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Dossiê Jairo Ferreira

CINEMA: MÚSICA DA LUZ

O cinema, arquitetura em
movimento, logra despertar
sensações musicais que se
solidarizam no espaço, por meio
de sensações visuais que se
solidarizam no tempo. Na
verdade, é uma música que nos
toca por intermédio da vista.
Elie Faure.

Por Jairo Ferreira
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Cinema é a invenção mais misteriosa de todas as artes, ilusão, música da luz. Jean Renoir afirmava ter a convicção de que o cinematografo é uma arte mais secreta do que as outras. Acredita-se que o cinema seja feito para os seis mil espectadores do Gaumont Palace; não é assim, na realidade ele é feito para três entre mil espectadores. Mas um dos textos mais proféticos sobre o enigma do cinema continua sendo o de Abel Gance (citado in Anthologie du Cinema de Marcel Lapierre): O tempo da imagem chegou ! Explicar ? Comentar ? Para que ? Andamos, alguns, cavalgando corcéis de nuvens, e quando nos batemos é com a realidade, para coagi-la a converter-se em sonho ! A varinha de cordão se encontra em cada câmera, e o olho de Merlin, Mágico, se transmutou em objetiva. O tempo da imagem chegou ! De uma forma ou de outra, a invenção do cinema, arte adolescente com apenas 90 anos de idade contra milênios das artes tradicionais, teria que ser moldada pela poesia para ser o que é hoje o cinema de invenção, de narrativas sintético-ideogrâmicas e de novas percepções. Caso contrário, completa Orson Welles, o cinema teria parecido uma baleia empalhada, mera curiosidade mecânica (in Orson Welles, de Maurice Bessy).

Quanto à formação que um crítico de cinema deve ter, penso que deve ser a mais ampla e eclética possível, já que vejo o cinema como uma arte antropofágica, polarizadora e trancendente na medida em que sintetiza as seis artes que precedem e se metamorfoseia na inquietação sobre um futuro neste fin-de-siècle em que se fala muito em cinema holográfico, cinema laser na era do fazer. Ou como o situo no limiar do século XXI (apud livro Cinema de Invenção, de minha autoria): Anficinema. Nova Grécia Antiga, tecnopop, eletrônica. Substituição gradativa da película perfurada pelo tape tridimensional de alta definição. Cinema sem tela. Cinema sinal, cinema satélite. Sendo a informática a síntese, a formação do crítico não deve se limitar a cinema, mas passar simultaneamente pela leitura dos clássicos, doe gibis, de ocultismo, tudo de pintura/arquitetura/teatro, jornalismo, rádio, TV, circo, ciência, astrologia, sem esquecer a filosofia, a sociologia, mas com especial destaque à poesia e a música- tudo devidamente vivenciado.

A função da crítica, vista como atividade de especialista, é então a de estabelecer uma ponte criativa entre o filme e o espectador, sempre radiografando as estruturas narrativas que geram inalações de ordem múltipla, da metafísica a dialética. Grandes filmes exigem do crítico um verdadeiro mergulho nas profundezas do abismo e bem sempre é necessário que ele volte à tona em textos ou verbalmente. Às vezes o crítico retorna como cineasta, no caso de Jean Luc Godard, grande crítico de cinema nos anos 50 que começou a filmar para melhor entender o mistério do cinema e continuando crítico mesmo como realizador. Nesse sentido, vale lembrar uma indicação de Ezra Pound: Os melhores críticos são os que efetivamente contribuem para melhorar a arte que criticam.

Critérios de análise de um filme: eis uma questão controversa. Pode-se não aceitar a ausência total de critérios, a irresponsabilidade. Entre nós é freqüente que os critérios sejam mais dos editores que dos críticos, quando deve predominar os critérios pessoais do crítico. Os critérios variam muito de filme para filme. O cortiço que analisa um filme como Encouraçado Potemkin deve conhecer muito sobre a revolução de 1917, a posição de Eisensntein em relação às vanguardas da época, seus textos sobre montagem, etc. Já para se analisar alguns filmes brasileiros de grande público é preciso apenas ter acompanhado algumas telenovelas. Quanto aos meus critérios tomo como base a preceptística poundiana e valorizo sempre os filmes de invenção (feitos por cineastas que descobriram um novo processo narrativo) e os filmes de mestres (homens que combinam um certo número de tais processos e os usam tão bem ou melhor que os inventores).

Na minha visão crítica sobre cinema, brasileiro ou não, destaco justamente a potencialidade inventiva de nossos cineastas independentes, de Mário Peixoto a Julio Bressane. Há toda uma estirpe de desbravadores, como o Major Thomaz Reis que revelava os negativos em plena selva. Em condições de produção precária, atingiram em seus filmes excelente resultado estético e poético. Já quando o cineasta tem todas as condições desejáveis, nem sempre os resultados são satisfatórios, de onde concluo que as produções de porte médio são as mais funcionais no caso do cinema brasileiro. Houve, de certa forma, muito mais independência criativa nos primórdios do que se vê nos dias atuais. Faziam cinema os que realmente tinham talento; hoje fazem aqueles que tem jogo de cintura na manipulação política. Felizmente ventos novos começam a chegar na área do curta-metragem, território de reserva da revitalização geral.

Se é verdade que o bom crítico é aquele que contribui para melhorar a arte que crítica, a crítica brasileira deveria pretender muitas sugestões ao cinema brasileiro, mas isso nem sempre acontece. Críticos que realmente contribuem para essa melhora necessária não costumam durar muito tempo em seus veículos. Nossos críticos falam muito em distanciamento crítico- o filme de lá, ele bem longe dos problemas do nosso cinema e muito por dentro dos mexericos de Hollywood. Falta aproximação crítica, envolvimento direto do crítico na produção: só assim se cria um novo movimento, uma nova tendência, uma nova fase criativa.

O fundamental em minha formação cinematográfica foi a crítica. Ela me fez ver o cinema com outros olhos. Assim comecei a rever os filmes e descobri que uma crítica só é respeitável quando o crítico viu e reviu o filme inúmeras vezes (estou falando em grandes filmes, os abacaxis nem é preciso assistir até o fim). Desde a adolescência sempre me interessei por uma crítica mais dinâmica, o que só encontrei em teóricos como Jean Epstein, Louis Delluc, André Bazin e, no Brasil, Paulo Emílio Salles Gomes. O gênero ensaio deveria ter maior espaço, pois é onde o crítico pode desenvolver melhor a sua análise.

As escolas de cinema tem um papel fundamental, mas entre nós não cumprem bem essa função. Salvam-se por sua utilidade técnica, quando a câmera vai parar nas mãos de um profissional da Boca do Lixo. A escola da USP chegou a ter ou tem ainda uma trica que permanecia como um grande mistério para os alunos. O caminho me parece que deve ser o encontrado há pouco na Embrafilme, que inaugurou um centro técnico no Rio, como também promoveu seminários para exibidores, convidou técnicos estrangeiros para falar em estética de cinema, velho caminho que a Vera Cruz abriu e que até hoje vale como uma verdadeira escola. O problema é que os talentos não freqüentam escolas e o bom cinema é sempre feito por autodidatas, que não irão passar os seus truques a outrem.

Os órgãos de imprensa - ou mídia - também seriam fundamentais para o pensamento crítico, mas entre nós eles cumpriam melhor a função dos anos 60. De lá para cá perdeu-se o espaço e os críticos ou escrevem livros ou deixam de existir. Talvez a reconquista desse espaço comece a dar os seus primeiros passos com a atual Lei Sarney de incentivos fiscais, que incentivaria toda uma nova produção cultural que exigiria um acompanhamento crítico à altura.

O Estado poderia fazer muito pelo cinema brasileiro se atrapalhasse menos. Nos últimos 15 ou 20 anos o seu papel foi o de algoz, liquidando sumariamente com inúmeras carreiras promissoras e instaurando um permanente festival de mediocridades pretensamente bem realizadas, porém sem nenhuma força criativa. O Estado deveria se limitar a normatizar as atividades de cinema no país através de uma legislação corajosa, afastar-se por completo da co-produção de longas-metragens e incentivar a área cultural com filmes experimentais de curta e média duração, assim como incrementar a publicação de revistas e livros.

Não costumo separar o cinema em brasileiro e estrangeiro, pois a pátria do cinema é o próprio cinema como arte internacionalista. Entre dez dos melhores filmes do cinema todo incluo três brasileiros: Limite de Mário Peixoto, Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha e O Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla. O melhor é Cidadão Kane de Orson Welles, pela invenção de uma complexa estrutura narrativa que representa constante desafio aos melhores críticos, o que divertia muito ao seu inventor que considero também o maior cineasta de todos os tempos. Jean Luc Godard é outra paixão, mas só incluiria um filme dele numa relação dos vinte melhores (One Plus One); em todo caso é o exemplo de experimentador e inventor permanente. De resto citaria muitos cineastas dos quais gosto de quase todos os filmes: Eisensteins, Hitchcock, Antonioni, Fuller, Ford, Bressane, Candeias, Chaplin, Hawks, Lang, Buñuel, Glauber, muitos outros autores-inventores.

O futuro do cinema? Estou com Roberto Santos: O cinema ainda não nasceu. É muito novinho, está dando os primeiros passos. De fato, 90 anos é muito pouco em relação aos milênios das artes que o precedem. O cinema laser já mostrou seus trailers e o século XXI deverá consolidar de vez a força de expressão dessa arte sintética.

O filme- nunca o cinema- já pertence ao passado. A película perfurada e os processos mecânicos foram superados pelo teipe magnético do cinema eletrônico. Cinema agora é televisão e Godard já faz seus filmes eletronicamente. O vídeo no momento está mais próximo do cinema, mas a tendência é a de que o cinema se aproxime mais da televisão.

Sobre o papel dos circuitos e da produção alternativas: é o caminho normal da experimentação que, no Brasil, chegou a ser exibida em salas convencionais, com exceções de Limite que não teve esse privilégio pois foi rodado a 16 QPS e exige um projetor que tenha essa novidade. Dos circuitos alternativos é que se originam as idéias e as formas que o cinema Standard difunde em escala industrial de massa. Toda a cultura de cinema tem também no alternativo a sua sede, sua capital.

A crítica geralmente considera prioritário num filme a temática, devido à sua formação conteudística e sócio-ideológica, mas eu não separo a temática da forma utilizada: da forma nasce a idéia (Flaubert) e não há linguagem revolucionária sem forma revolucionária (Maiakovski) e, como poeta Roberto Santos, só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental.



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