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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque

ZODÍAKO, de Jayme Cortez (1974)

Com o perdão do clichê, esse texto tem início com a seguinte afirmação: a vida de Jayme Cortez se confunde com a história dos quadrinhos nacionais, e vice-versa. Nascido no dia 8 de setembro de 1926 em Portugal, mudou-se para o Brasil com 20 anos, carregando na bagagem uma experiência considerável, principalmente para alguém de tão pouca idade: teve seus primeiros trabalhos publicados com apenas 11 anos, no suplemento infantil do jornal O Século, de Lisboa; aos 17, foi apadrinhado por Eduardo Teixeira Coelho - um dos mais expressivos nomes da HQ lusitana - e iniciou sua carreira nos comics com a historieta "Uma Estranha Aventura". Após lançar "O Vale da Morte", trama definida por ele como um "bacalhau-western", criou três histórias que hoje são tidas como verdadeiras obras-primas dos quadrinhos mundiais: "Os Seis Terríveis", "Os Dois Amigos na Cidade dos Monstros Marinhos" e "Os Espíritos Assassinos". Por fim, ao pisar em São Paulo não demorou a encontrar meios de exercer suas atividades - um mês depois, já era responsável pelo setor de charges do jornal O Dia. Este foi apenas o pontapé inicial de uma longa trajetória pelos meandros da ilustração e da arte seqüencial Made in Brazil: dali em diante, Cortez seria uma presença constante nos mais importantes momentos das HQs nacionais: foi um dos organizadores da Primeira Exposição Internacional de Comics, evento mundialmente pioneiro ocorrido em 1951; desenhou para publicações como A Gazeta Juvenil, Raio Vermelho e Misterix; representou o Brasil diversas vezes nos congressos de Lucca, Buenos Aires e Nova Iorque; escreveu um punhado de livros teóricos direcionados a ilustradores; foi um dos mais tarimbados desenhistas de cartazes para o cinema (é dele o famoso poster de "Delírios de um Anormal", filme de José Mojica Marins no qual chegou a fazer uma ponta) e influenciou badalados quadrinhistas do nosso país, tais como Mauricio de Souza, Julio Shimamoto, Flavio Colin, etc. Em meio a tantas realizações profissionais, interrompidas apenas em 1987 devido à morte prematura do autor, uma criação em particular costuma ser muito lembrada por fãs e estudiosos da nona arte: Zodíako.

Para falar desta obra-prima dos quadrinhos fantásticos, devemos nos transportar para o passado, mais especificamente ao ano de 1974, quando a editora Abril colocou nas bancas uma revista antológica: trata-se da Crás!, gibi 100% nacional que unia em suas páginas as mais diversas tendências das HQs - do infantil ao adulto, do terror ao humor - tendências estas representadas por gênios como Renato Canini, Nico Rosso, Ruy Perotti, Walmir Igayara de Souza, Primaggio Mantovi e muitos outros. Cortez participou da publicação desde o primeiro número, mas foi no segundo que estreou o personagem do qual se trata esta matéria. A repercussão foi enorme - a história não apenas agradou muito o público, como também foi republicada inúmeras vezes (inclusive pela prestigiada Sgt Kirk, da Itália) e arrebatou um punhado de prêmios, todos merecidos. E não era para menos: Zodíako é poético, mísitico, lírico e autoral, como todo quadrinho de fantasia deve ser. Visualmente arrebatador, apresentava um traço carregado ao extremo, quase barroco, onde a quantidade de detalhes por vezes fazia parecer que personagens e cenários estavam fundidos num objeto só, composto por hachurados curvos e tortuosos. Porém, em torno de que assunto girava seu enredo?

Do nascimento da Terra até o presente momento, milhões de anos se passaram, sendo que a ganância e estupidez humana levaram a civilização ao beco sem saída da hecatombe nuclear. Tamanha desgraça faz com que Deus - aqui abordado metaforicamente como "A Grande Luz" -, na tentativa de descobrir porque a humanidade trilhou caminhos tão perversos, convoque todos os signos do zodíaco, exigindo deles uma satisfação convincente e uma solução imediata para o problema. Após digladiarem-se entre si, Libra, Scorpio, Hydra, Sagitário, Capricórnio, Aquarius, Peixes, Virgo, Leo, Câncer, Gêmeos, Touro, Cetus e Áries chegam a um acordo, reunindo todos os seus esforços astrais na invocação conjunta dos quatro elementos universais - Água, Ar, Terra e Fogo -, de onde formarão o emissário que salvará o planeta suicida. Eis que do vácuo surge uma estátua de beleza clássica, cuja aparência e postura nos remetem diretamente ao Davi de Michelangelo. Com a ajuda divina, os signos doam à obra de arte suas mais belas virtudes, e o sopro da "Grande Luz" transforma a criatura imóvel num ser vivo dotado de perfeição moral e infinita força física. Auto-entitulado Zodíako, o herói compreende toda a situação e aceita de bom grado sua missão de paz. Dando início às suas obrigações, nosso protagonista resolve fazer uma expedição ao Sol, visando encontrar Apolo e obter dele alguns conselhos úteis. No entanto, ao chegar lá, descobre que a causa de todos os infortúnios terrestres era o próprio Apolo, que se mostra um tirano dos mais fúteis, sádicos e cruéis.

A partir dessa premissa, embasada numa profunda crítica aos sistemas políticos despóticos - o fato da história ter sido publicada pela primeira vez em plena Ditadura Militar apenas reforça esta impressão -, Cortez destila uma série de referências mitológicas, esotéricas e literárias, empregando a elas um raro dinamismo: se por um lado aqueles que acreditam em horóscopo e possuem conhecimentos em Astrologia tendem a gostar mais da obra e sacam uma quantidade maior de seus detalhes, é perfeitamente possível que o leitor leigo e/ou cético com relação a estes assuntos apreciem a mesma. Afinal de contas, no fundo Zodíako é mais um exemplar das tramas em que o Bem precisa a qualquer custo salvar o mundo da ameaça do Mal; entretanto, ao contrário da maioria destas, é carregada de significados mais profundos, pelos quais podemos compreender um pouco das concepções artísticas e da visão de mundo de seu criador.



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