampirona e, ao término da trama, tinham seu líquido vital sugado pela mesma. De modo geral, eram seres repugnantes que recebiam o merecido. Nos bons e maus momentos, estava sempre acompanhada por Brooks, seu mordomo e melhor amigo: senhor de muita cultura, possuía uma aparência das mais grotescas e costumava "fisgar" vítimas para a patroa, por quem nutria um sentimento ambíguo - tão paternal quanto apaixonado.

Independente de qualquer coisa, basta uma breve examinada nas páginas de Mirza para compreender que aquilo só poderia ser obra de um quadrinhista tarimbado. Autor de sequências impactantes, Colonnese é dono de um estilo sóbrio, elegante e mais pessoal do que supomos; estilo este que consiste em linhas espessas, contornos bem definidos, figuras humanas de feições sempre marcantes e um enorme realismo - já é famosa a obsessão do desenhista com detalhes históricos, geográficos, arquitetônicos e anatômicos, os quais pesquisa à exaustão. Para dar cabo de traduzir em imagens o contraditório universo da HQ - que unia morte, ciências ocultas, vampirismo, trevas e violência com o sexo banal, festividades, diversões passageiras e um certo grau de ingenuidade - o artista faz uso de um curioso e inteligente contraponto: enquanto nos trechos leves e tranquilos seu desenho beira a pop art, nas cenas tensas exagera nas sombras e na atmosfera gótica. O resultado é incomparável.

Apesar de Colonnese ter criado a vampira e concebido toda a sua identidade visual, seria injusto não mencionar neste artigo os vários roteiristas que passaram pela série e contribuíram para que ela atingisse o status cult do qual goza atualmente. O primeiro deles foi Luis Meri, que escreveu praticamente todas as histórias da fase inicial da personagem e forneceu as diretrizes para seus sucessores. Escritor competente, Meri abordava temas que se ainda hoje causam algum desconforto, com certeza provocavam um choque ainda maior em 1967/1968. Em "Orgia das Aves", por exemplo, Mirza é convidada para uma festa de gala na qual os figurões da high society não fazem a menor questão de conter seus impulsos mais primitivos; ao consumo generalizado de entorpecentes se segue uma grande suruba, que por sua vez é sucedida por um jogo depravado: todos se embrenham num bosque, onde as mulheres vestem máscaras de animais e são "caçadas" pelos homens, sedentos por exercerem seu poder de dominação sexual. Depois de Meri, vieram Basilio de Almeida, Osvaldo Talo, Sidemar de Castro, Álvaro de Moya, Watson Portela e Franco de Rosa, sendo que o próprio Colonnese já chegou a desenvolver alguns roteiros.

Mirza permanece desconhecida entre o público médio; entretanto, pode muito bem ser considerada uma das mais bem-sucedidas personagens dos quadrinhos nacionais, visto que é frequentemente reeditada e que seu autor continua na ativa até hoje, ilustrando livros didáticos, lecionando desenho em escolas de arte e, claro, produzindo HQs. Grande Colonnese...



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