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Dossiê Jairo Ferreira

GODARD NUNCA PASSOU FOME?

Por Jairo Ferreira
Transcrição e seleção: Matheus Trunk

Jean-Luc Godard não reduz coisa nenhuma as pessoas ou personagens de seus filmes a meros objetos. Quem faz é a estrutura consumista da sociedade ocidental. O cinema hoje é um grande supermercado. Dir-se-ia que Tóquio é mais humana que Nova Iorque: a poluição é a mesma, típica das grandes concentrações urbanas, mas Elsaku Sato (premiê japonês) decretou o Dia do Passeio e renovadores de ar em cada esquina, enquanto Nixon não dorme pensando na Guerra e a população sente a ameaça de morte. É uma civilização se autodestruindo, um suicídio sociológico. A industrialização da morte. Godard em si não teria nada com isso. O problema é que a estrutura de seu cinema é totalizante, de uma abrangência labiríntica. Por isso em Week End há inúmeras panorâmicas de 360 graus, a visão aberta, o olhar dos atores em todas as gerações.

O filme em questão é Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Sobre Ela (Cine Bretagne). Um dos filmes mais chatos do diretor mais chato do cinema. Márcio Souza esculhambando o Godard: “Pensando bem, o problema do Godard é que ele não tem senso de humor”. Exato. Não adianta ter aquele QI, embora numa certa dose, seu grande mérito tenha sido a invenção do antiespetáculo cinematográfico ou a objetividade total.

Um personagem do filme: “Em cinema não se pode falar em franqueza”. Metacinema de maior impacto foi Toby Dimmit, de Fellini, que esta semana volta a impressionar os provincianos brasileiros com Satyricon. Metalinguagem é a consciência do beco sem saída, e o vigarista Polansky levou a melhor com Cul de Sac. Não há análise a se fazer de Duas ou Três Coisas, que já é uma auto-análise, a metalinguagem, e muito menos crítica a se fazer de uma autocrítica. Esse jogo de espelhos tão ao gosto de Décio Pignatari é, de fato, uma brincadeira ou exercício intelectual irritante demais para quem está passando fome.

Abaixo Godard ! Na França esse Bauru com presunto de Esquadrão, que pão americano não alimenta. Agora, se MacLuhan é um falsário, Godard também o é. Ela é uma região parisiense, com viadutos que o Maluf de lá faz e, com todas as personagens femininas do cineasta, tem que se prostituir para reforçar o orçamento pequeno-burguês. Dez vezes ou mais aparece no filme a cartela IDÉIAS, prova da inteligência do diretor, não raro chamado de maior revolucionário do cinema moderno com idéias avançadas ainda preso a um desgraçado cartesiano que é quase típico da França. É o mesmo problema do Nieztsche, que dando seu passo a frente caiu numa nova formulação do bem e do mal, aliás, superado pelo grande filme que é Meu Ódio Será Tua Herança. Pierrot Le Fou era libertário porque se inspirava em Rimbaud, e Week End idem porque volta a Lautreamont.

De fato, Godard, os limites de nosso mundo são os da nossa linguagem.

*Publicado originalmente no “São Paulo Shinbun” em 06 de agosto de 1970



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