Dossiê Jairo Ferreira
Vôo entre galáxias
Por Jairo Ferreira
Transcrição e seleção: Juliano Tosi, especialmente para a Zingu!
Vôo entre galáxias
Por Jairo Ferreira
Transcrição e seleção: Juliano Tosi, especialmente para a Zingu!
"O cinema é sobrenatural por essência... Vejo o que não é, e eu o vejo, este irreal, especificamente''
Jean Epstein
Criativamente, não é difícil discernir duas vertentes na obra poética de Walter Hugo Khouri: em seus filmes standard, as preocupações nem sempre letárgicas em torno da condição humana – sintoma existencial (predomínio do conflito sexo/amor); nos filmes alternativos, as preocupações talvez cosmogônicas ao redor da mesma condição terráquea – sintonia experimental e/ou visionária (predomínio de sugestões avançadas, liberação astral, cinema da mente livre).
Identificação de um filme criativo: Amor Voraz surge desde logo como um dos pontos luminosos na recente trajetória de Khouri, mas para analisá-lo à altura é necessário fazer um bom travelling ou panorâmica de 360 graus ao longo de seus 34 anos de cinema.
As novas gerações de cinéfilos não conhecem O Gigante de Pedra (1951-53), que Khouri realizou aos 21 anos, mas aqui basta lembrar que seu título influenciou Júlio Bressane (O Monstro Caraíba, O Gigante da América). A situação básica dos personagens de Amor Voraz tem por sua vez algumas semelhanças com O Anjo Nasceu (1969): a diferença é que o anjo de Bressane invade uma casa de mulheres vorazes para violentar e matar, enquanto o mutante de Khouri fica com medo das mulheres ("Ele não fará mal nenhum a nós: nós é que podemos fazer mal a ele'', diz Ana/Vera Fischer).
O Estranho Encontro (1958) não está exatamente na linha alternativa de Khouri, mas há nele um elemento de horror: a perna mecânica de Luigi Picchi. E da mesma forma, o consultório dentário de Prisioneiro do Sexo (1980) tem uma cadeira em que o algoz executa sensual e sadicamente uma paciente (Aldine Muller), como se fosse um Dr. Caligari erótico, declarada homenagem de Khouri a um certo horror. O cineasta nunca seria alternativo ao ponto de exercitar o horror explícito, mas a observação serve como alerta: mesmo nos filmes de sua sintonia apenas existencial há dados da sintonia experimental (que tem no gênero horror o seu profeta) e, no caso de Amor Voraz, ver-se-á como a sintonia intergalaxial não é um delírio, mas uma realidade também de carne e osso.
Fronteiras do Inferno (1959) e Na Garganta do Diabo (1960) são títulos significantes por si só: diabo/inferno, o mal, o horror invisível ou que não transparece no lado galã de Hélio Souto, menos ainda nas deusas (Aurora Duarte, Odete Lara), e mais em Sérgio Hingst (seu lado de Peter Lorre dos trópicos). Esses dois filmes seriam pontos de intermediação na dramaturgia de Khouri, então em impasse como o próprio cinema da época: fim do ciclo Vera Cruz, primórdios do Cinema Novo.
A linha existencial começa a amadurecer com A Ilha (1963) e logra sua primeira obra-prima com Noite Vazia (1964), apesar de todas as restrições de alguns observadores radicais: Khouri se revelava um mestre na direção de atrizes, os primeiros planos de Odete Lara e Norma Bengell ficaram nas antologias, mas essa é a dramaturgia da petrificação, o esvaziamento puro e simples da emoção do olhar. E seria isso mesmo que Khouri iria transfigurar em sua obra-prima alternativa, As Filhas do Fogo (1978), onde a letargia das personagens funciona criticamente como chave multipessoal/plurissubjetiva: as belas panteras (Paola Morra e Marisa Malbouisson) que passeiam por um Brasil misterioso (admirável aproveitamento plástico de uma estranha vegetação da cidade de Gramado) talvez fossem reencarnações, gélidos fantasmas sensuais ao gosto de Sheridan Le Eanu e por isso alguém (a personagem vivida magnificamente por Karin Rodrigues) vivia gravando vozes de pessoas que já morreram.
Khouri continua intimista em As Cariocas (1966), mas causa novo impacto alternativo com o inquietante O Corpo Ardente (1966), cinema da animalidade na alma. Seu tributo à contestação seria As Amorosas (1968), onde Anecy Rocha consequentemente esfria a anatematização. Sucedem-se três filmes standard: Palácio dos Anjos (1970), As Deusas (1972) e O Ultimo Êxtase (1973), talvez três passos atrás e um adiante, o novo alternativo O Anjo da Noite (1974), mas a sintonia existencial vive em crise e gera impasses como O Desejo (1976) e Paixão e Sombras (1977). A superação dessa fase se dá com um mergulho nas profundezas do abismo: As Filhas do Fogo (1978), irmão de universo dos mundos paralelos ou não de Amor Voraz, valendo transcrever algumas declarações esclarecedoras publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo (1979):
"O meu fascínio pelo clima fantástico, pelo irreal, pelo estranho e pelo insólito vem desde as minhas leituras de infância e continuou pela adolescência e pela idade adulta, ali já abrangendo todos os domínios da arte, literatura, artes plásticas em geral e, naturalmente, cinema". (...)
"O fantástico e o sobrenatural passaram a ser encarados sob novas formas, as pesquisas ampliaram-se, gente considerada séria passou a se interessar por esses assuntos, mas a Poesia essencial, a magia e frisson que envolve todos esses fenômenos continuaram prevalecer sobre tudo".
Em Amor Voraz, uma jovem sensitiva e de mente livre, Ana (Vera Fischer desde já como a nossa Greta Garbo), enfrenta o ceticismo de sua governanta, Silvia (Márcia Rodrigues) que grava o seu depoimento (e agora não se trata mais de 'vozes do além') fundamental sobre o mutante (Marcelo Picchi em extraordinária interpretação) que pinta num misterioso casarão à beira de uma represa envolvida por densa vegetação poética:
"Ele veio como se fosse o astronauta, arriscando a própria vida. Sem saber como vai ser sua volta. O planeta dele teve que ser evacuado, por estar no fim. Vai se congelar definitivamente tornando-se inabitável dentro de algumas centenas de anos... acabando... gélido... angustiado. Há milhares de anos que eles estão tentando sair de lá. Ele não é o único que está aqui – e não é só na Terra que eles estão tentando. Eles estão procurando pontos vivos, em outros sistemas planetários, para salvar quem for possível. Mas eles tentam isso por meios diferentes do que a gente pensa, ouve falar ou vê na televisão: naves espaciais, discos... essas bobagens. Eles utilizam a própria luz. E alguns já estiveram na terra antes de qualquer civilização. Nós estávamos começando e eles já estavam acabando. Eles só podem sair com suas mentes, deixando os corpos lá... e sobrevivendo em novos corpos. Já enviaram muitos, mas poucos conseguiram sobreviver. Só alguns voltaram com os dados que interessam... para começar um dia o abandono total. Mesmo nesse instante, milhares deles estão germinando nas águas de muitos locais da Terra... Eles ficam anos viajando através da luz, inconscientes. E depois um dia nascem de novo dentro da água em algum lugar, sem saber o que vão encontrar em corpos novos e imperfeitos. Eles precisam ir todos os dias ao mesmo lugar, à mesma hora, para poder receber energia e instruções – e enviar informações. Mas eles viveram há milênios em angústia e desespero. Eles falam muito nisso. Não conseguem mais suportar o peso de viver, essa angústia permanente. Mas mesmo assim eles não querem acabar: querem continuar em algum outro lugar, começar tudo de novo...''.
Após esse verdadeiro manifesto poético de sintonia intergalaxial, a terráquea Silvia comenta com um quê de inveja:
"E você pode me explicar por que eles escolheram logo um planeta de merda como a Terra pra começar de novo? Em matéria de angústia, ninguém vai ganhar da gente. Pelo menos de mim não.'' Ao que Ana dá a frase final da seqüência:
"Pelo jeito, a angústia não tem limites nem medida... Pelo menos ninguém quer acabar. A mente quer continuar."
Tentando e conseguindo se comunicar com o mutante que não fala, não come, não vê televisão, mas faz amor cosmicamente, a personagem de Vera Fischer se apaixona e declara:
"Quanto tempo ficou desintegrado no espaço... Quando você chegar lá, eu já vou estar morta há muitos anos. Se você me deixar aqui eu nunca mais vou te ver. E vou saber que você existe. E está perdido na luz. Eu passei a vida esperando. E agora eu sei que chegou o que eu sempre desejava. Você é Deus que veio ao meu encontro. O meu Deus que chegou."
Captando mentalmente as mensagens do homem que veio através da luz, Ana anota num papel o seu pedido de execução de uma fórmula química. Dirige-se a um laboratório especializado onde fica sabendo que seu pedido é muito avançado para o atual estágio científico terráqueo: "Tem coisas aqui que só se conhece teoricamente. Não se poderia achar, mas eu quero saber quem fez essa fórmula", é o que ouve da laboratorista. Ana começa a se desesperar e volta ao mutante. "Você precisa pedir uma nova fórmula para eles, hoje. Pede urna coisa mais simples. É impossível fazer aquela fórmula, Você está sofrendo, não é? Impossível fazer alguma coisa. Não posso te ver assim."
O que o mutante teria pedido à jovem sensitiva com a condição sine qua non para continuar na Terra? Eis a metafísica da sintonia intergalaxial. E, no entanto, para o avançado ser da luz talvez fosse algo muito simples.
Filme de science-fiction sem efeitos especiais ou visuais, Amor Voraz é um raro exemplar da inesgotável força do cinema como veículo de sugestões poéticas. Só com muito talento é possível conseguir a densidade que Khouri atinge aqui com recursos mínimos: uma casa à beira de um lago, extraindo pura magia a partir da paisagem, muito também devido à extraordinária luminosidade da fotografia de António Meliande, à música altamente funcional de Rogério Duprat, à precisa montagem de Eder Mazini.
Embora não seja um filme hermético, sendo perfeitamente acessível ao grande público, Amor Voraz não é uma dessas produções que se entende definitivamente numa única visão. Ele deixa muitas sugestões, pontos de reflexão sobre a condição terráquea: um filme da transição astral Peixes/Aquário? Homem espacial ou homem aquático? Ou apenas a poesia que nasce de uma sintonia experimental, visionária e intergalaxial?
Pessoalmente ficaria com a última interrogação e com a certeza de que a chave para a compreensão de Amor Voraz não está só nele, mas em outros filmes de Khouri, principalmente os standard: o executivo (voz e vulto de Roberto Maya numa experiência de câmera subjetiva) de Eros, o Deus do Amor (1981) se relacionava com nada menos de 19 mulheres das mais belas e não encontrava uma resposta satisfatória para as suas inquietações, como também acontecia em Amor, Estranho Amor (1982) ou Convite ao Prazer (1981). Mergulhos/viagens na infância ou no futuro: Khouri procura ampliar a área humana ou não de uma nova consciência por meio de um certo desregramento de alguns caminhos. Quando se pensava que ele já estivesse fazendo uma súmula de sua obra (com Eros), como estão fazendo Antonioni, Bergman, Godard ou Fuller, o inquieto poeta de São Paulo acena com esse alto vôo intergalaxial que é Amor Voraz, indicação de que sua obra ainda tem muito campo a explorar. Como mise en scène, As Filhas do Fogo continua sendo a sua máxima experiment in terror, ou soft-horror. Este Amor Voraz seria um marco em sua obra não por dispensar totalmente as cenas de sexo implícito das quais Khouri nunca abriu mão, embora a atividade seja em si um ato de coragem num momento em que qualquer filme criativo é uma ilha rodeada de filmes hard-core por todos os lados. Haverá novos pontos tão luminosos na seqüência de sua obra em processo? Certamente é o que gostaríamos de esperar entusiasticamente, mas sem angústia...
*Publicado originalmente na revista Filme Cultura, número 43