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Clássicos de Prestígio

Por Gabriel Carneiro

Desencanto
Direção: David Lean
Brief Encounter, RU, 1945.

Um dos grandes parceiros de Lean em sua carreira britânica foi o dramaturgo Noel Coward. Seu primeiro filme, Nosso Barco, Nossa Alma, feito a pedido do governo, teria, inicialmente, o comando de Coward, mas este chamou Lean para dirigir as turbulentas cenas de ação. E assim, de fato, a parceira se solidificou. Os próximos filmes de David seriam, ou roteirizados por Noel, ou adaptados de sua obra teatral. Desencanto se insere nesse período e é o ponto alto dele. Nada de comédias, ou dramas épicos. Desencanto é o que o próprio título observa, o desencanto do mundo, o desencanto do amor, da paixão, do futuro, e da própria vida. Vivas almas dentro de um labirinto inócuo e sem saída.

Melodramático na medida certa, Desencanto é a história de um breve encontro, ao acaso, nas plataformas de trem. Ambos são casados e felizes, porém é nesse momento de liberdade da clausura do compromisso que duas almas se furtam, e nelas bebem esse fio de energia. É uma compreensão acima do moralismo, em que duas pessoas se bastam por se desejarem. Eles não buscam compromissos, mas a mera sobrevivência, um sopro de ar dentro de um coração enferrujado. Iniciado pelo fim, quando ele está de partida para África, vemos um retrocesso, um flash-back dela perante o marido. É a agonia de ter encontrado a felicidade, a verdadeira e intensa felicidade, e vê-la se esvaziar... Algo que me leva a crer que a felicidade só existe no breve encontro, do título original, em que o tempo ainda não é suficiente para a derrocada da eternidade. Dizem que o tempo cura, e é fato. Porém, a verdade é que ele camufla aquilo que já destruiu.

Afinal, Desencanto é uma obra que reflete justamente sobre o binômio amor e dor, sobre a solidão. A incerteza paira, mas está lá. O que nasce do amor senão a dor? Pode não ser o mais representativo, mas ela é tão presente. Presente nas pequenas coisas e nas grandes coisas, na incompatibilidade, no ciúme, na briga idiota e sem motivo, na ausência... O amor escraviza, torna-te dependente, traz dor. E é uma dor diferente de todas as outras, é algo que retumba, que vem lá do fundo e ecoa para o restante do corpo. A dor é sentida até as pontas do dedo, e cada passo pesa, cada olhar pesa, cada saber pesa. A notícia de que aquela paixão arrebatadora acabaria, não pelo tempo – ainda não houve o tempo do estrago -, mas pela antecipação e por uma viagem, é destrutivo, é inconcebível. Eles ainda crêem na felicidade. Ele se vai, e ela fica, passada, pensando, e vendo o seu sórdido destino no balbuciar da irritante velha. Desnorteada sai, corre, dentro de sua cabeça grita, e o trem passa... “E se eu me jogar em sua frente, essa dor dilacerante acaba?” Mas não, o destino é um só: a rotina. O tempo passa e percebemos que metade de sua vida foi gasta com um ignóbil sentimento de afeto, que era a simples e pura solidão interior.

This can't last. This misery can't last. I must remember that and try to control myself. Nothing lasts really. Neither happiness nor despair. Not even life lasts very long. They'll come a time in the future when I shan't mind about this anymore. But I can look back and say quite peacefully and cheerfully how silly I was. No, no, I don't want that time to come ever. I want to remember every minute, always, always to the end of my days.” (Isso não pode durar. Essa amargura não pode durar. Eu devo lembrar disso e tentar me controlar. Nada realmente dura. Nem felicidade, nem desespero. Nem a vida dura muito. Chegará um tempo, no futuro, em que não me importarei mais com isso. Mas poderei olhar para trás e dizer, pacificamente e entusiasmada, o quão tola eu fui. Não, não, não quero que esses dias cheguem, nunca. Eu quero lembrar cada minuto, sempre, sempre, até o fim de meus dias.)

Cria-se em torno dessa realidade, desse mundo tão contemporâneo, a dualidade da luz. Lugares iluminados permeiam a doce ilusão da paixão, da eternidade de um sentimento tão frágil. Alec e Laura, quando felizes e apaixonados, estão em lugares abertos e claros, passeando e vivendo. Porém um estado sombrio vigora naqueles que abordam as tristezas e agruras da existência. O passeio pelo beco e a estação de trem são exemplos. As eternas despedidas são feitas em meio à lugubridade e em meio a uma tímida luz, fraca como a força de resistência àquele abandono.

Chega-se a uma pergunta, que definirá quem você e como será sua interpretação: o que vale mais – nunca ter amado e manter-se numa felicidade estável, ou ter amado, mesmo que perdido e sofrido por ele?

Saber contar uma história é o que David Lean faz de melhor. Desencanto é uma história, um romance tão real em sua essência, tão universal, tão miserável... Miserável no que faz à sua alma, à sua esperança. Amores imperfeitos, desfeitos e impossíveis são a esfera da desgraça, e nada como a doce ilusão da serenidade e alegria. Impossível é não ver nos olhos de Laura essa (des)ilusão, esse tremor em suas mãos, nessa grandiloqüência que é o amor.




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