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Que história espera seu fim lá embaixo?

Por Melody Westenra

Terra dos Homens, de Saint-Exupéry

Antoine de Saint-Exupéry foi o príncipe das areias e o poeta dos céus. Sob o sol dos desertos africanos ele escreveu seu primeiro livro, Correio Sul, e todos os seguintes foram inspirados pelas visões que ele tinha sobrevoando a terra dos homens. Como piloto, esteve em muitos lugares, sem criar raízes, o que o permitiu ver, de fato, a grandeza do mundo e dos homens, e fez com que aflorasse a vontade de reunir todos eles para tentar comunicar algo.

“É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura”.

Com isso se inicia o livro mais humano de Exupéry, em que episodicamente ele narra seu ofício desde 1926, quando começou a trabalhar como piloto para a Société Latécoère, atual Air France, transportando o correio entre Toulouse, na França, e Dacar, na África.

Exupéry monta em Terra dos Homens todas as reflexões que seriam posteriormente retomadas de forma mais lúdica em O Pequeno Príncipe, desde a geografia infinita de um planeta inexplorado à descoberta de um homem por ele mesmo.

O piloto de O Pequeno Príncipe é o mesmo de Terra Dos Homens - alguém que preza o valor da solidão de sua profissão como necessário para que o aprendizado quando na companhia de outros e na contemplação do mundo externa seja total e absolutamente humano. E o principezinho se torna todo o mundo e suas possibilidades, toda a humanidade e cada pessoa em si mesma, cada pequena e grandiosa experiência humana frente a um universo de possíveis acontecimentos.

E Terra dos Homens é nada mais do que isso: a totalidade dos homens inserida nas possibilidades de cada um de nós, escrita com a sensibilidade de alguém que não só participa de tudo isso, mas também tem a chance de observar a tudo do alto, do isolamento – premeditado ou não –, da distância.

E o isolamento é um fator não apenas necessário, mas quase inerente ao narrador. A solidão tem papel fundamental na descoberta dos homens, porque é ela que cria uma barreira suficientemente eficaz contra sentimentalismos supérfluos que distorcem o verdadeiro carinho que podemos ter pelas pessoas, independente do papel que elas possuem em nossa vida. É com esse distanciamento que Exupéry consegue, de fato, enxergar os laços que envolvem vidas diferentes e espetáculos que “só têm sentido através de uma cultura, de uma civilização, de um ofício”.

Ao mesmo tempo, a atmosfera do livro é de contato real entre as pessoas, um contato que não se basta nas conversas rotineiras e nas demonstrações efêmeras de carinho, mas está presente em todo pequeno gesto, mesmo os mais imperceptíveis, os mais comuns, os mais desatenciosos. Como se, para se conectar com alguém, não fosse preciso grandes esforços ou tentativas, mas apenas prestar atenção no molde humano por detrás da fantasia que nós vestimos.

Porque o desamparo na noção de que todas as pessoas do mundo estão totalmente separadas e sozinhas é instransponível, mas o desejo de se conectar de maneira absoluta é inextinguível.


Naquela tarde uma voz lenta insistia pela última vez na ordem:
- É muito bonito navegar pela bússola, na Espanha, sobre os mares de nuvens; é muito elegante, mas...
E mais lentamente ainda:
-... mas não se esqueça: abaixo dos mares de nuvens... é a eternidade.
Assim, bruscamente, aquele mundo tão calmo, tão unido, tão simples que se descobre quando se emerge das nuvens, tomava para mim um valor desconhecido. Aquela doçura transformava-se numa armadilha. Eu imaginava a enorme armadilha branca preparada ali, sob meus pés. Abaixo das nuvens não reinava, como se poderia crer, nem a agitação dos homens, nem o tumulto, nem a viva trepidação das cidades, e sim um silêncio ainda mais absoluto, uma paz ainda mais definitiva.




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