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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque


QUERO IR PARA CASA [I Want to Go Home] (França, 1989)
- Filme dirigido por Alain Resnais e escrito por Jules Feiffer -

Apesar de nós, brasileiros, sermos pioneiros na abordagem das HQs enquanto manifestação artística "séria", graças à Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos ocorrida em São Paulo no ano de 1951 (a primeira do mundo), foi somente na Europa, nos idos da década de 60, que teve início a avalanche de teses, estudos e teorias acadêmicas a respeito do assunto. Personalidades, experts, autoridades e especialistas de todas as áreas da Comunicação e das Artes, oriundos principalmente da Itália e da França, passaram a dedicar uma enorme atenção aos fumettis e bande dessinées, como são respectivamente chamados os gibis nesses dois países. Artistas plásticos, escritores, músicos, filósofos e sociólogos passaram a mencionar os comics como hobby e influência estética; os cineastas, idem.

De todos os grandes diretores europeus que efetivamente declararam interesse pelo assunto, três dos mais conhecidos se sobressaíram pela transposição às vezes gritante que faziam de determinados maneirismos visuais da arte seqüencial em alguns de seus trabalhos: Jean-Luc Godard, Federico Fellini e Alain Resnais. O primeiro, a despeito de ter se inspirado em Dick Tracy para criar o protagonista de sua obra-prima "Alphaville", parecia se utilizar desta mídia mais como meio de provocação política, mixando imagens de super-heróis norte-americanos com inflamados discursos marxistas; já os outros dois, nunca deram margem à ambiguidades quanto às suas relações com os quadrinhos - sempre que podiam, davam declarações onde prevaleciam a paixão incondicional pelos gibis. Ambos tiveram envolvimento direto com a coisa: antes de tornar-se uma das maiores lendas (senão a maior) do cinema italiano, Fellini havia sido cartunista durante a Segunda Guerra; depois de famoso, declarou ter como sonho filmar Flash Gordon, teve um roteiro desenhado por Milo Manara e prefaciou álbuns de Moebius. Resnais chegou a se destacar como um dos maiores estudiosos do assunto, tendo inclusive feito diversas viagens aos EUA com o intuito de entrevistar os grandes cartunistas de lá. Foi numa dessas entrevistas que tomou uma senhora esnobada de Al Capp: "Nunca vi nenhum de seus filmes. Aliás, nunca tive paciência para a nouvelle vague. Me parecem esses filmes que começam com jovens intelectuais trepando e discutindo até o final da história se devem ou não voltar para a cama".

O leitor atento de HQs que resolver assistir às obras destes mestres com certeza irá notar nas mesmas o peso dos quadrinhos, presente em inúmeras, maravilhosas e desconcertantes composições visuais. Neste sentido, Resnais foi ainda mais radical que o maestro de Rimini, pois não contente em se inspirar nos grandes clássicos das historietas ilustradas, volta e meia fazia questão de citá-los de forma direta. Por exemplo, numa das cenas de "Toute la Memoire du Monde", seu famoso documentário de 1956 sobre a Biblioteca Nacional Francesa, o espectador pode ver uma coleção de gibis do Mandrake, gibis estes pertencentes ao próprio diretor, que filmou os mesmos como se fizessem parte do acervo da instituição. Na época, o cineasta já havia adquirido fama com o impressionante "Nuit et Brouillard" e, se por um lado ainda nem sonhava em realizar "Hiroshima Mon Amour" ou "Ano Passado em Marienbad", por outro já tinha como meta dirigir um grande filme sobre quadrinhos. Tal missão seria cumprida apenas em 1989: neste ano, era lançado sua excelente comédia dramática "I Want to Go Home" (que no Brasil se chamou "Quero ir para Casa"). A temática da película e o histórico de seu autor não são os únicos motivos que fazem dela uma experiência inesquecível e obrigatória para qualquer fã de HQ que se preze: de quebra, o filme ainda foi roteirizado por Jules Feiffer, um dos melhores e mais tarimbados cartunistas do mundo, igualmente prestigiado como teórico. Entretanto, como bom cinema que é, "Quero ir para Casa" diverte, intriga e comove até mesmo a pessoa mais leiga no assunto, que encontrará no carismático elenco, nos deliciosos diálogos de Feiffer e na direção sempre arrebatadora de Resnais razões de sobra para virar admirador da fita.

O pano de fundo desta pequena obra-prima é a frustrante vida de Joey Wellman (interpretado por Adolph Green, roteirista de "Cantando na Chuva", "A Roda da Fortuna" e outros musicais do período clássico de Hollywood), um cartunista norte-americano desprezado em seu país natal, mas respeitado no circuito europeu. Ranzinza ao extremo e acompanhado de sua segunda esposa, ele aceita um convite para participar de um simpósio de quadrinhos em Paris apenas como pretexto para tentar se reconciliar com a filha, uma intelectualóide que considera as HQs uma "arte menor e vulgar", se envergonha da profissão do pai, tenta a todo custo parecer francesa e nutre uma paixão secreta por Christian Gauthier (Gerard Depardieu), o renomado professor da Sorbonne com quem tem aula. O que a garota não sabe é que além de ser perdidamente apaixonado por bandas desenhadas, Gauthier tem Joey Wellman como um de seus grandes ídolos. Este é um pontapé inicial para uma série de conversas, revelações, experiências, risos e lágrimas, quase todas oriundas do choque intercultural e da relação entre fãs e autores de comics.

Como grande entendedor e admirador do assunto, Resnais não caiu no erro - presente em tantas outras produções - de se apropriar da linguagem das HQs com o objetivo de causar espanto e estranheza na platéia. Poucas vezes os gibis foram abordados com tanto afeto, singeleza e familiaridade quanto aqui. O cineasta francês criou um mundo onde ser flagrado no avião lendo "Quadrinhos e Arte Seqüencial", de Will Eisner, é algo tão rotineiro quanto folhear a revista da semana. Todas as pessoas aparentam saber quem é Roy Crane, e nomes como Art Spiegelman, Charles Schulz, Enki Bilal, Robert Crumb, Georges Wolinski e Guido Crepax são mencionados tão ou mais respeitosamente quanto os de Stendhal e Sartre. Hora ou outra, somos agraciados com os pensamentos mal-humorados dos protagonistas, representados através de animações inseridas dentro de balõezinhos que brotam repentinamente na tela, lembrando um pouco o recente "Anti-Herói Americano".

Para alguns, "Quero ir para Casa" pode destoar do restante da filmografia de Resnais. Trata-se de um filme acessível, pouco imponente e de visual discreto: não pense encontrar os travellings tortuosos, fragmentação temporal e narração hipnótica que marcou seus trabalhos mais celebrados. Nesta que é sua obra mais subestimada, o diretor busca uma aproximação com o humor tipicamente novaiorquino de Woody Allen, no que com certeza foi auxiliado por Jules Feiffer. Poucas vezes o cinema europeu foi tão americano: esse tipo de influência está presente desde os letreiros iniciais, cujos intertítulos bilíngues dão espaço tanto para o francês quanto para o inglês, e persistem até o último minuto de duração. Em determinado momento, a mãe do professor se queixa da fixação que seu filho possui pela cultura ianque e reclama da quantidade de modelos, produtores televisivos, cientistas, acadêmicos, escritores e cineastas estadunidenses que precisa aturar de tempos em tempos. Joey Wellman a princípio odeia a França, sua cultura e seus hábitos, mas o fascínio que o simples fato de ter nascido nos EUA exerce nos intelectuais franceses faz com que ele acabe cedendo aos encantos do país. A memória, tema-fetiche do autor, nem por isso fica de fora, sendo tratada com uma doçura incomum ao estilo reinasiano: os flashbacks perturbadores saem de cena e dão lugar à fatos agradáveis que amigos relembram na mesa de jantar e à momentos singelos da infância que a filha faz questão de recapitular enquanto deita a cabeça no colo do pai.

Por incrível que pareça, "I Want to Go Home" é um dos segredos mais bem guardados do cinema contemporâneo. O prêmio de Melhor Roteiro que ganhou no Festival de Veneza, seu diretor mundialmente aclamado, um escritor de prestígio e elenco caprichado não pouparam a obra do fracasso de crítica e público. Ainda hoje, permanece pouquíssimo comentado, passando em branco nas retrospectivas de Resnais e na esmagadora maioria dos textos a respeito do cineasta. No Brasil, saiu apenas numa edição em VHS repleta de erros bizonhos, como grafar "Milton Kany" ao invés de "Milton Caniff" e traduzir "comic books" como "livros cômicos", só para citar alguns. Porém, se você encontrar este vídeo empoeirando num sebo ou numa locadora, deve levá-lo para casa imediatamente: eis uma rara oportunidade de desfrutar do filme definitivo sobre quadrinhos.



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