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Dossiê Jairo Ferreira

ENTREVISTA COM JULIANO TOSI

Por Matheus Trunk
Fotos: Gabriel Carneiro

Juliano Tosi, 30 anos, crítico da revista Paisà é um discípulo de Jairo Ferreira. Discípulo fiel, que teve grande contato com seu mestre nos últimos anos de vida deste.

Jornalista, terminando uma tese sobre Ozualdo Candeias, Tosi esteve com Jairo nos últimos momentos desse. Pela amizade e companheirismo ao lado do célebre porta-voz do Cinema Marginal, ele adquiriu um vasto acervo do crítico. Em vez de guardar as matérias, fotos e roteiros de Ferreira, Tosi teve o cuidado de compartilhar com os demais fãs e cinéfilos os textos de Jairo os disponiblizando gratuitamente pelo blog Cinema de Invenção.

Nessa expressiva e interessante entrevista para a Zingu!, Juliano conta como conheceu o trabalho e a obra de Jairo Ferreira, desde as leituras do clássico “Cinema de Invenção” até a recente edição do prêmio com o nome do crítico paulista.

Z- Então Juliano, pra começar queria saber como você descobriu o texto do Jairo.

JT- Na verdade, foi uma coisa razoavelmente ao acaso. Eu comecei a ler os primeiros textos dele na época da faculdade de jornalismo, mas não porque houvesse algo me indicando ou direcionando pro trabalho dele. O Jairo estava meio esquecido, não escrevia em lugar algum há um bom tempo. E o cinema que o ele inventariou durante 30 anos, o cinema experimental, nessa época, meados dos anos 90, também estava meio que esquecido, salvo algumas exceções. As pessoas não davam muito valor a esse cinema, não se interessavam tanto por ele como pelo Cinema Novo. Ao mesmo tempo, a gente não tinha muito espaço pra ver os filmes do Candeias, alguns filmes do Sganzerla, Bressane. Mas principalmente o Candeias, Trevisan, Callegaro, Luiz Rosemberg, esse pessoal era muito difícil ver o trabalho deles no Rio. Mas por alguma preferência pessoal, eu comecei a me interessar por esses filmes e queria ler algo sobre eles. Eu não tinha ainda muitas referências. Aliás, acho que o pessoal da minha geração que faz crítica foi descobrindo as coisas muito mais por curiosidade. Então, o primeiro material realmente interessante que eu achei foi o do Jairo, o “Cinema de Invenção”. Eu tinha lido o livro do Fernão Ramos, mas era algo que nunca me satisfez. Tem coisas interessantes, de contextualizar de onde saiu aquele cinema e tudo mais, mas quando eu li o livro do Jairo, a diferença me bateu de cara, era uma outra coisa não só pela maneira como ele abordava aquele cinema, mas pela maneira como ele fazia crítica mesmo. Era alguma coisa que até então eu nunca tinha visto ninguém fazer crítica daquela maneira: como eu digo, ele informa pela forma como escreve. Uma maneira muito pessoal, particular de se botar dentro do texto e de não querer colocar uma distância entre ele e os filmes. Isso ele fez durante a carreira dele toda, e lendo o livro eu fiquei fascinado não só pelas informações sobre os filmes, que eu fiquei com mais vontade ainda de assistir, mas pela própria maneira como ele descrevia e analisava esse cinema. Mais ou menos na mesma época eu vi “O Guru e os Guris” num festival universitário no Rio, numa mostra dedicada ao Carlão Reichenbach. Como ele fotografou o curta do Jairo, “O Guru” chegou a passar. Eu também adorei, me marcou bastante a cena do bar com o Maurice Legeard já meio bêbado, e a própria construção de um documentário nada didática, experimental, que tinha uns planos fantásticos. Enfim, a idéia de cinefilia do Legeard, como algo aberto, empírico, de descoberta, que cabia a cada geração inventar a sua, era algo novo e que me fascinava. Isso me deu uma vontade cada vez maior de querer conhecer a obra do Jairo. E por aí vai: eu comecei basicamente me interessando pelos filmes e querendo buscar informações que eu não encontrava em outros lugares, e que não tinha em outros lugares mesmo. A crítica mais oficial falava de alguns filmes, como “O Bandido da Luz Vermelha”, dos primeiros filmes do Bressane, mas aquelas películas mais ocultas eu não tinha outra maneira de me informar e foi através do Jairo que eu conheci melhor.
Z- Como você conheceu ele pessoalmente?
JT- Na época, eu estava escrevendo na Contracampo e a gente, eu, o Ruy e o Eduardo Valente tivemos a idéia de fazer uma pauta bem ambiciosa, de fazer uma espécie de apanhado e uma consulta de umas cem pessoas de quais filmes elas achavam melhores.
Z- De listas certo ? As 108 listas..
JT- É, e a gente acabou conversando com mais de cem pessoas. Não era uma consulta exatamente óbvia. A gente chamou muita gente que está esquecida, que não era muito valorizada. O Jairo, era uma pessoa obrigatória da gente consultar e eu corri atrás do contato dele nessa época. Foi uma coisa meio impressionante, ele estava totalmente esquecido, ele queria reeditar o “Cinema de Invenção” desde o começo dos anos 90. Ele ficou meio impressionado com o meu interesse e que eu conhecia razoavelmente bem o que ele tinha escrito, algumas coisas pelo menos. Algum conhecimento eu tinha, mas era muito mais o interesse mesmo. A gente conversou bastante e ele gostou de trocar idéia comigo, de alguém mais jovem estar interessado no que ele tinha a dizer e a partir daí, 2000, a gente ficou bastante amigo. A gente conversava por telefone com alguma freqüência.
Z- Você morando no Rio ?
JT- Eu morando no Rio ainda.
Z- A conta vinha alta ?
JT- É, ás vezes vinha. E a partir do momento que eu vim a São Paulo, a gente tinha alguns encontros eventuais. Primeiro eu encontrei com ele pessoalmente quando teve aquela mostra de Cinema Marginal no CCBB, que ele ia bastante. Eu vim aqui pra São Paulo só pra acompanhar essa mostra, que tinha um monte de filmes que eu queria ver há muito tempo, como “O Pornógrafo”, “As Libertinas” e que eu pude assistir pela primeira vez nessa mostra. Ele nessa época já estava meio decadente, fisicamente mesmo, já estava bem desgastado com a vida. Ele, como todo mundo sabe, bebia bastante, abusava bastante do corpo dele. Tinha também o lado psicológico dele se sentir meio desprestigiado, porque ele fez um trabalho foda de crítica de cinema, que tava completamente esquecido, abandonado. A reedição do livro dele acho que ajudou um pouco.
Z- Quando foi isso ?
JT- A reedição foi em 2001. Essa mostra de Cinema Marginal e depois a do Candeias, eu acho que ajudou a valorizar a obra dele, mas era algo que tinha seus limites. Sem contar a coisa dele de ter de lidar com o vício. Era uma coisa complicada, porque ele era uma pessoa muito generosa, super aberta a conversar contigo, trocar idéias, mas era uma pessoa difícil de conviver por outro lado. Ele tinha uma demanda muito grande das pessoas, um nível de exigência alto. O vício dele, era muito complicado de conviver com isso, então a gente tentava ajudar ele mas era difícil ver resultados. Então, muita gente ajudou ele nessa época: eu, a Mônica, o Paulo Sacramento ajudava ele muito, o Carlão, o Inácio, a Guiomar Ramos. Sempre tinha um monte de pessoas em volta dele querendo ajudar e ajudando efetivamente, mas era difícil a gente conseguir ver resultados. Ele era internado e fugia, por aí vai, e então era muito complicado. Mas sempre era muito rico conversar com ele, tinha muita coisa que eu aprendi lendo e conversando com ele, coisas que eu sei que vão ficar comigo por muito tempo.
Z- Então, você não aprendeu somente cinema com ele ?
JT- Não, até porque tem aquilo que todo mundo que conhece o Jairo e a obra dele: é difícil separar a vida dele do cinema. Ele falava que respirava cinema por todos os poros do corpo, 24 vezes por segundo. Quer dizer, ele nunca fez essa separação entre cinema e vida. O Jairo estava fazendo um filme, numa produção e ele não tinha o menor pudor em fazer uma matéria pro São Paulo Shinbun falando o que ele achava daquele filme, jogar lá pra cima. Não tinha nenhuma coisa neutra a crítica dele e era certamente uma das riquezas dele. Isso a gente via no dia-a-dia dele de alguma maneira. A generosidade dele, o fato de ser uma pessoa sempre aberta e que não tinha muita proteção, vamos dizer assim, acho que fazia parte disso. Ele não criava uma barreira pro mundo e nem pras pessoas que estavam em volta dele. Isso era uma grande vantagem, mas eu acho que por outro lado ferrou um pouco ele. Ele não se protegia, ele não criava uma armadura no trabalho dele. Eu não falo isso pra dizer que ele era um coitado, acentuar um lado de vítima dele. Pelo contrário, é pra eu dizer como ele era uma pessoa generosa, aberta e isso estava no trabalho dele, essa abertura pro mundo estava no trabalho dele e era uma das riquezas do trabalho, essa maneira de estar aberto a tudo.
Z- O contato com a obra mais antiga dele, tanto com o São Paulo Shimbun como da Folha, se deu depois ?
JT- Isso. Depois que eu vim pra São Paulo e conheci o Jairo melhor, ia na casa dele eventualmente. Ele sempre guardou o material dele, críticas, fotos, roteiros, de maneira não muito organizada, mas tinha coisas que ele guardava há mais de trinta anos. Então com o tempo ele sempre foi passando isso pras pessoas: o Paulo Sacramento tem muita coisa dele, por exemplo, e uma das pessoas com quem ele deixou esse material foi comigo. Então, tem alguns roteiros comigo: roteiro do “Vampiro da Cinemateca”, tem algum material de fotofilmes que ele fez e tenho algumas matérias do Shimbun, alguma coisa da Folha, também, que era menos. Eu tenho também outras coisas que eu pesquisei depois, por conta própria. Ele deixou comigo também a listagem de todas as matérias que ele escreveu na Folha, assim como eu tenho anotado, do Shimbun, todas as 250 matérias.
Z- No livro da Coleção Aplauso saiu quantas do Shinbun ?
JT- Se eu não me engano saiu um terço. Se eu me engano, ele escreveu uma coisa em torno de 250 artigos. Ele e os colaboradores que eventualmente eram o Carlão, o Inácio e outros. No livro tem mais ou menos um terço deles.
Z- E você tem todos os textos ?
JT- Não, eu tenho a listagem de todos. Eu tenho alguns. Provavelmente no Shimbun tem, eu não sei como é o acervo deles, se é algo organizado. Mas eu imagino que o Alessandro Gamo tenha pesquisado lá também, mas eu imagino que ele tenha lido todos ou boa parte desses artigos e tenha feito uma seleção.
Z- Você nunca tentou ir lá ?
JT- Não, não. Nunca tentei ir lá.
Z- Nem interesse ?
JT- Interesse eu tive, mas é aquela coisa: por algum motivo acabou não sendo feito. Eu conversei com o Jairo e tinha interesse nisso, e ficou como uma coisa a ser feita. Quando eu fiquei sabendo que o Alessandro estava fazendo, pensei: “Ótimo, já tem alguém fazendo isso”. Eventualmente, ainda tenho vontade em fazer uma outra coletânea com outros textos dele, da Folha, da Filme Cultura e de outros jornais do anos 80 como Imagemovimento, Cine Imaginário, tem outras coisas que eu guardei lá e acho que dava uma boa coletânea dele. Na Folha ele escreveu durante bastante tempo e tem mais coisas que no Shimbun. Por alto, eu diria que ele tem mais ou menos uns 500 textos na Folha, mas é mais ou menos um chute pelo que ele me passou. São textos que muitas vezes eram notas de dois parágrafos que davam mil toques, mas tem textos de uma página inteira. Com freqüência ele fazia artigos, entrevistas de página inteira ou meia página, pelo menos. Então, é um material muito grande, muita coisa que ele escreveu tanto de cinema mais experimental do Bressane, Sganzerla quanto o cinema mais comercial como os filmes do Jean Garret, as produções do Galante e que ele estava lá pra cobrir, escrever.

Z- Tem muita diferença da cobertura dele da Folha pro Shinbun ? Muda muito o estilo ?
JT- Tem alguma diferença. Mas se a gente for comparar um texto dele no Shimbun com um texto atual da Folha, de hoje em dia... Ele até chegou no final dos anos 90 a escrever dois ou três textos pra Folha. A diferença já é bem maior e se você pegar os textos dele da Folha dos anos 70, são bem mais livres do que os textos que os grandes jornais publicam hoje em dia. Ele tinha bem mais espaço, ele tinha acho que mais liberdade de se pautar do que o pessoal hoje em dia. E se não era a mesma escrita do Shimbun e do Cinema de Invenção, aquela coisa de inventar pseudônimos, essas coisas, era uma escrita muito pessoal, de invenção mesmo. A gente pega os textos dele, não era uma coisa convencional mesmo estando num jornal grande e era uma coisa até onde eu saiba que só ele fazia, mesmo nos grandes jornais. Eu acho muito difícil que tenha outra pessoa que tenha conseguido cobrir aquela produção do cinema da Boca do Lixo, boa parte dos filmes brasileiros, pelo menos os principais de 76 a 80 ele cobriu. Uma coisa muito importante pra falar é que mesmo os textos mesmo da Folha, 80, 90% do que ele escrevia era sobre cinema brasileiro. Você vê raramente algo sobre cinema estrangeiro, bem raro.
Z- Mesmo Fritz Lang, Orson Welles ? O cinema que ele gostava ?
JT- Tinha, mas era minoria. Era bem minoria, mas tem textos sobre o Howard Hawks, o Welles, o Rossellini. Mas ele escrevia sobre cinema estrangeiro muitas vezes porque era inevitável, tinha que escrever sobre o lançamento do “King Kong”, o lançamento do 007, que vinham os atores pro Brasil, então ele ia fazer a cobertura disso. Mas nesses casos ele fazia isso em tom de paródia, colocando as questões que o Paulo Emílio colocava mas em tom de paródia. Tem um texto que eu coloquei no blog, que ele fala de “guerra entre tubarões e peixinhos”, onde é muito legal o que ele escreve. É uma notinha, um texto a princípio muito bobo, mas nas entrelinhas tem muitas questões bacanas que ele colocava ali de ocupação do cinema brasileiro pelo estrangeiro e até a questão da briga entre o cinema nacional de maior público e a produção miura. Tem algumas questões fortes naquela época colocadas de modo muito irônico. De uma maneira única, ele mistura Oswald de Andrade, King Kong, tubarão... fazendo uma paródia disso tudo, falando de antropofagia e de uma maneira muito particular dele e que, pelo menos pra mim, funciona muito bem. Era uma coisa muito rica, vigorosa e de alguma maneira ele levava até adiante algumas questões que o Paulo Emílio, por exemplo, colocava naquela época. O Paulo Emílio por exemplo, fazia valoração de todo cinema brasileiro e o Jairo já colocava isso um pouco diferente. Já separava o cinemão do cineminha e pra ele obviamente era mais importante o cineminha que o outro. Ele colocava essa diferença que era fundamental. Não que ele fosse contra o grande, mas ele brigava mais pelo cinema alternativo e ele colocava essa diferença muito claro nos textos dele. Levava um pouco além a questão do Paulo Emílio, nesse sentido se que o Paulo considerava que todo filme brasileiro tinha a sua importância, o Jairo acreditava que não era bem assim exatamente. Era importante a gente lutar por um outro cinema, uma coisa um pouco diferente, não é só porque é um filme brasileiro que a gente tem que aceitar. Tinha a questão estratégica do Paulo Emílio, mas o Jairo tinha outro lado de não aceitar isso tão abertamente quanto a maioria das pessoas aceitavam. Não que ele combatia, mas ele tinha uma visão um pouco diferente das coisas, de lutar por um outro cinema na medida do possível.
Z- Mais autoral ?
JT- É, mais autoral...
Z- Mais independente ?
JT- É, mas ao mesmo tempo podia ser até um cinema mais comercial. Ele até gostava do Jean Garret, algumas coisas do Ody Fraga. A questão era um cinema inventivo.
Z- Mas ele não gostava de um cinema acadêmico vamos dizer assim ?
JT- Não, cinema acadêmico ele odiava pra falar a verdade. Mas ele não era contra todo cinemão. Vamos pegar os filmes do Neville de Almeida, que começou numa chave mais experimental e depois mudou. No começo, o Jairo foi bem agressivo com essa mudança do Neville, falando muito mal da “Dama do Lotação”, por exemplo. Mas você vê que aos poucos ele aceitou o cinema do Neville e até defendia esses filmes que foram sucessos e lidavam com os códigos da pornochanchada, mas dialogava com esse gênero de maneira autoral e tudo mais. Eram filmes comerciais, mas que tinham uma visão muito forte do Neville naqueles filmes, então o Jairo defendeu esses filmes num segundo momento. Então, ao contrário do que muita gente pensa, não era uma defesa somente da coisa miura, do Candeias, por exemplo, que às vezes nem chegava ao circuito.
Z- Tipo Bressane ?
JT- É, não era só isso.
Z- O Bressane nunca teve uma grande bilheteria ?
JT- Não, eu acho que “Tabu” nos anos 80 teve uma bilheteria boa. Boa, digo assim, não é aquela coisa que fez um milhão de espectadores, mas fez cem mil. O que pro Bressane é um fenômeno. Mas em geral os filmes dele fazem cinco, dez mil, às vezes nem eram lançados. Mas não era o cinema exclusivo que o Jairo defendia, ele tinha uma visão bem aberta pra esse cinema e ele defendia a Boca do Lixo de uma maneira bem intensa. Não só os filmes do cinema de invenção, ele defendia a Boca como um todo, mesmo que nem todos os filmes fossem defensáveis.
Z- Ele tinha uma linha de aceitar certos filmes comerciais. Eu li uma crítica dele muito legal sobre um filme sobre o Agnaldo Rayol, que ele aceitou bem.
JT- É o que eu falei, o Jairo não era uma pessoa fechada, dogmática, não tinha essa coisa de pregação por um cinema experimental. Ele sabia ver o vigor estético, o valor que alguns filmes comerciais podiam ter. Ele volta e meia defendia alguns filmes que você não esperava que um cara supostamente ligado ao cinema de invenção defenderia. O Candeias é provavelmente o cara que ele mais defendeu na Folha de São Paulo, por exemplo, mas ao mesmo tempo ele fazia a apologia dos filmes do Jean Garret, que muita gente metia pau. De maneira até intensa em alguns casos. Quer dizer, não era uma coisa que você esperava mas acho que demonstrava isso, que não era uma coisa dogmática essa pregação dele a um cinema experimental. Ele era muito aberto.
Z- Como era ele com o cinema do Khouri ?
JT- Ele não era um dos grandes fãs do Khouri, não. Na verdade, ele até tinha uma certa distância desse pessoal mais ligado ao Biáfora. Ele respeitava, mas não era o cinema que ele mais gostava e volta e meia ele até atacava de uma maneira razoavelmente forte alguns filmes do Khouri, do Sternheim. Mas o Khouri não era um cineasta com quem ele tivesse grandes diferenças não. A primeira edição do “Cinema de Invenção” tem um capítulo dedicado ao Khouri, que ele tirou da segunda edição porque, revendo, achou que não tinha a ver. Ele tirou pra botar outros capítulos, do André Luiz Oliveira, do Neville. Então tem filmes de que ele gosta bastante, a fase mais existencial o Jairo não gosta tanto. Ele gosta mais dos filmes de gênero, os filmes de terror basicamente: “As Filhas do Fogo”, “Amor Voraz” ele escreveu uma crítica muito bacana na Filme Cultura.
Z- E “O Anjo da Noite” ?
JT- Esse eu não sei porque eu não li nada dele a respeito. Mas eu imagino que ele tenha gostado. Mas esses filmes do Khouri que lidavam com o gênero, tinham essa chave o Jairo defendia e gostava bastante. Não à toa ele colocou o cineasta no “Cinema de Invenção” e escreveu sobre esses filmes falando muito bem. Tem até algumas expressões que ele usou nessa crítica do “Amor Voraz” que eram bem bacanas. Ele dividiu a obra do Khouri em dois momentos, posso até te passar depois, muito boa essa crítica. Era um cinema que não era o cinema dele, mas que ele respeitava e que eventualmente ele admirava e via muitas coisas boas no meio.
Z- Por exemplo, acho que na primeira edição do “Cinema de Inveção”, ele fala bem do Biáfora. Tem um artigo no São Paulo Shimbun ele mete o pau. Como era essa relação dele com o Biáfora ? O que você chegou a saber disso dele, pessoalmente ?
JT- Então, eu nunca conversei com ele sobre o Biáfora. Talvez alguma coisa ou outra, mas nada mais detalhado. Até acho que eu me lembro dele ter comentado que o Biáfora era um cara que ele respeitava, mas não entrei em detalhes com ele.
Z- Nunca foi uma grande referência ?

JT- Não, até acho que foi uma grande referência pra ele, mas como não era pra mim eu não perguntei muito. Eu também não conhecia muito bem o Biáfora nessa época, conhecia vagamente. Sobre o Biáfora, eu acho que ele tinha mais respeito porque ele começou no cinema com o Biáfora. Até acho que eu tenho um papel com anotações, já que ele rabiscava tudo, em que ele fala que é cria do Biáfora e tal. Uma das primeiras coisas que ele fez em cinema, tirando a experiência no Cineclube Dom Vital e a coluna no Shimbun, foi trabalhar com o Biáfora no “O Quarto”.

Z- E ele gostou dessa experiência ?
JT- Eu não sei, não sei. Nunca conversei com ele a respeito, mas acho que alguma maneira marcou ele sim, acho que alguma coisa acrescentou a ele. Mas uma crítica que ele fazia ao Biáfora, era essa coisa de ser meio de catalogar as coisas e saber tudo, a filmografia de todo mundo, essas informações... Tipo, saber tudo do William Wyler, ele falava filme por filme. Mas ele achava que o Biáfora ficava um pouco nisso, de ficar muito nos dados, mas no fazer a crítica, colocar os dados em perspectiva ele não se ligava muito. Ele achava o gosto do Biáfora meio convencional. E da mesma maneira que ele não gostava do Khouri é natural ele não gostar muito do Biáfora, que eles eram muito ligados um com o outro. Mas eu acho que a gente tem que pensar o seguinte: as críticas do Jairo com muita freqüência eram escritas naquele momento, então tinham aquele mood do momento. Se aquele momento ele achasse que tinha que tacar o pau em algo, ele tacava o pau. Mesmo se daqui um ano ele pudesse jogar lá em cima.
Z- O Jairo era muito ou 8 ou 80 ?
JT- É, era um pouco isso. Então, tem até no livro do Alessandro Gamo, os primeiros textos dele sobre o Mojica, ele taca o pau no Mojica. Quando ele viu “À Meia Noite”, ele tacou pau, falou que o Mojica não sabia nada. Ele não via um grande vigor estético nos filmes do Zé do Caixão em 65, 66. Foi só depois que ele mudou a opinião dele, acho que até certo ponto inspirado no que o Sganzerla escreveu, que foi o primeiro cara a escrever bem sobre o Mojica nessa época. E você pega dois, três anos depois ele joga o Mojica lá em cima. Quando ele ia lançar o “Despertar da Besta”, ele falou que o cara era um gênio. Então, você tem que relativizar isso um pouco: primeiro, porque as pessoas mudam de opinião mesmo, e o Jairo tinha muito isso, não tinha pudor de colocar as coisas que ele sentia naquele momento nem tinha pretensão de fazer uma crítica definitiva do que ele estava escrevendo. Então, ele podia tacar pau no filme do Godard sabendo que ele era um gênio, fazendo uns filmes foda, mas ele podia ver um “Week-end” e eventualmente tacava o pau em algumas coisas que ele ainda podia mudar de opinião depois.
Z- E o Almeida Salles ? Ele tinha alguma influência ?
JT- O Almeida Salles, até onde eu saiba era meio que uma unanimidade entre todo mundo, todo mundo respeitava muito ele.
Z- Mais que o Biáfora ?
JT- O Biáfora era muito polêmico, era aquela coisa... o Paulo Emílio escreveu que as pessoas falavam que o Biáfora não era do reino vegetal ou animal e sim do mineral, porque quem não gostava dele falava que ele era teimoso como uma rocha, e quem gostava dizia que era um diamante. Então, não tinha meios termos. O Almeida Salles não, até onde eu saiba não tinha ninguém que fizesse grande oposição ao que ele escrevia, ele circulava em todos os grupos. Tenho comigo um texto que ele chama o Almeida Salles de presidente da amizade. Porque ele já era chamado de presidente por ter sido um dos fundadores da Cinemateca, mas o Jairo já acrescentou: presidente da amizade. Quer dizer, coloca como ele admirava o cara, tinha respeito e tudo mais, e que não era uma coisa meramente profissional, que pra ele ia além disso. Então, eu não sei em quanto influenciou o trabalho dele de maneira profunda, mas certamente ele respeitava e admirava o trabalho do Almeida Salles.
Z- E o Carlão, o Inácio ? Você chegou a falar com eles sobre esse crítico.
JT- Hum... Não sei exatamente como era a relação do Inácio e do Carlão, mas certamente eles deviam ter alguma admiração. O Almeida Salles eu nunca vi ninguém falar mal dele, podia ter eventualmente alguma divergência mas era secundária no meio dos elogios que as pessoas faziam, da admiração que as pessoas tinham. Até onde eu saiba era um cara bem admirado em todos os meios do cinema paulista.
Z- Já que a gente está falando desses críticos mais antigos... e o Moniz Viana ? O que ele achava do Moniz Viana ?
JT- Cara, eu não sei o que o Jairo achava... eu nem sei se ele lia o Moniz Viana, porque ele era do Rio. Eu não sei o quanto ele lia ou conhecia, mas eu acho que o Jairo teria muitas divergências com ele. O Moniz Viana era uma pessoa meio dogmática, eu acho, muito fechada a um tipo de cinema. Eu acho que tem uma diferença fundamental entre a crítica do Moniz Viana e a do Jairo, pelo menos até onde eu conheço o Moniz. Ele tinha um ideal de cinema, que era mais ou menos o cinema clássico, não necessariamente acadêmico, mas era digamos clássico. E pra ele os filmes eram melhores ou piores o quanto estivessem próximos de um ideal. Não é à toa que ele abandonou até o hábito de assistir filmes: o cinema de que ele gostava acabou. O Jairo pra mim era uma pessoa mais aberta a gostar de um filme que pudesse não estar tão ligado ao cinema que ele admirava. Ele podia gostar de uma pornochanchada, e tinha várias muito boas, apesar de ter uma pecha de cinema vagabundo. Mas no meio do grosso da produção, tinha muita coisa boa e o Jairo sabia ver isso, coisa que eu não imagino o Moniz Viana fazendo, de uma pornochanchada e de um filme mais vagabundo digamos assim. Então, até onde eu posso dizer, é uma coisa bem diferente.
Z- O Paulo Emílio ele admirava ?
JT- Admirava sim. E vice-versa. O Paulo Emílio, quando era professor da ECA/USP, tinha o hábito de exibir alguns filmes que não chegavam no circuito. Uma das vezes ele passou “O Vampiro da Cinemateca” pros alunos e fez altos elogios ao Jairo, dizendo que ele era uma presença do cinema brasileiro e que ele estava muito curioso pra ver o filme, tal. E o Jairo mesmo que ele pudesse ter algumas diferenças com a crítica do Paulo Emílio, eram diferenças não no sentido de disputa. Ele respeitava o conhecimento do Paulo Emílio, mas tinha algumas coisas que ele não colocava da mesma maneira. Então, aquilo que eu falei antes: se ele achava importante lutar por um cinema brasileiro que ocupasse o mercado, ele achava mais importante ainda lutar por um certo cinema brasileiro. Então, se a idéia é razoavelmente a mesma, tinha também algumas diferenças importantes. Em geral, ele gostava muito do Paulo Emílio, como todo mundo gostava. Você falou do Carlão, do Inácio: eles fizeram provavelmente a principal entrevista com o Paulo Emílio, na Cinegrafia, que é uma entrevista de umas vinte páginas, uma entrevista histórica que é sensacional. Esse pessoal, o Candeias também, gostava muito dele. Mesmo o Paulo Emílio tendo sido mais ligado ao Cinema Novo, ele sempre defendeu a Boca do Lixo e não tinha nenhuma disputa entre o grupo do Paulo Emílio e o do Jairo.
Z- Falando da Cinegrafia, teve quantos números ? Três ?
JT- Não, só teve um número.
Z- Era o Carlão, o Inácio, o Éder Mazzini ?
JT- Quem editava era o Carlão, o Inácio e o Éder Mazzini. E como eles eram muito amigos do Jairo, ele colaborou também nessa revista. Era uma publicação bem fundo de quintal, papel bem ruim, quase que xerox, mas uma revista razoavelmente grande pra maneira que ela foi feita. Uma revista muito bacana e é uma pena que só tenha durado um número. O Jairo se não me engano, escreveu dois textos: um em que ele detona “Noite Americana”, do Truffaut, e outro bem pessoal dele, falando de crítica de cinema. O Candeias colaborou, outras pessoas colaboraram mas a principal matéria desse número único foi essa entrevista com o Paulo Emílio, que é uma entrevista histórica e é fundamental pra quem quer conhecer mais sobre ele. Mas é uma pena que essa publicação não tenha pegado.
Z- Vendeu muito mal ?
JT- Eu não faço idéia... Mas eu imagino que sim, senão teria durado mais. Na verdade, eu nem sei se ela estava à venda, se eles distribuíram, porque na capa pelo menos não tem um preço. Vai ver eles só distribuíram pros amigos, eu não sei. Mas por algum motivo não continuou. Teve até nessa mesma época, o Jairo fez uma revista de bolso chamada Metacinema, que só teve um número também. Uma coisa bem pequena num papel sei lá, A4 dobrado em quatro partes, bem pequena mesmo, em xerox também, que ele fez toda sozinho. Como ele fazia pra ele mesmo aquilo, era uma coisa que ele extrapolou em todos os sentidos, essa coisa de escrever em primeira pessoa, usar pseudônimos e tudo mais. Então, se eu não me engano o nome dele mal aparece na revista e tem só os pseudônimos: João Miraluar, Décio Sarrafo, e por aí vai, é uma coisa dele mesmo. Nessa revista Metacinema eu acho que está o lado mais radical dele em crítica de cinema, deve ter sido um exemplar único, uma coisa muito pequena mas é um outro exemplo bem interessante de crítica que o Jairo fez nessa época, um pouquinho antes dele entrar na Folha, 74 por aí.
Z- A Cinegrafia você comprou em algum lugar ?
JT- Não... Eu consegui junto com o Ruy Gardnier na Cinemateca do MAM, a gente fez uma xerox. Até tenho umas duas ou três cópias. A Metacinema o Jairo me deu um exemplar, mas a Cinegrafia eu fiz um xerox na Cinemateca do MAM, que tem um baita acervo legal e é super acessível pra você pesquisar lá. Tem o Hernani, que é um cara super legal, na Cinemateca do MAM, o que você precisa ele está sempre aberto.
Z- Puta ! O Hernani Heffner é um excelente pesquisador.
JT- O Hernani é genial, sempre que precisei pesquisar lá coisa de algum filme, ele sempre foi super gente boa.
Z- Vamos falar desse negócio do Jairo fazer still em alguns filmes... Ele fez trilha sonora de outros, de pornochanchadas. Ele chegou a comentar esse trabalho dele de técnico com você ?
JT- Ele fez foto de cena, still, assistência de direção em alguns filmes, fez roteiro no “Audácia” e no “Pornógrafo”... Até onde eu saiba pro Jairo fazer crítica ou cinema era a mesma coisa, pra início de conversa, mas ele também gostava muito de fazer filmes, trabalhar em filmes. Então, ele fez muitas coisas em super 8, mas tinha também essa coisa de querer fazer filmes, participar disso, de estar por dentro das coisas mesmo, por dentro da produção, de ver como as coisas são feitas. E isso é muito importante: a diferença entre escrever e filmar era quantitativa, não qualitativa, como dizia o Godard. Então, como ele era muito amigo das pessoas, e estava sempre na Boca do Lixo e gostava de fotografar, era razoavelmente fácil fazer still, por exemplo. Ele gostava muito de música, também, então era razoavelmente simples fazer seleção de trilha sonora de filmes. E por aí vai, é uma coisa natural pra ele, juntando que ele não separava o cinema da vida, o trabalho de crítica do trabalho nos filmes, e de ser uma coisa razoavelmente simples porque juntava um monte de coisas de que ele gostava e eram naturais pra ele. Volta e meia ele estava fazendo alguma coisa que não era a função principal do filme, mas ele estava lá no meio fazendo alguma coisa na produção. Às vezes ele aparece como ator...
Z- Nos filmes do Candeias...
JT- No “Aopção”, no “Vigilante” ele aparece fazendo algumas pontas. No “Pornógrafo” ele aparece e faz roteiro, no “Filho da TV” do João Batista ele aparece numa cena e por aí vai. Então, ele estava sempre por ali por perto, acompanhava às vezes pra fazer alguma matéria e acabava fazendo alguma coisa pro filme. É um pouco por isso, de tão forte ele estava nessa parte de produção, de fazer filmes que ele acabava entrando de uma maneira ou outra.
Z- Vamos falar um pouco dos filmes que ele dirigiu...
JT- Ele dirigiu longa super 8, “Vampiro da Cinemateca” por exemplo.
Z- Não passou em circuito comercial ?
JT- Só passava em circuito alternativo até porque era super 8, não tinha nenhuma sala comercial que passasse super 8 ou que mesmo passasse 16 milímetros. Ele nunca fez nada que passasse no circuito comercial, mas o que eu sei é que quando o Galante resolveu fazer “As Safadas”, que era um longa em episódios, ele teve muita vontade de fazer uma parte, e ele ficou pentelhando o Galante pra ver se ele deixava. Mas o Galante, como produtor, achava o Jairo muito louco e não topou porque não sabia o que ele ia fazer. Talvez ele tivesse gostado de ter feito algo que pudesse ter sido mais visto, mas o importante eu acho que o importante era fazer os filmes dele. Até porque você vê o trabalho crítico dele: ele não dava mais valor a um filme que não entrava em cartaz pra um que tinha feito quatro milhões de espectadores. Pra ele eram filmes iguais, e normalmente ele dava até mais espaço pro filme que ele sabia que as pessoas não iam ver. Isso não era um problema pra ele exatamente não e a maneira como ele fazia os filmes era muito engraçada. Nessa listagem que ele me passou da Folha, das matérias , tem data, título, ele botava se era nota, crítica, uma reportagem, entrevista... Aí na época das férias dele ele botava: “Férias. Fiz tal filme”. Ele fazia os filmes nas férias dele da Folha de São Paulo, então ele tinha que fazer as fitas em trinta dias. “O Ataque das Araras” ele fez por exemplo durante uma viagem dele pro Norte e Nordeste, resolveu fazer um filme sobre o Sousandrade. Ele estava lá, na terra do Sousandrade e resolveu filmar alguma coisa com a câmera super 8 dele, era uma coisa razoavelmente assim. Então, ele fazia os filmes dele de uma maneira bem amadora, mas pra ele isso não era um problema exatamente.
Z- Ele não separava o crítico do realizador ?
JT- Você pode até ver que a locução dos filmes dele eram feitos por ele. E às vezes eram bem parecidas com o que ele fazia em crítica de cinema, a escrita e até a própria coisa de citação. Então, nos filmes ele chupava os filmes dos outros, vampirizava... “O Vampiro da Cinemateca” você vê que ele não tinha o menor pudor de botar uma câmera na sala de cinema e filmar uma cena de Orson Welles e botar no filme dele. Então, isso se liga muito à idéia dele de crítica que está no “Cinema de Invenção”, não se preocupando muito em botar aspas e tal. No texto dele, você lendo, até repara que o trecho tal não foi escrito por ele, que é de outra pessoa, então vai por aí também, a maneira dele filmar era muito a dele escrever. A locução como eu falei era totalmente incomum, em primeira pessoa, o tom de voz era outro, distorcido, e não de simples narração, fazendo piada e trocadilhos, que era como ele fazia nos textos que ele mais tinha liberdade, como no Shimbun. Até os personagens se repetem: no “O Vampiro da Cinemateca” tem o João Miraluar, eu acho, no “Nem Verdade nem Mentira” tem a Ligéia de Andrade...
Z- Como era essa parceria, amizade dele com o Carlão ? Começou lá atrás, certo ? JT- Eu não sei exatamente em que momento foi que aconteceu, mas foi no momento em que o Carlão estava começando a carreira. Creio que na São Luiz, que foi quando se formou parte desse grupo que daria no Cinema Marginal, de invenção. Então, foi quando ele conheceu o Callegaro, o Sganzerla, Trevisan que era um pessoal novo que estava...
Z- O Candeias também ?
JT- É que o Candeias estava um pouco à parte disso, porque ele era um cara mais velho. Ele se ligou de certa maneira a esse grupo, mas de outra maneira. Esse grupo que eu estou falando é de um pessoal novo que queria fazer um cinema diferente, que andava insatisfeito com Cinema Novo.
Z- Enfim, que tinha conhecido Nouvelle Vague, Cahiers du Cinema...
JT- Então, foi mais ou menos nessa época que ele conheceu o Carlão, que foi uma amizade que ele teve pela vida inteira. O Inácio ele conheceu um pouco depois e pode-se dizer que os dois principais amigos dele foram o Carlão e o Inácio. O Carlão, com freqüência, eles trabalharam juntos no começo de carreira. O “Audácia” que o Reichenbach de certa maneira renega, que fala: “Esses filmes que eu fiz no começo são uma porcaria”. E o Jairo falava: “Ah ! Eu fiz tantas coisas no “Audácia”, que se o Carlão não quiser a autoria do filme, eu pego pra mim. Eu fiz roteiro, foto de cena e apareço como ator. Se ele quiser passar a autoria do filme pra mim, eu aceito”. Ele sempre trabalhou com o Carlão e de certa maneira sempre esteve perto, mesmo em filmes que ele não participou a gente vê ele fazendo matéria como “A Ilha dos Prazeres Proibidos”, fazendo matéria sobre o “Sede de Amar”. Mesmo que eles não estivessem trabalhando juntos, sempre teve aquela coisa de troca de idéias de amigos, cinema como aquela coisa de você sempre trocar idéias com os amigos. Ele sempre respeitou muito a opinião do Carlão e vice-versa. As idéias de um sempre tiveram muito ligadas às idéias do outro, sempre teve uma troca muito entre os dois.
Z- Outra coisa interessante do Jairo, foi ele ter sido assessor da Embrafilme. Ele chegou a te falar algo sobre isso ?
JT- Pois é... O Jairo, alguns anos depois que ele saiu da Folha, foi assessor de imprensa da Embrafilme. Foi na gestão do Calil, se não me engano. Eu não imagino muito bem ele trabalhando num escritório duma Embrafilme, mas até onde eu saiba, não era algo totalmente burocrático. Ele tinha liberdade, por exemplo, de colocar como parte do trabalho dele o lançamento do “Cinema de Invenção”, a primeira edição, que a Embrafilme entraria como co-editora. Então, fazia parte do trabalho dele, mas acho que em grande parte o trabalho dele pra Embrafilme foi algo quase alimentar, estava precisando de um emprego e ele topou. Eu não conheço muito bem, mas as coisas que ele fazia como assessor de imprensa não eram totalmente convencionais, e por outro lado tinha a vantagem dele acompanhar de perto a produção de filmes. Ele tinha um trânsito livre pra muitas coisas, podia não ser a coisa ideal que ele queria fazer, mas era algo que não era totalmente fora de questão ou que ele desgostava completamente. Ele tinha liberdade de fazer um trabalho razoavelmente livre e ele tinha o tempo de fazer as outras coisas dele, escrever o “Cinema de Invenção”, tentar fazer algum filme, eventualmente colaborar com alguns jornais ou revistas. Mas ele saiu da Embrafilme por vontade própria. O Jairo pediu demissão, porque deve ter ficado um pouco cansado disso. Eu acho que ele ficou três anos, talvez mais tempo ou menos, e depois pediu demissão.
Z- Era quando o escritório da Embrafilme era na Boca ?
JT- Eu acho que era. Que a sucursal era perto da Boca, porque até onde eu saiba sempre foi lá. O único que eu conheço foi lá, mas talvez tenha outra. Ele estava sempre por ali, era uma coisa OK pra ele, não era grande problema.
Z- Quando a Boca se tornou centro de sexo explícito, como ele encarou isso ?
JT- Então, tem um artigo do Jairo que é muito engraçado. Só o título já é muito engraçado. Os títulos dele eram muito bons, aliás. O título dessa matéria é “Cinema Pornô: celulite demais, celulóide de menos” (rindo). Como a maioria das pessoas, ele sabia que aquilo ia levar a Boca pra um caminho que não tinha mais volta. Então, não era uma coisa que ele fosse a favor não, como a maioria das pessoas não era a favor. Algumas pessoas faziam aquilo por questão de sobrevivência, como o Mojica que vai fazer filme pornô porque não consegue fazer outro filme. E por aí vai, muita gente boa, tipo Ody Fraga e outras pessoas, vão fazer por questão de sobrevivência. Mas a minha impressão é que a maioria das pessoas tinham consciência que aquilo era um buraco sem volta, mas era o que eles podiam fazer naquele momento. E cada vez mais a Boca foi se afundando por conta disso, virando um gueto, então, esses filmes só podiam passar em cinemas pornôs e aquela coisa: a censura liberava “Império de Sentidos” e pra conseguir público os caras tinham que cada vez apelar mais. Aliás, “Império de Sentidos” chegou a fazer 4 milhões de público, algo assim, o que hoje é inimaginável. Mas aos poucos os cinemas normais não passavam mais esses filmes. O Jairo era contra esse caminho não por uma questão moral, mas é que chegou a um nível de apelação que não dava nem pra fazer alguma coisa que não fosse meramente apelativa.
Z- Desses do Jairo, tem algum texto dele que você gosta mais ?
JT- Em geral eu gosto muito dos textos do “Cinema de Invenção”. São os que mais marcaram, são a primeira coisa que eu li e talvez por ser um pouco o material que ele pesquisou mais, de ter aquela coisa de ser quase de um trabalho de arqueologia, de eu descobrir um monte de coisas que eu queria conhecer mas não tinha outros meios de ter acesso. O que mais me marcou foi o “Cinema de Invenção”, mas o próprio Shimbun tem textos maravilhosos, que me revelou um tipo de crítica experimental, coisa que a gente não está acostumado. Aqui no Brasil, em geral ou você tem uma crítica acadêmica ou você tem aquela crítica rasa do jornal. Obviamente tem um monte de críticos no meio disso, que não se enquadram nisso, mas uma coisa única, que salta aos olhos, no meio disso tudo é o que o Jairo fazia. Tem várias coisas boas no meio, mas tem coisas que só ele fazia, que eu fui vendo cada vez melhor nessa pesquisa que eu estou fazendo dos textos dele. Lendo alguma coisa sempre descubro coisas maravilhosas. Na época da Folha, ele fez entrevistas com vários diretores, volta e meia, com alguém que ia lançar um filme. O Walter Lima Júnior ia lançar “A Lira do Delírio” e ele fazia uma puta entrevista. Aliás, ele publicou duas entrevistas enormes com o Walter Lima na mesma semana. Com o Carlão, Saraceni, Khouri... Foi um trabalho maravilhoso até como documento dessa época do cinema, é um trabalho genial. Então, mesmo quando ele tinha algumas contingências que às vezes um crítico sofre, qualquer trabalho que ele fazia tinha um valor muito grande, seja de escrita seja como documento daquela produção, daquele momento que ele estava analisando. Sempre que eu leio alguma coisa do Jairo, eu sempre vejo alguma coisa interessante, mesmo naquelas notinhas. Antigamente, ele tinha uma notinhas que eram muito legais, as coisas que ele escrevia, textos mínimos que tinham pensamentos muito interessantes. Nunca tem um texto que eu ache ruim. Pode ser algo melhor ou pior, mas sempre tem algo interessante nos textos dele.
Z- Você conviveu com ele por quanto tempo ?
JT- Conviver... os últimos três anos, talvez. Não foi muito tempo, não. Até porque nos últimos anos, ele estava muito mal, difícil de conviver cada vez mais, recluso e cada vez mais difícil. Então, era uma coisa meio que natural, as pessoas se aproximavam e, eventualmente, se afastavam, porque também era desgastante conviver com ele. Ele brigou com quase todo mundo, então eventualmente as pessoas davam um tempo. Os últimos meses de vida dele, não que eu tenha me afastado completamente, mas não tive uma convivência tão intensa com ele, porque a gente tentou internar ele várias vezes, ele fugia.
Z- Não via uma iniciativa dele ?
JT- Ele até tentava num determinado momento se recuperar, mas era difícil, muito difícil. Então, é uma pena mas as pessoas tem um limite no que elas podem fazer. Faz a gente pensar se podia ter feito um pouco mais, mas tudo tem um limite. As pessoas faziam compras pra ele no supermercado e ele trocava aquilo por droga, por exemplo, então não é muito fácil. Acontece uma vez, tudo bem, duas, três, mas isso começa a acontecer toda hora e fica foda. Ele brigava com as pessoas por motivos bobos, agredia as pessoas que não era exatamente por maldade, mas era de questão dele de insatisfação pela vida e descontava às vezes nos outros. O convívio mais intenso que eu tive com ele foi por um ou dois anos, que eu freqüentava a casa dele, tal.
Z- Ia no cinema ?
JT- Às vezes a gente ia no cinema, mas ele já tinha nessa época uma dificuldade de concentração. Então, volta e meia ele não agüentava duas horas vendo o filme. Se não interessasse muito, ele saía no meio pra fumar e voltava. Então, era muito difícil pra ele e pras pessoas que gostavam e estavam ao lado dele. Ir na casa dele era uma coisa depressiva mesmo, cada vez que você ia lá via as coisas piores. Quando eu conheci ele, o Jairo ainda tinha luz, telefone, os móveis e tal. Aí eu voltava um mês depois, já não tinha telefone. Aí um mês depois não tinha luz e depois a parede toda rabiscada. Pouco depois só tinha o colchão, fechadura. Era uma coisa difícil, você tentava ajudá-lo na medida do possível, mas você via obviamente uma decadência dele que se mostrava fisicamente mesmo: ele cada vez mais magro, cada vez mais combalido mesmo. Essa recuperação, eu acho que dependia muito dele e ele não conseguiu se recuperar. Acho que as pessoas tentavam pegar ele na mão e levar até o certo ponto que elas podiam, mas chegava um momento que ele tinha que levar as coisas por conta dele mesmo. Enquanto ele estava com os amigos, ele funcionava razoavelmente bem. Aquela coisa, que ele até falava, ele era meio que Doutor Jekill e Mister Hide, tinha duas faces. E aos poucos, as coisas foram ficando cada vez piores. Não era uma coisa recente, o Inácio fala que desde que ele saiu da Folha as coisas já começaram a degringolar. Na Folha ele, bem ou mal, tinha uma rotina, um salário certo, um apartamento dele com as coisas dele, os livros, os discos. Então, ele tinha uma vida razoavelmente certa, mesmo com o lado porra louca dele, ele tinha um alguma segurança e aos poucos ele foi perdendo isso a partir do momento que saiu da Folha. Tinha o lado também psicológico de depender das pessoas e se sentir mal por conta disso, não conseguir ganhar a vida por conta própria. Então, juntava um monte de coisas: insatisfação dele com o cinema brasileiro, não ver os filmes que ele gostaria de ver, produções porcarias, sem lugar pra escrever. Juntava esse monte de coisas que cada vez foi deixando ele cada vez combalido e aos poucos ele foi ficando assim, que culminou com a morte dele.
Z- Você tem idéia de por que ele ficou tão pouco tempo na Folha ? Porque os textos dele são muito bons, ousados e ele ficou somente quatro anos.
JT- Até onde eu saiba, eu não sei de grandes detalhes, mas até onde eu saiba puxaram o tapete dele. Mas porque, que motivo... eu acho que tem um pouco aquilo que eu falei dele não ser um cara que faz muita média, etc. Ele não se preocupava de se proteger, de cuidar do lado dele. Então, talvez tenha sido muito fácil de algumas pessoas puxarem o tapete dele na Folha.
Z- Também dele não falar de alguns filmes de lançamento.
JT- Ele até falava, escrevia sobre os lançamentos. Mas tem também o fato dos jornais estarem mudando um pouco. Aquela liberdade que ele tinha já estava ficando anacrônica, ficando um pouco fácil puxar o tapete dele. Mas detalhes eu não sei como foi.
Z- Quando ele sai da Folha, o Inácio se torna o crítico titular ? Ou é o Orlando Fassoni ?
JT- O Inácio entrou só em 83, teve um intervalo de três anos aí. Eu não sei quem foi o substituto imediato dele, se teve uma pessoa que entrou no lugar dele. O Inácio entrou depois e foi uma coisa meio que por acaso. Ele não era, até então, crítico de cinema, ao menos nunca tinha pensado seriamente em ser crítico, ele era montador e depois roteirista. Eventualmente ele tinha algumas incursões pela crítica como a Cinegrafia, tinha também acabado de escrever o livro dele sobre o Hitchcock. Então, o Inácio foi convidado pra escrever um artigo pra sair uma vez no Folhetim, aí o pessoal gostou e ele acabou escrevendo outros e ficando por lá, mais ou menos assim. Mas teve um intervalo razoavelmente grande no meio, mas o Jairo gostava de dizer que o Inácio era o sucessor dele, que ele era o cara que seguia a linha dele na Folha, ele sempre falava isso.
Z- Teve uma mostra dele no MIS em 97... Não sei se você chegou a acompanhar ?
JT- Não, não cheguei a acompanhar, mas ele chegou a fazer um vídeo dessa mostra que eu cheguei a assistir. Eu não tenho certeza, mas parece que a câmera era do Carlão, mas eu não tenho certeza. Foi uma mostra que a Guiomar Ramos organizou, uma mostra bem bacana, os filmes dele estavam em condições de ser exibidos ainda. Eu acho que ela conseguiu juntar tudo dele, fazer uma mostra bem legal e no primeiro dia dessa mostra, na abertura, ele fez um vídeo, bem aquela coisa dele de acompanhar as pessoas que iam chegando, com uma narração meio maluca. Entrou na sala e filmou o “Vampiro da Cinemateca” sendo projetado e tudo mais. Se não me engano foi a penúltima vez que os filmes dele foram exibidos. Teve depois em 2002, se não me engano, uma mostra no Centro Cultural São Paulo, que foi quando eu consegui ver a maioria das coisas dele. Eu não sei quem fez essa curadoria, mas passou o “Vampiro da Cinemateca”, “Antes Que Eu Me Esqueça”, “Horror Palace Hotel”, e outros.
Z- Esse das araras que você falou...
JT- “O Ataque das Araras”.
Z- Tem haver com uma obsessão do Carlão com araras ? Porque ele também é fã de araras.
JT- Eu não lembro muito bem desse filme, mas eu acho que não tem muito a ver. Até onde eu saiba não. Ele filmou na viagem dele pro Nordeste e pro Pará, tem haver com a região, de ter filmado as araras e tal, mas pelo que eu sei não tem nada haver com o Carlão não.
Z- A idéia dele colaborar com a Contracampo foi de quem ? Como foi isso ?
JT- Eu falei com o Ruy na época, que era o editor e que é o editor ainda. Ele gostava muito dos textos do Jairo e tive esse primeiro contato com ele nessa pauta que eu falei, e ele se interessou em conhecer a revista. Ele tinha um computador bem velho nessa época, que só servia pra escrever. De vez em quando, o Carlão imprimia as coisas que ele pedia. O Reichenbach tinha uma coluna no Terra nessa época, que ele imprimia sempre pro Jairo ler. Então, ele conheceu a Contracampo assim, se interessou, eu propus a ele pra escrever algumas coisas e tal. A primeira coisa foi um artigo sobre o Candeias, quando a gente fez uma pauta sobre o Candeias, e depois ele tinha uma coluna que entrava todo mês e ele tinha liberdade total de escrever o que ele queria, sobre o que ele queria. Não me lembro exatamente quantas edições ele chegou a colaborar, mas ele topou na hora ter um espaço mesmo a gente não tendo um pagamento pra ele, mas em todo caso ele aceitou numa boa. Pra ele foi muito bom ter um espaço, mesmo que fosse uma vez por mês um espaço pra ele escrever, de ter algum lugar que ele pudesse dizer alguma coisa que ele soubesse que fosse lido.
Z- Quanto tempo durou essa coluna dele na Contracampo ?
JT- Não sei exatamente, um ano talvez.
Z- Doze colunas talvez ?
JT- Agora não sei quantas exatamente, mas deve ter durado mais ou menos um ano. Ele escreveu textos bem legais. Tem por exemplo um sobre o “Tônica Dominante”, filme da Linda Chamie, que quando saiu todo mundo falou muito mal, e até onde eu saiba ele foi o único que defendeu com bastante energia. Que era muito bom, de invenção, falou que era um biscoito fino. Tinha coisas bem legais que ele escreveu nessa época. O texto sobre o Candeias é ótimo, tem coisas muito bacanas. Foi muito legal essa experiência do Jairo colaborar e eventualmente eu sugerir: “Jairo escreve sobre isso, sobre aquilo”. Já era uma fase que ele tava bem difícil de botar uma amarra nele, dizer pra escrever sobre um filme. Ele escrevia sobre várias coisas, muitas vezes fugia de falar sobre cinema e falava da vida dele. Mas eram coisas muito legais e que de uma certa maneira foram o testamento crítico dele.
Z- Ajudava na auto-estima dele também ?
JT- Ajudava. E foi basicamente a última coisa que ele escreveu. Então, de certa maneira vai ficar como um legado dele e tem muito valor o texto que ele escreveu. A última coisa corrente dele, que tinha alguma freqüência.
Z- Ele também não recebeu nada ?
JT- Não, como todo mundo na revista ele não recebia nada. Como todo mundo que faz crítica na nossa geração, não recebeu nada. Tinha aquela coisa, não o pessoal da revista, mas os amigos o ajudavam. Eu eventualmente o ajudava, não por ele ter colaborado com a revista, não como pagamento, mas ajudava no que eu podia na época, de fazer um supermercado, dar uma grana pra ele, chamar pra comer fora eventualmente. Mas não era um pagamento, era algo de amigo pra amigo, de alguém que está precisando e que até certo ponto você pode ajudar. Mas pagamento certo, não tinha.
Z- Como surgiu a idéia do prêmio de vocês, se chamar Jairo Ferreira ? Foi iniciativa sua ?
JT- Não, na verdade eu participei no segundo momento. Na verdade, eu nem tive uma participação muito grande nesse prêmio. Primeiro, ele surgiu como uma idéia de fazer um prêmio da dita “crítica independente”. Que talvez nem seja a melhor maneira de definir mas já como está pegando assim, que fica nessa maneira.
Z- Foi o Merten que botou esse título ?
JT- Nem sei se foi o Merten se botou... mas enfim. A idéia era fazer um prêmio nosso, do grupo, que não tinha nome. A idéia inicial não era fazer o Prêmio Jairo Ferreira, mas um prêmio que tinha que ter um nome, e ficou decidido que devia ter o nome de alguém que a gente respeitava, de alguém que tinha uma proposta de crítica parecida com a nossa. E de cara, surgiu o nome do Jairo e foi meio que uma unanimidade entre todo mundo, de cara logo pegou. Então, a idéia do prêmio não fui eu que criei, não fui eu que idealizei. Eu participei a partir do momento em que estavam decidindo o nome, e como veio a homenagem ao Jairo eu achei ótimo, perfeito. E a partir daí, começou a se fazer a produção, que foi uma coisa que o Eduardo Valente e o Cléber Eduardo que tocaram mais essa idéia, esse projeto. No momento de decidir quem ia participar disso, a idéia era chamar as pessoas que se conhecia a mais tempo, que tinham uma convivência maior. Por exemplo, o pessoal da Contracampo, eu pelo menos conheço o Ruy desde o tempo da faculdade, desde 95. A gente troca idéia há muito tempo, já tem essa coisa de conversa de bar há mais de dez anos. Mesmo outras pessoas, o pessoal da Paisà, a gente se conhece faz muito tempo. Então, a idéia era chamar esse núcleo: a Contracampo, a Paisà, a Cinequanon, a Cinética e a Teorema, que não é tão próxima da gente, mas o pessoal já conhecia de certa maneira há algum tempo. Então, eu não fui uma das pessoas que organizou nem nada, embora alguns acham que eu participei mais efetivamente por conta do blog e tal. Mas eu acho o prêmio muito importante pra marcar espaço dessa crítica, pois tem uma insatisfação nossa com essa crítica oficial, então a gente sempre se colocou um pouco de lado. Não como inimigo, nem sempre. Mas as críticas de jornal são com freqüência são muito ruins. No Rio, por exemplo, volta e meio beira o vexame. A crítica dum filme do Straub deu uma polêmica muito grande. Era um vexame o que saiu no jornal e a gente realmente bateu de frente.
Z- Mas por exemplo, o Inácio vocês admiram ?JT- Não é que crítica de jornal a gente ache tudo uma porcaria. Não é isso. Mas o Inácio é meio que um guru da gente, todo mundo respeita ele pra caramba. A gente chama de tio Inácio, porque ele dá aula no curso, então chamamos de tio brincando. Mas não é algo que crítica de jornal não presta. A gente se coloca de lado de muitas coisas, mas não é necessariamente uma posição de brigar contra a crítica de jornal como um todo. O prêmio foi importante por isso, pra ser mais uma coisa, uma realização desse grupo e marcar presença. Não que a gente não julgue importante outros prêmios ou queira fazer tábua rasa, como algumas pessoas disseram. Como outros grupos tem suas premiações, a gente também tem esse direito. Muita gente quis colocar isso como mais um sinal de briga, mas não é, é um prêmio dessa crítica. Se as pessoas gostam ou não, é direito delas mas não é uma coisa assim...

Z- Gerou uma polêmica grande, entre vamos dizer assim essa crítica mais oficial.
JT- Começou na verdade durante a Mostra, que já teve um prêmio nosso, que eu nem acompanhei muito de perto. Mas já aumentou um pouco ali e foi cada vez mais aumentando, de parte a parte. Eu pelo menos tenho uma postura de deixar pra lá, não vou discutir muito. Se não me interessa, ignoro, finjo que não existe e pronto. Outras pessoas preferem bater de frente, mas enfim é uma posição de cada um.
Z- Uma discussão, vamos dizer assim mais construtiva.
JT- Eu normalmente ignoro, mas enfim... É mais como isso, o prêmio surgiu como uma idéia de marcar presença, de colocar nossa opinião e de fazer valer ela como alguma coisa. Então, por exemplo pra gente é importante premiar o Garrel ou o Tonacci. É um filme que não vai ganhar prêmio em lugar nenhum, quando chegar em cartaz provavelmente ninguém vai ver, e pra gente é importante dizer que ele foi o melhor filme brasileiro de 2006 e ponto. Algumas pessoas colocaram que a gente meio que manipulou isso, pro Tonacci ganhar, coisa que não tem nada a ver. Na verdade, foi muito disputado a eleição de filme brasileiro, o “Céu de Suely” perdeu por muito pouco. Eu gostei dessa idéia de prêmio, espero que ele cresça bastante, continue e quem sabe ano que vem a Zingu! participe dele.
Z- Quem sabe. Fomos até chamados prum convite pro futebol, vamos organizar.
JT- Antes de ter o prêmio, teve um jogo nosso. Mas vai ter um próximo não sei quando. Eu acho que vamos fazer outro, e acho que vocês são até um pouco favoritos pela idade, porque a gente está mais velho (risos). Com quinze minutos de jogo, está todo mundo com a língua pra fora, é uma coisa meio vexaminosa.
Z- Legal. Bem, eu perguntei do prêmio não pra falar do prêmio especificamente, mas por causa do nome. Mas e o blog, como surgiu a idéia ?
JT- Então, surgiu basicamente de eu ter esse material do Jairo, tem umas três ou quatro caixas dele lá em casa. Eventualmente, eu ia lá e mexia nesse material, vou ler isso, ler aquilo... uma coisa completamente desorganizada, que já chegou pra mim sem muita ordem e que eu nunca me propus a organizar. O blog era uma maneira de organizar isso, dar um mínimo de ordem e de compartilhar o que eu tinha, não ficar só pra mim. O Jairo deixou na minha mão, sem fim específico mas eu sempre achei que podia ter algum uso melhor que não ficar só folheando isso lá em casa. Sempre que eu tenho tempo leio os textos dele, passo pro computador, uso o reconhecedor de caracteres, escaneio, faço alguma coisa. E tem muito material legal, dá pra manter o blog, ir alimentando ele por algum tempo. Tem um material que eu acho mais complicado de colocar no blog, como o roteiro do “Vampiro da Cinemateca”, que tem vinte páginas. É um material que eu adoraria de colocar, mas não tenho idéia ainda de como fazer isso. Tenho vários projetos dele de filme, outros roteiros.
Z- Tem um projeto de fazer um livro com tudo ?
JT- Em algum momento eu tenho vontade de fazer um projeto, um livro com esse material, quem sabe daqui a um, dois anos, ir organizando aos pouquinhos, juntando o que tem de mais interessante. E quem sabe, algum material que não caiba no blog e seja melhor num livro, numa coletânea de de artigos, pra juntar com o “Cinema de Invenção” e com o livro que o Alessandro Gamo organizou, e fazer uma coisa mais comprida da obra do Jairo.
Z- Juliano, pra gente fechar: o que você acha que fica do Jairo? Mesmo tantos anos depois da morte dele, a gente está aqui falando nele, surgiu o prêmio, o blog, várias iniciativas falando dele. O que você acha que fica dele depois de tanto tempo ?
JT- Engraçado o Jairo ficou muito tempo esquecido, meio abandonado mesmo, mas agora nesses últimos meses surgiu muita coisa falando dele. Tem o prêmio, o meu blog, a Ana que está fazendo essa tese sobre o Jairo. O Paulo Sacramento é uma das pessoas que cuida desse legado, tem os filmes do Jairo, e está com o projeto de telecinar os filmes dele e recuperar. Quem sabe eventualmente, lançar em DVD. Óbvio, não fazer um grande lançamento porque nem tem público pra isso, mas eventualmente ter um lançamento mais caseiro pras pessoas que se interessam terem acesso a isso. Ele tá batalhando patrocínio, alguma coisa pra telecinar esse material. Então, eu acho que isso vale não só pro Jairo, mas esse espírito da Boca do Lixo, isso que eu até estava comentando outro dia na matéria que eu escrevi pra Paisà sobre o Candeias. De certa maneira, a Boca esta revalorizada atualmente, tem muita gente nova correndo atrás da Boca, o que era aquilo e essa idéia de fazer um cinema que não era estúdio, era de rua. Era uma rua e cada casinha tinha um escritório de uma produtora, distribuidora, e as pessoas conviviam no bar Soberano, no boteco e se encontravam no Honório pra alugar equipamento. Esse negócio tem sido revalorizado atualmente, eu nem sei muito bem porque, mas vem sendo revalorizado por um pessoal jovem, e o Jairo faz parte disso. De certa maneira, alguma coisa disso está ficando pra essa nova geração. Pra mim, pessoalmente eu penso que é uma coisa muito marcante a influência do Jairo. Eu acho que até teve um momento da minha carreira como crítico que eu tentei ter a escrita dele como espelho. Não com o mesmo talento nem personalidade que ele, mas aquela coisa meio de moleque que está procurando o seu estilo de escrever, porque aquilo me pegou muito, marcou muito durante um momento. Eu devia ter uns vinte e poucos anos e de certa maneira, eu tentei meio que, não imitar, mas tentar incorporar algo dele na minha escrita. Hoje a coisa dele talvez seja um pouco mais sutil mas acho que tá lá, aquilo que ele pregava acho que está muito presente, seja por eu ter descoberto muitas coisas pelo texto dele, seja pelo jeito de escrever, essa coisa de não fazer uma crítica neutra, fazer da crítica uma espécie de autobiografia. Não que eu fale da minha vida na crítica, mas no sentido de você saber quem é aquela pessoa que escreveu aquele texto, o que ela pensa sobre o mundo e o cinema. E não fazer uma coisa neutra, aquela coisa: “Eu acho que os atores estiveram muito bem, o roteiro é bom mas a direção é ruim. O filme é médio”, isso...
Z- Dar estrelinha...
JT- É. Isso o Jairo era antítese completa dessa coisa mais comedida. Então, eu acho que ficou não só em mim mas em muita gente que faz crítica hoje em dia. Mesmo de uma maneira diferente, óbvio, o que o Jairo fazia era algo muito dele. Querer fazer igual não tem como, porque o cinema mudou, os veículos mudaram e a crítica dele de certa maneira estava muito ligada à idéia de Boca do Lixo, de um cinema que acabou. Ele escrevia dessa maneira em parte porque o Candeias estava ali na sala do lado, produzindo, dirigindo filme, então ele tinha contato direto com aquilo. Isso não existe hoje em dia, é diferente, mas algumas pessoas tentam fazer algo semelhante. Então, isso do Jairo ficou, por mais que não seja a crítica predominante que mantenha esse espírito, mas é uma parte da crítica que faz isso e por mais que algumas pessoas tentem não dar valor, essa crítica tem valor. Enfim, de alguma maneira ficou algo desse espírito do Jairo, da Boca do Lixo em oposição a esse cinema e essa crítica mais oficial, essa tentativa industrial de se fazer cinema que nunca dá certo. E por outro lado, tem a oposição dessa coisa mais artesanal, mais autoral, mais um monte de adjetivos que não conseguem resumir algo maior que de alguma maneira está aqui. Felizmente, alguma coisa disso ficou seja na Contracampo, seja na Paisà, Cinequanon ou na Zingu!, alguma coisa se mantém. Cada veículo tem o seu jeito de incorporar isso, mas eu acho que nenhum é melhor que o outro, cada um tem a sua limitação. Paisà tem a limitação de espaço, de grana porque é papel e tem que eventualmente dar espaço a coisas mais comerciais, porque tem que vender pra se pagar. A Zingu! pode esculhambar e falar de qualquer coisa, porque ninguém põe dinheiro lá, a Contracampo também. Se dez pessoas ou dez mil vão ler, a preocupação não é essa. Cada um tem seu espaço, cada um tem o seu valor e a sua maneira de fazer crítica que é muito legal. E é muito legal ter uma geração, um pessoal grande que faz uma crítica meio que à margem dos veículos principais, mas uma crítica muito vigorosa, muito interessante. Você pode não gostar disso ou daquilo, gostar mais da crítica de um cara que de outro, de um veículo ou de outro, mas eu acho impressionante o fato de ter um grupo tão grande hoje em dia, que se faz crítica gratuitamente. Porque em geral a gente não ganha dinheiro com isso, ganha com outras coisas, quando ganha. Mas enfim, eu acho muito legal o fato de ter um grupo tão grande que faz crítica porque gosta, por prazer. E isso é uma coisa do Jairo. Não que ele tenha inventado isso, mas ele escreveu cinco ou seis anos no Shimbun sem ganhar um tostão furado, e era um jornal que vendia em banca, mas os caras não deviam ter dinheiro pra pagar pra ele.
Z- Era a única parte escrita em português do jornal ?
JT- Acho que sim. Quando eu vejo o Shimbun, com aqueles japoneses lendo, normalmente no metrô, eu nunca vi nada em português, então eu acredito que sim. O Jairo escrevia sem ganhar um tostão furado, pra divulgar aquela produção, e tinha outra coisa, que era de colocar o jornal debaixo do braço e distribuir pros amigos a coluna dele, que saía as quintas-feiras. Só por isso. Ele ganhava dinheiro com outras coisas, tirando fotos de cena ou com cineclube, sei lá como ele se virava. E esse espírito está até hoje, de alguma maneira de fazer crítica por gosto pessoal, prazer e por aí vai.



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