NUNEXPLOITATION
Por Marcelo Carrard
A dicotomia Sagrado/Profano sempre proporcionou interessantes desdobramentos na Produção Artística. Representações sagradas desconstruídas através de imagens extremas ligadas as tensões do corpo, criam perturbadoras visões de seres desnudados da santidade em uma subversão estética capaz de gerar as mais diferentes reações do espectador. O hermético corpo da mulher religiosa, revestido de um hábito que só revela ao mundo seu rosto, possui uma carga cultural na sociedade fundamentada na tradição Judaico/Cristã de grande intensidade. Uma série de produções cinematográficas romperam esse hermetismo colocando em cena freiras, monjas e afins, em situações diretamente ligadas a sexualidade e a violência extremas. Dentro do que denominamos de Cinema Exploitation, esse conjunto de produções obscuras e geniais ganhou a denominação de NUNEXPLOITATION.
Ao redor do mundo, diferentes diretores contribuíram para a criação de obras subversivas e fetichistas. Podemos citar primeiramente a curiosa tara do Produtor/Ator/Diretor David Cardoso. No filme em episódios do início da década de 80: PORNÔ, ele atua, ao lado da Musa Eterna Matilde Mastrangi o segmento: O PRAZER DA VIRTUDE, onde Matilde se veste de freira para saciar os desejos secretos da personagem de David. Essa subversão da imagem sacra da mulher religiosa foi um lance de coragem de David Cardoso, em plena época da Ditadura Militar, enfrentando a Censura colocando em cena imagens de forte conteúdo erótico relacionadas as taras de um homem que se excita vendo sua parceira vestida de freira. É muito engraçado ouvir a personagem de David agarrando a bela Matilde e chamando-a de “Santinha”.
Ainda citando o trabalho de uma atriz brasileira, destacamos aquele que por muitos é considerado o melhor filme Nunexploitation já produzidos. A atriz: Florinda Bolkan.
Não foi apenas com Lucio Fulci que a atriz cearense Florinda Bolkan colaborou dentro do Horror Cinematográfico Italiano. No mais clássico Nunexploitation italiano: Flavia-La Monja Musulmana aka Flavia – The Heretic, dirigido em 1974 por Gianfranco Mingozzi, surge como representação extrema do gênero feminino com crescentes níveis dramáticos de libertação dogmática iniciada, da figura sacralizada e hermética da Monja em seu claustro até a libertação do corpo e a descoberta do erotismo e do poder através do amante mouro. Filmado em locações na região da Puglia, Itália, próximas ao mar Mediterrâneo, castelos e mosteiros originais da Idade Média serviram como cenários. A jornada de Flavia percorre diversas estações da sua via-crúcis. Quando adolescente vivia um amor proibido por um cavaleiro mouro que, numa alusão à castração, é decaptado pelo seu pai, sendo posteriormente encaminhada a um convento, onde se torna uma monja. Enquanto monja, testemunha torturas inquisitórias e a sexualidade ligada à escatologia, quando testemunha o estupro de uma jovem dentro de uma pocilga e também a castração de um cavalo. Ao se libertar pela primeira vez, redescobre o amor por outro cavaleiro mouro resgatando uma sexualidade e um prazer transgressores e interditos para as mulheres daquela época e sociedade.
Ao negar sua condição de monja, cria uma espécie de tribunal próprio na qual julga os homens em outro espaço interdito para as mulheres, a justiça. Como vingança do estuprador da jovem na pocilga, condena o agressor a ser violentado por jovens camponeses. Sua libertação do corpo hermético da freira/monja através da livre expressão da sexualidade faz com que incentive as outras monjas a praticarem o sexo como forma de libertação em seqüências oníricas de orgias com direito a uma inusitada cena onde Flavia entra dentro da carcaça de um cavalo que está pendurada em um dos espaços do convento. Em uma outra sequência ela desafia o sistema se vestindo como um homem e lutando ao lado do amante com uma armadura que acentua sua figura andrógina de cabelos curtos. Mas sua última transgressão acaba selando seu destino ao negar a condição de esposa do cavaleiro mouro e desejar uma liberdade plena como mulher em uma época onde não existia liberdade para as mulheres. Abandonada, sofre a fúria dos inquisidores e é executada brutalmente como uma espécie de “mártir-pagã”.
A atriz Florinda Bolkan considera este o seu primeiro papel de uma feminista, acentuado pelo pioneirismo e pela coragem de Flavia. Ao contrário de Fulci, com quem teve um relacionamento bastante problemático nos bastidores das filmagens, com Mingozzi a relação foi mais tranqüila e, em várias entrevistas, lembra da figura carinhosa e gentil do diretor no set de filmagens de Flavia- La Monja Musulmana. Uma outra referência dentro do Horror Cinematográfico Italiano que apresenta figuras das monjas é a de um dos últimos filmes de Lucio Fulci, Demonia. Com locações na Sicília, o filme mostra a vingança sobrenatural de monjas condenadas na Idade Média a serem crucificadas por heresias como a prática de orgias seguidas de assassinatos e vampirismo. O surgimento em cena dessas monjas como mortas-vivas acentua características de um discurso anticlerical em Fulci, que nunca aceitou sua excomunhão pela Igreja Católica no início dos anos 70.
Na Itália da década de 70, muitos filmes mostraram mulheres em situações de possessão demoníaca. Houve o desdobramento de Lisa and The Devil de Mario Bava que, numa picaretagem dos produtores virou The House of Exorcism, com cenas filmadas ás pressas com a atriz Elke Sommers tentando imitas a Linda Blair de O Exorcista, que estava fazendo um sucesso brutal na época. Na esteira de O Exorcista veio o bizarro L’Anticristo de 1974, dirigido por Alberto de Martino, com a luxuosa Carla Gravina como a jovem possuída pelo “Coisa-Ruim”, além da participação da grande atriz Alida Valli. Mas nada se compara com a mistura de Cinema de Horror com sexo-explícito feita por Andrea Bianchi no filme Malabimba. Temos em cena uma jovem aristocrática possuída por um espírito libertino em meio ao vai e vem das personagens em uma mansão encenando tórridas cenas de sexo hardcore. Testemunhando toda essa atmosfera de profunda depravação aparece uma inocente freira, a Irmã Sofia, interpretada por Mariângela Giordano, que no final da história é estuprada pela tal moça possuída pelo espírito perverso em uma seqüência inacreditável que só perde para o Blow Job assassino praticado pela tal Malabimba. Nessa galeria de filmes ainda temos o obscuríssimo La Bimba di Satana, 1980, de Mario Bianchi.
Joe D’Amato não poderia ficar de fora dessa “festa” e contribuiu com o Nunexploitation: Convent of Sinners, mais uma produção para figurar entre as clássicas histórias das Monjas de Monza. Uma das “criaturas” de D’Amato, a Musa Laura Gemser também contribui para esse obscuro subgênero com Sister Emanuelle, 1977, onde ela encarna sua tradicional personagem tentando se tornar pura e casta em um convento, só que isso não dura muito tempo, obviamente.
Antes de singrarmos mares em direção ao oriente, não podemos esquecer de alguns filmes europeus interessantes como, por exemplo: Love Letters of a Portuguese Nun, onde o Mestre Jesus Franco nos apresenta uma bela e perturbadora história de uma inocente camponesa, levada para um convento onde ocorrem variados tipos de orgias, torturas e rituais satânicos, em uma produção acima da média com boa fotografia e direção de arte.
Dentro do que se denomina como Cinema de Arte também observamos clássicos como Decameron, de Píer Paolo Pasolini, onde vemos um segmento com freiras em um convento isolado fazendo fila para transar com um esperto camponês que se finge de mudo para trabalhar no tal convento. Essas imagens subversivas incomodaram a Censura brasileira da época que proibiu esse filme por muitos anos. Na produção britânica The Devils, de Ken Russel, vemos uma bela e perturbadora trama onde os delírios de uma freira criam imagens chocantes onde ela se vê com terríveis deformidades físicas numa representação de sua sexualidade reprimida. Essa produção dos anos 70, assim como Decameron, foi proibida pela Censura brasileira do Regime Militar. Mais recentemente, em 1994, o diretor italiano Mariano Baino criou o perturbador Dark Waters onde vemos em ação um grupo de freiras sádicas praticando satânicos rituais de sacrifício em uma ilha isolada.
Chegando no Oriente, mais precisamente no Japão, temos que abrir um parênteses para um Gênio Maldito do Cinema, pouco reverenciado pela crítica mais careta: o criador do sublime Nunexploitation Convent of the Sacred Beast, NORIFUMI SUZUKI. O universo singular de seus filmes é composto de obras poderosas como Beautiful Girl Hunter, com suas cenas ultra-estilizadas de assassinatos e torturas sexuais, e Sex and Fury, onde ele coloca em cenas tórridas de lesbianismo com uma bela japonesa, a atriz do clássico exploitation sueco: Thriller-A Cruel Picture, Christina Lindberg. A composição visual de suas obras é de uma beleza perturbadora, com uma marca autoral poderosa. Esse apuro estético está presente da primeira a ultima cena de Convent of the Sacred Beast. A trama mostra o cotidiano de uma jovem da cidade que decide se tornar uma freira. Sua iniciação no convento é mostrada em um espetáculo visual onde enquadramentos inspirados valorizam os elementos desse ambiente aparentemente sacro, com muitas formas ogivais características da estética gótica. Os jogos violentos de perversão que se seguem mostram cenas de tortura e humilhação com chicotes e muita exploração da nudez das atrizes, como na bela cena da tortura finalizada com uma chuva de pétalas vermelhas e na tórrida cena de lesbianismo entre duas noviças em meio ás flores. O final é digno dos melhores clássicos europeus do Cinema de Horror e temos uma alusão ao horror atômico presente, ou melhor onipresente em vários filmes japoneses. Uma seqüência curiosa mostra um flash back onde vemos uma freira enforcada caindo de um teto de vitrais coloridos. Como essa obra é de 1974, podemos afirmar que Dario Argento foi fortemente inspirado por esse filme para a criação do duplo homicídio inicial de Suspiria, 1977. Ainda falando de filmes japoneses temos uma pequena obra-prima Nunexploitation dirigida por Koyu Ohara em 1979: Wet and Rope, onde vemos novamente a trama de uma jovem inocente que vai para um convento em busca de paz de espírito e se depara com um cotidiano de torturas e fetichistas orgias homossexuais.
Para complementar cito o filme mexicano Alucarda, analisado pelo colega Sérgio Andrade nessa mesma coluna no mês passado, onde existem elementos clássicos dos filmes Nunexploitation. Do México também surge o absurdo Satânico Pandemonium, 1974, dirigido por Guilhermo Martinez Solares, Nunexploitation de cabeceira de muitos fãs do subgênero. Resumidamente esse seria um painel sobre esse conjunto de obras subversivas que merecem ser descobertas por cinéfilos de gosto refinado e curioso.