Coluna CINEMA Extremo
ONDE O CINEMA PODE SER VIOLENTO...
Por Marcelo Carrard
El Topo
Direção: Alejandro Jodorovski
México, 1970. 123 min
Existem obras de arte que ultrapassam todos os limites de seu suporte original. No caso de uma Obra Cinematográfica, poucas se tornaram um Documento, uma Lenda, um Delírio que percorre o imaginário de cinéfilos através das décadas. Como exemplo de extremos quase metafísicos, temos na filmografia do chileno Alejandro Jodorovski um exemplo cristalino desse poder lendário de um Cinema que se transforma em um ritual de pura catarse a cada projeção de suas imagens que se originam dos confins dos labirintos do inconsciente.
EL TOPO, dirigido e roteirizado por Alejandro Jodorovski, também colaborador da trilha-sonora e do figurino, é uma experiência singular, uma Obra-Prima do Cinema Extremo onde somos expostos a fúria e ao desejo de suas imagens inesquecíveis. O cenário é o deserto, o árido simulacro de um apocalipse atemporal. Não estamos exatamente no deserto bíblico, tão pouco no deserto mítico dos faroestes de John Ford, estamos em alguma dimensão além de todos esses cenários, um lugar onde um pistoleiro vestido de negro irá caminhar ao lado do filho, desvendando mistérios e enfrentando demônios. Em um primeiro momento pode até se fazer uma referência dessa figura do pistoleiro, o El Topo do título, interpretado pelo próprio diretor, com o Antônio das Mortes criado por Glauber Rocha. Simplista e patriótica essa leitura pode estar bastante equivocada. Jodorovski conhecia muito bem o Faroeste Italiano e o pistoleiro de negro parece bem mais uma referência ao lendário Django de Corbucci. Ao contrário de Glauber Rocha, Jodorovski domina com maestria dois elementos fundamentais para a criação de uma Obra de Arte Audiovisual: a Montagem e o Roteiro. E ao contrário de Glauber Rocha, Jodorovski nunca fez filmes para ser elogiado pelos críticos franceses ou pelo Caetano Veloso...
Antes de acompanhar a jornada de El Topo, é necessário recordar a importância desse filme para a cultura cinematográfica underground, quando se transformou no primeiro Cult Movie da História. Tudo aconteceu quando o gerente do Cinema Elgin de Nova Iorque descobriu El Topo e resolveu exibi-lo em sessões da meia-noite, que aos poucos viraram um fenômeno, uma celebração de cinéfilos e celebridades como John Lennon e Yoko Ono, o resto virou história, e que história. A primeira imagem marcante de El Topo é a composição de seu protagonista. Como um pistoleiro vestido de negro ele está montado em um cavalo com o filho pequeno despido e com um guarda-chuva. Dentro da tradição ibérica das narrativas de cavalaria, podemos traçar um interessante paralelo com a figura do Don Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança. El Topo tem elementos fortes das clássicas narrativas de viagens fantásticas que remontam as delirantes narrativas das Mil e Uma Noites. Imagens onde o grotesco, a abjeção se fazem presentes vemos o pistoleiro chegando em uma cidade com marcas de sangue resultantes de um massacre. A visão dos enforcados, o som angustiante das cordas, tudo começa a conspirar para a construção de uma delirante atmosfera de fábula barroca onde El Topo presencia bandoleiros seviciando Monges franciscanos, com direito a cenas de travestismo, e a visão de um tirano que surge de uma construção triangular sendo posteriormente punido com a castração e a morte. A figura dos bandoleiros acentua a questão da abjeção, da loucura, do comportamento desses homens que se igualam a cães raivosos. A seqüência dos Bandoleiros montados nos Monges tem toda uma aura buñuelesca anticlerical. O efeito anti-homoerótico dos beijos entre os bandoleiros e os monges e a valsa que eles dançam, reforça, com utilização de elementos de gênero, essa força anticlerical, de um sagrado que é profanado. A imagem de ambigüidade sexual entre as duas mulheres que se faz presente no filme também é um forte exemplo de como Jodorovski trabalhou questões de gênero com belas composições de imagens inspiradoras.
O deserto passa a existir, após um momento de ruptura, como espaço de expiação para El Topo. Acompanhado da figura feminina denominada como Mara, uma espécie de Lilith estilizada. As alegorias religiosas estão por toda parte, principalmente nas palavras de El Topo. O interessante é um dos significados de Topo no filme: o de uma toupeira, um animal que vive nos subsolo e se esforça para chegar até a superfície, ficando cega ao enxergar a luz do sol. Mais tarde essa história fica mais clara. Acompanhado de sua “Lilith”, El Topo vaga pelo deserto e recebe o desafio de derrotar quatro Mestres das Armas. Essa missão proposta ao pistoleiro nos remete mais uma vez ao universo das fábulas das Mil e Uma Noites, onde heróis devem transpor obstáculos mágicos para receber uma grande recompensa. A maneira como Jodorovski nos apresenta os tais Mestres e suas armadilhas, está repleta de elementos surreais, de rara beleza e horror, onde seres estranhos surgem a cada momento. A seqüência do “Duelo em Preto e Branco” é de um virtuosismo absoluto. Não, a cena não foi fotografada em preto e branco. Vemos o confronto entre El Topo, vestido de negro, com um dos Mestres, vestido de branco. A finalização da cena com o corpo do derrotado caído em uma poça circular com água é de rara elaboração. O sangue turva a água com um vermelho intenso mostrado do alto, sem dúvida uma das mais belas seqüências desse filme de belos e inesquecíveis momentos.
Outra ruptura interessante surge quando aparece um ser envolto de mistérios místicos que surge como uma espécie de Líder Messiânico que irá libertar seu povo, aprisionado em uma caverna, desejando ver a luz do sol e conhecer o mundo exterior, como as toupeiras citadas anteriormente. A presença das figuras deformadas e mutiladas tem uma força muito grande dentro do filme. Assim como no clássico Freaks, de Tod Browning, Jodorovski usou pessoas com deformidades reais para encenar sua “Procissão dos Mutilados”, rumo ao delírio representado pela luz do sol e pela suposta Terra Prometida. O diálogo entre esses dois mundos vislumbra a crueldade humana de maneira extrema. O fanatismo, o messianismo, também estão na cidade fora da caverna. É uma das seqüências mais extremas da História do Cinema, a do culto onde uma espécie de Pastor faz Roleta-Russa apontando uma arma para a cabeça de seus fanáticos fiéis, e quando a arma não dispara o coro delira gritando: MILAGRE!!
Direção: Alejandro Jodorovski
México, 1970. 123 min
Existem obras de arte que ultrapassam todos os limites de seu suporte original. No caso de uma Obra Cinematográfica, poucas se tornaram um Documento, uma Lenda, um Delírio que percorre o imaginário de cinéfilos através das décadas. Como exemplo de extremos quase metafísicos, temos na filmografia do chileno Alejandro Jodorovski um exemplo cristalino desse poder lendário de um Cinema que se transforma em um ritual de pura catarse a cada projeção de suas imagens que se originam dos confins dos labirintos do inconsciente.
EL TOPO, dirigido e roteirizado por Alejandro Jodorovski, também colaborador da trilha-sonora e do figurino, é uma experiência singular, uma Obra-Prima do Cinema Extremo onde somos expostos a fúria e ao desejo de suas imagens inesquecíveis. O cenário é o deserto, o árido simulacro de um apocalipse atemporal. Não estamos exatamente no deserto bíblico, tão pouco no deserto mítico dos faroestes de John Ford, estamos em alguma dimensão além de todos esses cenários, um lugar onde um pistoleiro vestido de negro irá caminhar ao lado do filho, desvendando mistérios e enfrentando demônios. Em um primeiro momento pode até se fazer uma referência dessa figura do pistoleiro, o El Topo do título, interpretado pelo próprio diretor, com o Antônio das Mortes criado por Glauber Rocha. Simplista e patriótica essa leitura pode estar bastante equivocada. Jodorovski conhecia muito bem o Faroeste Italiano e o pistoleiro de negro parece bem mais uma referência ao lendário Django de Corbucci. Ao contrário de Glauber Rocha, Jodorovski domina com maestria dois elementos fundamentais para a criação de uma Obra de Arte Audiovisual: a Montagem e o Roteiro. E ao contrário de Glauber Rocha, Jodorovski nunca fez filmes para ser elogiado pelos críticos franceses ou pelo Caetano Veloso...
Antes de acompanhar a jornada de El Topo, é necessário recordar a importância desse filme para a cultura cinematográfica underground, quando se transformou no primeiro Cult Movie da História. Tudo aconteceu quando o gerente do Cinema Elgin de Nova Iorque descobriu El Topo e resolveu exibi-lo em sessões da meia-noite, que aos poucos viraram um fenômeno, uma celebração de cinéfilos e celebridades como John Lennon e Yoko Ono, o resto virou história, e que história. A primeira imagem marcante de El Topo é a composição de seu protagonista. Como um pistoleiro vestido de negro ele está montado em um cavalo com o filho pequeno despido e com um guarda-chuva. Dentro da tradição ibérica das narrativas de cavalaria, podemos traçar um interessante paralelo com a figura do Don Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança. El Topo tem elementos fortes das clássicas narrativas de viagens fantásticas que remontam as delirantes narrativas das Mil e Uma Noites. Imagens onde o grotesco, a abjeção se fazem presentes vemos o pistoleiro chegando em uma cidade com marcas de sangue resultantes de um massacre. A visão dos enforcados, o som angustiante das cordas, tudo começa a conspirar para a construção de uma delirante atmosfera de fábula barroca onde El Topo presencia bandoleiros seviciando Monges franciscanos, com direito a cenas de travestismo, e a visão de um tirano que surge de uma construção triangular sendo posteriormente punido com a castração e a morte. A figura dos bandoleiros acentua a questão da abjeção, da loucura, do comportamento desses homens que se igualam a cães raivosos. A seqüência dos Bandoleiros montados nos Monges tem toda uma aura buñuelesca anticlerical. O efeito anti-homoerótico dos beijos entre os bandoleiros e os monges e a valsa que eles dançam, reforça, com utilização de elementos de gênero, essa força anticlerical, de um sagrado que é profanado. A imagem de ambigüidade sexual entre as duas mulheres que se faz presente no filme também é um forte exemplo de como Jodorovski trabalhou questões de gênero com belas composições de imagens inspiradoras.
O deserto passa a existir, após um momento de ruptura, como espaço de expiação para El Topo. Acompanhado da figura feminina denominada como Mara, uma espécie de Lilith estilizada. As alegorias religiosas estão por toda parte, principalmente nas palavras de El Topo. O interessante é um dos significados de Topo no filme: o de uma toupeira, um animal que vive nos subsolo e se esforça para chegar até a superfície, ficando cega ao enxergar a luz do sol. Mais tarde essa história fica mais clara. Acompanhado de sua “Lilith”, El Topo vaga pelo deserto e recebe o desafio de derrotar quatro Mestres das Armas. Essa missão proposta ao pistoleiro nos remete mais uma vez ao universo das fábulas das Mil e Uma Noites, onde heróis devem transpor obstáculos mágicos para receber uma grande recompensa. A maneira como Jodorovski nos apresenta os tais Mestres e suas armadilhas, está repleta de elementos surreais, de rara beleza e horror, onde seres estranhos surgem a cada momento. A seqüência do “Duelo em Preto e Branco” é de um virtuosismo absoluto. Não, a cena não foi fotografada em preto e branco. Vemos o confronto entre El Topo, vestido de negro, com um dos Mestres, vestido de branco. A finalização da cena com o corpo do derrotado caído em uma poça circular com água é de rara elaboração. O sangue turva a água com um vermelho intenso mostrado do alto, sem dúvida uma das mais belas seqüências desse filme de belos e inesquecíveis momentos.
Outra ruptura interessante surge quando aparece um ser envolto de mistérios místicos que surge como uma espécie de Líder Messiânico que irá libertar seu povo, aprisionado em uma caverna, desejando ver a luz do sol e conhecer o mundo exterior, como as toupeiras citadas anteriormente. A presença das figuras deformadas e mutiladas tem uma força muito grande dentro do filme. Assim como no clássico Freaks, de Tod Browning, Jodorovski usou pessoas com deformidades reais para encenar sua “Procissão dos Mutilados”, rumo ao delírio representado pela luz do sol e pela suposta Terra Prometida. O diálogo entre esses dois mundos vislumbra a crueldade humana de maneira extrema. O fanatismo, o messianismo, também estão na cidade fora da caverna. É uma das seqüências mais extremas da História do Cinema, a do culto onde uma espécie de Pastor faz Roleta-Russa apontando uma arma para a cabeça de seus fanáticos fiéis, e quando a arma não dispara o coro delira gritando: MILAGRE!!
El Topo é um filme de mistérios, de belezas, de extremos estéticos, narrativos, de encenação marcada, de delírios surreais surgidos da influência forte do Teatro de Arrabal, adaptado por Jodorovski em Fando e Lis. A genialidade vulcânica desse Mestre do Cinema lhe trouxe inimigos invejosos e poderosos. Com muita dificuldade fez outros filmes, todos excelentes, mas sua rebeldia, sua forte personalidade criativa que não faz concessões com relação a mediocridade dominante de Hollywood, lhe colocaram em um Gueto Maldito, de onde parece aprisionado. Grande Jodorovski, grande Gênio. Como ele mesmo falou uma vez ao comparar o Cinema com a Comida: “Fellini é GASTRONOMIA; George Lucas é FAST FOOD...” Acho que não preciso dizer mais nada.