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Dossiê Jairo Ferreira

A "Crônica" proibida de Rosemberg

Por Jairo Ferreira
Transcrição e seleção: Juliano Tosi, especialmente para a Zingu!

Embora mais de uma dezena de filmes brasileiros tenham sido exibidos em Cannes, na "Quinzena dos Realizadores", "Mercado do Filme" e seção "Um Certo Olhar", o cinema brasileiro praticamente esteve ausente desse festival. Uma ausência totalmente absurda, que de certa forma, tentou-se estrategicamente compensar com a exibição simultânea de outros trinta filmes nacionais na retrospectiva "80 Ans de Cinema Brésilien", promovida pela Embrafilme no Palais de Chaillot, em Paris.

Agora que o festival já terminou, deixando saldos lamentáveis, inclusive porque não foi só o Brasil mas o Terceiro Mundo de forma geral que esteve ausente, impõe-se a constatação: esse esforço de promoção do cinema brasileiro no Exterior é perfeitamente inútil, além de inexplicável, pois representa um desperdício de potencialidades que teriam muito mais função aqui mesmo no mercado interno. A única participação que realmente pesa na balança – a oficial, com todas suas honrarias – não se concretizou: alguns dias antes do início do festival, a Censura brasileira surpreendeu a todos, interditando "Crônica de um Industrial", de Luis Rosemberg Filho. Isso foi, claro, um verdadeiro balde de água fria na direção de Cannes que, a essas alturas, já tinha aceito o filme como representante oficial do Brasil.

Como se sabe, a Censura costuma liberar certos filmes nacionais somente para exibições no Exterior. Esse é o caso de "A$$untina das Amérikas", o filme anterior de Rosemberg e de "Prata Palomares", de André Faria, que ainda garantiu alguma polêmica no Festival de Cannes do ano passado. Rosemberg diz que "Crônica de um Industrial" foi visto por cinco comissões de Censura e um dos censores chegou a confessar que "é com dor no coração que vamos interditar esse filme", embora os motivos da interdição não tenham sido comunicados por escrito, como se faz normalmente. E como um pouco de especulação não faz mal a ninguém, o que se depreende desses contatos imediatos é que as comissões acharam que o filme, por seu alto nível poderia até mesmo ganhar uma Palma de Ouro em Cannes, o que criaria uma situação difícil no mercado interno: o grande publico ficaria interessado em assistir a um filme que só o exterior poderia ver.

Quando Rosemberg promoveu sessões do filme para convidados no Rio e em São Paulo, quis dar prioridade à discussão do problema da Censura. Como se sabe, não há problema em exibir, em sessão fechada, um filme que está interditado, mas o que acontece é muito curioso: esses espectadores privilegiados, uma minoria dentro da minoria, esquecem da recomendação do diretor e passam a discutir única e exclusivamente o filme. Quanto à atitude da Censura, ninguém arrisca um comentário, como se o filme já estivesse liberado. Isso, em certo sentido, pode até ser positivo, evidenciando que, num consenso geral, ninguém admite que o filme tenha qualquer motivo para ser interditado. O único problema – e basta – é que a discussão, que seria do filme em relação à Censura, fica vencida pela discussão do filme em relação a ele mesmo.

"Gostei muito do filme nos 20 minutos iniciais, mas depois comecei a perder o entusiasmo. Não sei o que aconteceu. Parecia que o filme estava mexendo com alguma coisa muito séria, mas de repente isso vira uma canastrice. Senti uma espécie de "mea culpa". Acho que eu gostaria de assistir ao filme novamente". A empresária Ruth Escobar demorou 15 minutos para fazer esse comentário, intercalado de longos e significativos silêncios. Já Fauzi Arap, também mais ligado a teatro, não consegue perdoar uma cena do filme que lembra muito o final de "Teorema", de Pasolini. "Estava tudo perfeito até aí, mas depois disso não consegui mais engolir o purgante".

Esses comentários sucintos, mas muito difíceis de serem formulados, são da maior importância numa discussão sobre o significado do filme. Porém, no caso, eles servem mais para ilustrar o impasse: a discussão que, no momento, é secundária, rouba o tempo e o espaço a questão prioritária, a de tentar situar o filme em relação à Censura.

Particularmente, fiquei intrigado durante uns dois meses para saber o que era, afinal, esse "Crônica de um Industrial". Confesso que não esperava que o filme fosse tão bom. Conheço os outros filmes de Rosemberg, todos da maior importância, mas acho que desta vez ele deu um salto qualitativo muito grande. Dessa forma, o indivíduo só pode se "isolar" mesmo: ele disparou na frente de todo cinema nacional. Deixou longe o Cinema Novo e até mesmo o Cinema Udigrudi, do qual ele próprio era um dos expoentes mais destacados.

Agora que assisti ao filme posso resumi-lo numa única frase: a trajetória de um industrial que, na sua juventude, também foi de esquerda, também foi ativista político, mas hoje está apelando para o capital estrangeiro e só pode terminar se suicidando. Trata-se de um industrial, mas poderia ser também qualquer outro personagem, já que a sua classe social continua inalterada.

Algumas pessoas acusam Rosemberg de ter feito um filme de direita. Uma acusação que, aparentemente deveria ter vindo da esquerda. Cinema, porém, continua sendo a arte das ilusões. Seria preciso, então, saber que esquerda e que direita são essas, sendo bastante provável que ambas sejam muito subjetivas. Uma discussão política que, sem dúvida, não procede: "Este não é um filme político", esclarece Rosemberg. As semelhanças com "Terra em Transe", de Glauber Rocha, feito há 11 anos atrás, são meramente casuais. Cinema político é coisa do velho Cinema Novo que, de vez em quando, sai da tumba como uma múmia para assustar as pessoas. Rosemberg, afastando-se para manter a saúde mental, superou tudo isso e define seu filme como "um vôo sobre a alma humana", o que o situa antes num contexto existencial. Daí decorrem as considerações de ordem interna, individual e moral, tudo isso envolvido numa mística erótica altamente libertária.

"O problema colocado – diz Rosemberg – talvez seja mais moral do que político. O fato político surgiria como uma resultante dos impasses morais do industrial. Todo o problema abordado começa, termina e deixa suas conclusões para o espectador a partir da angústia existencial do industrial, irrealizado durante toda sua carreira. Seria ele um demagogo do pior estilo, um político com idéias "revolucionárias" cortadas pela raiz por forças a ele superiores, um místico que se propunha a libertar um pais, um político qualquer que vendo chegar ao final da sua vida, como tantos outros, reflete sobre o passado? Ou seria ele a soma dos diversos caracteres encontrados no campo da política? E preciso analisá-lo e, consequentemente, transformá-lo em novos gestos após a luz do último fotograma mostrado. Contudo não dêem ao industrial uma conotação demasiado particular (entendam: não limitem a nossa visão de mundo ao meio ambiente político), pois ele tem muito de nós, na nossa totalidade existencial, política e moral. Essa é, creio, a maior característica dele: ser o somatório da frustração geral das ideologias "reformistas" do nosso tempo, um tempo em que o reformismo é um mero dado romântico na história dos povos".

As cenas de amor do filme de Rosemberg estão entre as mais belas do cinema brasileiro dos últimos anos. As mulheres aparecem nuas durante o tempo todo, mas são basicamente atrizes: Ana Maria Miranda, Kátia Grumberg, Adriana de Figueiredo. Os homens, claro, também não deixam de aparecer nus, mas sempre sendo basicamente atores: Renato Coutinho, Eduardo Machado. Trata-se de uma nudez que pode ser vista existencialmente como nudez da alma humana, o erotismo filtrado.

Há uma outra acusação inconsistente a Rosemberg: a de que ele não faz cinema. Espectadores viciados na linguagem de consumo hollywoodiano não perdoam a falta de espetáculo no filme. Realmente o diretor imprime o seu depoimento sem fazer concessões. O filme é o antiespetáculo por definição. Sua produção aparenta, no mínimo, um milhão e meio de cruzeiros, com ambientes requintados, locação em alto mar, iates e outros luxos. Ninguém ficou mais surpreso do que Roberto Farias, presidente da Embrafilme quando soube que Rosemberg tinha filmado tudo por 50 mil cruzeiros. Claro que, a título de distribuição, a Embrafilme avançou a verba ao cineasta, possibilitando-lhe pagar algumas dívidas.

Com seu discurso verbal, um longo poema, monólogos de grande fôlego, o filme tem uma estrutura narrativa altamente criativa, nova, brilhante, elegante e instigante, levando o espectador a recuperar uma capacidade que anda fora de moda: a de pensar. Toda uma sintaxe, composta de planos gerais, longos e distanciados, coerente com a proposta existencial do diretor, que se afasta também do psicologismo imbecil e da doença infantil do sociologismo. Não e por menos que o filme começa com uma frase de Jean Luc Godard, justamente o cineasta que deu a maior contribuição ao cinema de narrativa e de idéias, sendo depois soterrado pelas ondas de violência, Kung Fus, King Kong e outras brutalidadws que o filme de Rosemberg ajuda a derrubar, retomando a máxima de que o cinema que hoje está restrito às minorias será o cinema do futuro, o cinema da maioria.

*Publicado originalmente na “Folha de S. Paulo” em 2 de junho de 1978



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