Dossiê Jairo Ferreira
Mão Negra contra a Máfia de Branco
Por Jairo Ferreira
Seleção e transcrição: Juliano Tosi, especialmente para a Zingu!
A direita é uma fúria criativa, um vulcão em atividade: além de ser extremamente eficiente, atua sempre com seus cinco profetas alados, verdadeira obra dos deuses. Já a esquerda, quando sofre um golpe, só sabe sobrecarregar a direita com seus serviços, dando-lhe oportunidade de brilhar ainda mais. A recíproca, porém, não é verdadeira: quando um golpe atinge a direita, o que é mais freqüente do que parece, a esquerda fica toda ouriçada e, matreiramente, prepara-se para ficar numa boa, aprendendo as lições e inclusive não escondendo uma grande admiração pela direita.
Ao contrário do que parece, não é preciso entender de filosofia zen-budista, lingüística sausurreana ou simplesmente ortopedia para perceber que não estou falando de política. Estou falando da minha querida mãozinha direita, que sofreu um infame acidente automobilístico há quase um mês numa dessas áridas madruguetas desta megalópole que não amo, para não dizer que odeio a cidade onde nasci há mais de 30 anos.
A propósito de São Paulo, quero reafirmar aqui uma impressão bem nítida que tive há um ano atrás, quando voltava de uma cobertura jornalística em Salvador, essa terra do sol: da janela do avião, a cidade estava altamente (ou baixamente?) sinistra, toda envolvida por uma tenebrosa nuvem cinza-escuro que só faltava ser mesmo formada por um gás letal de efeito instantâneo, embora não me refresque muito saber que a morte por poluição seja de efeito retardado. Aqueles edifícios quadradinhos, alguns com lápides modernosas, aglomeravam-se lá embaixo e não pareciam apenas metáforas de túmulos: em terra firme, eu estava acostumado a ter a mesma visão diariamente – a Necrópole São Paulo a partir do cruzamento das ruas Inácio Pereira da Rocha com Fradique Coutinho, em Pinheiros.
Nessas minhas férias forçadas, tentei discutir cinema, meu prato diário aqui na Folha, mas não deu. Respiro cinema por todos os poros do corpo. E imagens de cinema me vêm à tona até mesmo numa tentativa de crônica descontraída a partir da minha prosaica, porém adorada, mão direita, a magistral, a que dá aulas à esquerda. O melhor filme brasileiro sobre aquela imagem sinistra de São Paulo chama-se "Orgia", foi realizado por João Silvério Trevisan e está proibido pela Censura há nele anos. Nas cenas finais, um grupo de andarilhos que estão redescobrindo o Brasil vislumbram São Paulo lá longe, num plano geral filmado nos altos do Jardim São Bento. Em seguida há um corte deflagrador para as ladeiras de um cemitério e entra uma locução entre o sarcasmo e a tragédia, em tupi, sobre as delicias da civilização da sífilis (ou cifílização), enquanto os andarilhos improvisam uma dança ritualística entre os túmulos. O filme é uma barra. Paulo Emílio Salles Gomes foi um de seus grandes admiradores, evocando mesmo Oswald de Andrade para chegar à João Silvério Trevisan, o que emocionou este jovem cineasta ate às lágrimas.
Nos primeiros dias em que fiquei com a mão na tipóia, estava achando que só os livros poderiam me salvar nesses trinta dias de gesso desde a ponta dos dedos até quase ao cotovelo. Aproveitei até para mandar a maquina de escrever caseira à manutenção. Ela voltou logo e bem mais macia. Logo joguei os livros de lado e comecei a catar milho com a mão esquerda. Me pareceu o maior grilo bater devagarinho, pois costumo pensar rápido e, quando à duas mãos, dou o recado em três tempos. Agora, depois de um mês nesta catação de milho, já estou mais eficiente: a esquerda assimilou realmente as lições da direita (continuo falando de mão, claro).
O importante é que consegui escapar deste acidente sem traumas. Estou até valorizando mais o dito popular (no trânsito quem não bate é batido). Quando meu irmão viu o estado em que a minha fusqueta ficou, com a lateral toda amarrotada, pensou que o acidente tivesse me arrebentado, mas eis que eu apareço apenas com a mão enfaixada, depois de dar uma gorjeta obrigatória ao enfermeiro de plantão no Pronto Socorro. Não houve nem discussão no local do acidente, pois eu estava na preferencial e havia uma enorme placa de "pare" do lado do indivíduo que me abalroou com um carro bem mais potente do que o meu. Perdi o dia correndo atrás de viatura policial pra fazer a ocorrência, preencher B.O. na delegacia do bairro, esperar no IML para tirar radiografia da mão. Depois fui a uma sociedade médica dessas que prestam serviço ao comércio e, finalmente, fui encaminhado a uma clínica especializada em ortopedia, onde fiquei sabendo que tinha fraturado os segundo e terceiro metacarpianos. O médico me afastou do serviço por trinta dias, mas nada falou sobre a minha mão esquerda, de onde concluí que poderia usá-la à vontade.
Com a mão no gesso, o indivíduo vê coisas que antes não via. Observei, por exemplo, que em cada ônibus viaja pelo menos um passageiro com gesso em algum membro. Afinal, o Brasil é o maior também em matéria de acidentes de trânsito.
A nota pitoresca ocorreu no meu segundo dia de gesso, quando percebi que não podia tirar a blusa de couro que vestia. O enfermeiro mandou que eu arregaçasse a manga e engessou o braço. Como eu estava perturbado emocionalmente, dormi de roupa e tudo e só dei conta do fato no dia seguinte. Voltei à clínica e um médico que mais parecia um açougueiro forçou o meu polegar avariado para tentar tirar a blusa sem quebrar o gesso. Conseguiu, mas eu sei a dor que passei. Só me conformei quando li no jornal o caso de um rapaz que teve que amputar um braço e agora está processando os "responsáveis", alegando que a gangrena foi causada por descuido médico.
Esse caso me serviu de alerta. Afinal, quem tem calo é que sabe onde o sapato aperta - e quem gosta de mim, em última análise sou eu. Um belo dia comecei a sentir um mau cheiro vindo da mão engessada e chamei meu irmão imediatamente para me tirar o gesso, cinco dias antes do prazo determinado pelo médico. O gesso estava muito apertado, nem sequer me lavaram as mãos antes, não colocaram nenhum algodão ou coisa que valha entre os dedos e as juntas ficaram grudadas em carne viva. Eu estava desencarnando e não sabia. Não voltei ao médico, pois não costumo dar satisfação a açougueiros. Qualquer pessoa sabe que banhos de em quente são receitados para membros recém-saídos do gesso.
Voltando à redação, continuei catando milho com a esquerda, enquanto a convalescente ficava apenas mexendo os dedos, mas sem tocar em nada, porque doía lá dentro. Como o tempo esfriou, fiquei desfavorecido e para manter a mão quente usei uma luva negra durante uma semana. Os colegas logo me apelidaram de Mão Negra. Começamos então a bolar o roteiro de um filme: "Mão Negra Contra a Máfia de Branco", primeira produção da Súcia Filmes. Começa com um depoimento meu denunciando a insensibilidade desses médicos, intercalando cenas filmadas num açougue, e termina com uma piada de humor negro dublada pela Mão Negra: é aquela do trabalhado que não conseguia parar de rir depois que teve amputada uma das pernas. Ele olhava – babando de rir – para a perna que restou, dizendo ao médico que tinha havido engano: em vez de amputar a perna ruim, cortaram-lhe a boa...
Mão Negra contra a Máfia de Branco
Por Jairo Ferreira
Seleção e transcrição: Juliano Tosi, especialmente para a Zingu!
A direita é uma fúria criativa, um vulcão em atividade: além de ser extremamente eficiente, atua sempre com seus cinco profetas alados, verdadeira obra dos deuses. Já a esquerda, quando sofre um golpe, só sabe sobrecarregar a direita com seus serviços, dando-lhe oportunidade de brilhar ainda mais. A recíproca, porém, não é verdadeira: quando um golpe atinge a direita, o que é mais freqüente do que parece, a esquerda fica toda ouriçada e, matreiramente, prepara-se para ficar numa boa, aprendendo as lições e inclusive não escondendo uma grande admiração pela direita.
Ao contrário do que parece, não é preciso entender de filosofia zen-budista, lingüística sausurreana ou simplesmente ortopedia para perceber que não estou falando de política. Estou falando da minha querida mãozinha direita, que sofreu um infame acidente automobilístico há quase um mês numa dessas áridas madruguetas desta megalópole que não amo, para não dizer que odeio a cidade onde nasci há mais de 30 anos.
A propósito de São Paulo, quero reafirmar aqui uma impressão bem nítida que tive há um ano atrás, quando voltava de uma cobertura jornalística em Salvador, essa terra do sol: da janela do avião, a cidade estava altamente (ou baixamente?) sinistra, toda envolvida por uma tenebrosa nuvem cinza-escuro que só faltava ser mesmo formada por um gás letal de efeito instantâneo, embora não me refresque muito saber que a morte por poluição seja de efeito retardado. Aqueles edifícios quadradinhos, alguns com lápides modernosas, aglomeravam-se lá embaixo e não pareciam apenas metáforas de túmulos: em terra firme, eu estava acostumado a ter a mesma visão diariamente – a Necrópole São Paulo a partir do cruzamento das ruas Inácio Pereira da Rocha com Fradique Coutinho, em Pinheiros.
Nessas minhas férias forçadas, tentei discutir cinema, meu prato diário aqui na Folha, mas não deu. Respiro cinema por todos os poros do corpo. E imagens de cinema me vêm à tona até mesmo numa tentativa de crônica descontraída a partir da minha prosaica, porém adorada, mão direita, a magistral, a que dá aulas à esquerda. O melhor filme brasileiro sobre aquela imagem sinistra de São Paulo chama-se "Orgia", foi realizado por João Silvério Trevisan e está proibido pela Censura há nele anos. Nas cenas finais, um grupo de andarilhos que estão redescobrindo o Brasil vislumbram São Paulo lá longe, num plano geral filmado nos altos do Jardim São Bento. Em seguida há um corte deflagrador para as ladeiras de um cemitério e entra uma locução entre o sarcasmo e a tragédia, em tupi, sobre as delicias da civilização da sífilis (ou cifílização), enquanto os andarilhos improvisam uma dança ritualística entre os túmulos. O filme é uma barra. Paulo Emílio Salles Gomes foi um de seus grandes admiradores, evocando mesmo Oswald de Andrade para chegar à João Silvério Trevisan, o que emocionou este jovem cineasta ate às lágrimas.
Nos primeiros dias em que fiquei com a mão na tipóia, estava achando que só os livros poderiam me salvar nesses trinta dias de gesso desde a ponta dos dedos até quase ao cotovelo. Aproveitei até para mandar a maquina de escrever caseira à manutenção. Ela voltou logo e bem mais macia. Logo joguei os livros de lado e comecei a catar milho com a mão esquerda. Me pareceu o maior grilo bater devagarinho, pois costumo pensar rápido e, quando à duas mãos, dou o recado em três tempos. Agora, depois de um mês nesta catação de milho, já estou mais eficiente: a esquerda assimilou realmente as lições da direita (continuo falando de mão, claro).
O importante é que consegui escapar deste acidente sem traumas. Estou até valorizando mais o dito popular (no trânsito quem não bate é batido). Quando meu irmão viu o estado em que a minha fusqueta ficou, com a lateral toda amarrotada, pensou que o acidente tivesse me arrebentado, mas eis que eu apareço apenas com a mão enfaixada, depois de dar uma gorjeta obrigatória ao enfermeiro de plantão no Pronto Socorro. Não houve nem discussão no local do acidente, pois eu estava na preferencial e havia uma enorme placa de "pare" do lado do indivíduo que me abalroou com um carro bem mais potente do que o meu. Perdi o dia correndo atrás de viatura policial pra fazer a ocorrência, preencher B.O. na delegacia do bairro, esperar no IML para tirar radiografia da mão. Depois fui a uma sociedade médica dessas que prestam serviço ao comércio e, finalmente, fui encaminhado a uma clínica especializada em ortopedia, onde fiquei sabendo que tinha fraturado os segundo e terceiro metacarpianos. O médico me afastou do serviço por trinta dias, mas nada falou sobre a minha mão esquerda, de onde concluí que poderia usá-la à vontade.
Com a mão no gesso, o indivíduo vê coisas que antes não via. Observei, por exemplo, que em cada ônibus viaja pelo menos um passageiro com gesso em algum membro. Afinal, o Brasil é o maior também em matéria de acidentes de trânsito.
A nota pitoresca ocorreu no meu segundo dia de gesso, quando percebi que não podia tirar a blusa de couro que vestia. O enfermeiro mandou que eu arregaçasse a manga e engessou o braço. Como eu estava perturbado emocionalmente, dormi de roupa e tudo e só dei conta do fato no dia seguinte. Voltei à clínica e um médico que mais parecia um açougueiro forçou o meu polegar avariado para tentar tirar a blusa sem quebrar o gesso. Conseguiu, mas eu sei a dor que passei. Só me conformei quando li no jornal o caso de um rapaz que teve que amputar um braço e agora está processando os "responsáveis", alegando que a gangrena foi causada por descuido médico.
Esse caso me serviu de alerta. Afinal, quem tem calo é que sabe onde o sapato aperta - e quem gosta de mim, em última análise sou eu. Um belo dia comecei a sentir um mau cheiro vindo da mão engessada e chamei meu irmão imediatamente para me tirar o gesso, cinco dias antes do prazo determinado pelo médico. O gesso estava muito apertado, nem sequer me lavaram as mãos antes, não colocaram nenhum algodão ou coisa que valha entre os dedos e as juntas ficaram grudadas em carne viva. Eu estava desencarnando e não sabia. Não voltei ao médico, pois não costumo dar satisfação a açougueiros. Qualquer pessoa sabe que banhos de em quente são receitados para membros recém-saídos do gesso.
Voltando à redação, continuei catando milho com a esquerda, enquanto a convalescente ficava apenas mexendo os dedos, mas sem tocar em nada, porque doía lá dentro. Como o tempo esfriou, fiquei desfavorecido e para manter a mão quente usei uma luva negra durante uma semana. Os colegas logo me apelidaram de Mão Negra. Começamos então a bolar o roteiro de um filme: "Mão Negra Contra a Máfia de Branco", primeira produção da Súcia Filmes. Começa com um depoimento meu denunciando a insensibilidade desses médicos, intercalando cenas filmadas num açougue, e termina com uma piada de humor negro dublada pela Mão Negra: é aquela do trabalhado que não conseguia parar de rir depois que teve amputada uma das pernas. Ele olhava – babando de rir – para a perna que restou, dizendo ao médico que tinha havido engano: em vez de amputar a perna ruim, cortaram-lhe a boa...
*Publicado originalmente na “Folha de S. Paulo” em 19 de julho de 1978