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Crônicas
MEU PAI CONHECEU NELSON RODRIGUES

Por Andrea Ormond

Meu pai conheceu Nelson Rodrigues. Trabalhavam ambos no Centro do Rio, naquele tempo em que o Centro era um lugar onde valia a pena você passar algumas horas. Pois além de Nelson, ele também conhecia Sergio Porto, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, todos transeuntes de "obas" e "olás".

Uma vez deu de cara com Guimarães Rosa e não acreditou: admirava tanto o autor de "Grande Sertão: Veredas" e "Sagarana", que esticou a mão balbuciando: "Meus cumprimentos, meus cumprimentos!" O escritor mineiro deve ter se assustado: não cumprimentou. Seguiu seu caminho, carregando um guarda-chuva que, segundo meu pai, lhe dava um ar assim, de homem ainda mais antigo.

No centro da cidade, além dos baluartes da literatura, o povo encontrava também a si próprio, e do povo meu pai conta histórias incríveis: um homem que foi preso no bonde com uma coleção de cabelos femininos, dentro de pequeninos saquinhos plásticos; a jovem senhorita, linda e de olhar flamejante, que dizia ter se perdido do noivo, repetindo o caso anos a fio, para quem a ouvisse; e os malandros da Lapa, vizinha do Centro, que se misturavam no fluxo dos funcionário públicos e contínuos, com as propostas mais escabrosas, de sexo, bebida e sinuca.

Meu pai conta que conheceu Nelson Rodrigues por uma peculiaridade: os dois freqüentavam a Biblioteca Nacional. E se viam nos corredores da Biblioteca. Uma vez avistou Nelson no banheiro e, lá mesmo, discutiram sobre quem teria sido o melhor presidente do Brasil. Nelson falava de Castelo Branco e dizia: "Esse é um estadista!" -- meu pai respondia indagando sobre as eleições, quando haveria eleição novamente para presidente? E Nelson retrucava: "Castelo é um estadista! Um estadista!"

Outras vezes esbarravam em alguma esquina. E trocavam meia-dúzia das mesmas palavras, sobre política ou algum outro assunto; depois, seguiam cada um seu caminho. Não se tratavam pelo nome, mas ficava evidente que ele sabia que Nelson era o famoso jornalista e que Nelson, concedia ao médico anônimo algum tipo de reverência especial, pois parava e conversava.

Curioso é que meu pai não lia suas crônicas nem acompanhava suas peças: conhecia Nelson Rodrigues como se conhece um homem ilustre -- de ouvir falar. Admirava sim, Guimarães Rosa; e quase se lamentava de Nelson não ser Rosa -- ou Drummond, que ele também cumprimentava, mas com quem nunca trocava palavra -- ao invés do "dramaturgo obsceno", como diziam naquele tempo.

Um dia soube que haviam proibido um livro de Nelson -- deve ter sido "O Casamento", e semanas depois o encontrou novamente na rua. Nelson dessa vez deu um "Mas como vai essa nobre figura?", e passou reto.

Outro intervalo de semanas, os dois se cruzam e meu pai puxa Nelson para um canto: "Diga!", o homem parecia arisco, desconfiado da própria sombra. "Me responde uma coisa, porque você coloca tanto palavrão nos teus livros?". Nelson nem parou para respirar, escorou a mão direita no ombro do meu pai e respondeu: "Porque palavrão vende, meu jovem, palavrão ajuda a vender qualquer coisa!".

Depois do comentário, meu pai passou a ver Nelson de modo reticente. Achou a conclusão sincera demais: "O palavrão vende, logo ele põe palavrão! E coisas torpes, imundas! Escritores assim não duram, não se eternizam!", diz ter pensado, enquanto batucava na máquina de escrever algum memorando para requisição de medicamentos.

A vez seguinte que topou com Nelson, estava em uma janela e o mirou lá embaixo, caminhando. Diz meu pai que atrás de Nelson, vestido de blusão xadrez e ar grave, passava o dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha. Dois homens de teatro, um cruzando às costas do outro. Meu pai anotou aquilo em um bloquinho preso à mesa, ao lado daquelas duas caixas: entrada e saída.
Meu pai tinha um colega na repartição, o Eulálio, suburbano, fã do "Jornal do Sports" e vascaíno fanático, que defendia a moda do chapéu, ressaltando a máxima "O tipo que não usa chapéu não é digno de minha sincera confiança!" Travavam pelejas funestas, antes, durante e depois do expediente, sobre a volta da moda do chapéu, e a seu favor Eulálio citava frases rodrigueanas, muitas sem qualquer relação ao assunto.

Mas um dia o Eulálio teve um piripaque em plena burocracia, e levado pela ambulância do Sandu, não resistiu e bateu as botas. Foi enterrado, a pedido da família, com as mãos postas segurando um bonito panamá, conseguido às pressas na Casa Turuna. Em homenagem ao amigo, meu pai tornou-se leitor de Nelson, apaixonado por suas "Memórias" e "Confissões". Como a vida é imperfeita, deste dia em diante nunca mais encontrou o dramaturgo dando sopa nas ruas.

Para não dizer nunca, certa vez, nos 1970, esbarrou com Nelson em uma padaria do outro lado da cidade, no Leblon. Cumprimentou, mas Nelson já não o reconheceu. A vida seguiu, os anos foram passando e aquelas pessoas, o mundo e a cidade morrendo; dando lugar a novas pessoas, um mundo novo e uma nova metrópole: maior, menos íntima e mais desumana.

Depois que se aposentou, meu pai pouco sai de Copacabana, e dificilmente volta ao Centro. A "Cidade" como os antigos chamam respeitosamente o velho Centro do Rio, também perdeu parte do seu encanto: celebridades -- incluindo as literárias -- hoje estão apenas na Zona Sul e, recentemente, algumas até se mudaram para a Barra.

Meu pai não se importa com elas: acha que a cultura brasileira não é mais a mesma e que o país é uma pálida sombra daquele que o Nelson, o Eulálio, ele e todos os heróis desta crônica, um dia conheceram: "O Brasil lá no andar de cima", diz, "ganha de longe do Brasil aqui no andar de baixo".



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