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O Pornógrafo

Por Filipe Chamy

O Pornógrafo
Direção: Bertrand Bonello
Le Pornographe, França, 2001.

É possível existir um bom filme sem identidade? A arte de qualidade pode ser feita de maneira mecânica, burocraticamente, já de olho nos anseios do mercado? É uma questão controversa, mas Jacques Laurent tem certeza que a resposta é negativa. Ex-diretor de filmes pornográficos, enfrentou a rejeição do filho quando este descobriu sua profissão; largando o ofício, os anos foram passando e o cinto se apertando, até que o homem resolve voltar à cadeira de diretor, por um motivo compreensível: dinheiro.

É esse o pano de fundo deste filme de Bertrand Bonello, em que nada importa mais que o pensamento singular e talvez equivocado de seu protagonista. Laurent acredita na pornografia como uma forma de protesto político, no que se assemelharia — ou gostaria de assemelhar-se — a um Bertolucci, por exemplo. Quando o dinheiro o obriga a voltar a um mercado sem escrúpulos, suas idéias estéticas encontram uma forte oposição. Ele se considera um artista, não um executante (como diria Truffaut), e pensa que um filme é feito de momentos e percepções, não de gratuidades. Quer dirigir uma cena de sexo com um contexto artístico — em sua ótica —, mas é golpeado pelos produtores, que, o afastando — Você está muito velho para isso —, incluem cenas explícitas de sexo anal, felação e ejaculação. Laurent, impotente, abaixa a cabeça tristemente, num desespero que não sabe extravasar. Sua carreira é um nada, sua vida a acompanha. Sua concepção de mundo já não serve mais em dias atuais; ele nem sabe usar um simples celular.

Mas será que Laurent está tão errado? Será que utilizar recursos veementemente atacados, como a pornografia, necessariamente descambará para um mau resultado? É impossível generalizar visões de mundo, e este é o grande trunfo de Laurent, ainda que não saiba se aproveitar dele. Conhece Antonioni e Bergman, sabe que a maior imoralidade reside na falta de caráter (até inconsciente), mas lhe falta aquele vigor que um artista deve possuir na hora de defender sua obra de modificações suspeitas. O grande drama de um autor é ver suas idiossincrasias misturadas na areia grossa da opinião comum, como se tivesse de fazer algo para o público se reconhecer.

Personificado por um fantasmagórico Jean-Pierre Léaud, Jacques Laurent parece deslocar-se de uma cena a outra sem nunca se ligar a nada, como um espectro flutuante no tempo. Sua época já não é mais essa. O filho, com outros interesses na vida, finalmente o perdoou, e isso não diminui sua culpa. Sua companheira é uma mulher de vida simples e visão simplória, a estreiteza de seu raciocínio incomoda e até choca o cineasta. O aspecto decadente do homem só corrobora a sensação de incoerência e desarranjo. A mensagem do filme de Bonello é precisa, mas ele conduz o espectador a uma conclusão própria. As cenas estão dispostas de uma maneira franca e não-dogmática, mas é inevitável chegar aonde o diretor queria que chegássemos. Não é possível ignorar o drama de Laurent, o caráter revolucionário de sua visão transgressora do cinema, a lucidez com que desenvolve suas teorias e ao mesmo tempo não as pode praticar, o vazio do pensamento de seu filho — típico comunista de butique —, a tristeza monótona da fabricação de filmes (não apenas pornográficos), a dificuldade de se estabelecer parâmetros na busca do rompimento dessa realidade absurdamente ridícula.

Com alguma pitada de sexo explícito (sem nunca descambar para o banal), O pornógrafo, com suas cores vibrantes ou mortas, seus enquadramentos elegantes, suas discussões e personagens verdadeiramente humanas, suas expressões psicológicas pautadas em movimentos físicos (à Bergman), é um brilhante exercício metalingüístico de Bertrand Bonello e um filme que Jacques Laurent certamente se orgulharia de ter participado.




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