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Saló ou Os 120 Dias de Sodoma

Por Filipe Chamy

Saló ou Os 120 dias de Sodoma
Direção: Pier Paolo Pasolini
Salò o le 120 giornate di Sodoma, Itália, 1975.

Os detratores deste famoso filme de Pasolini costumam criticá-lo por seu pretenso pudor, querendo dizer que o filme se pretende algo que não o é: chocante, corrosivo, político. O que essas pessoas não gostam de entender é que as intenções do cineasta nada têm a ver com os desejos do público — se coincidiram, foi por acaso. Não adianta criticar uma obra por ela não ter isso ou por ter aquilo em excesso. Porque esse é o produto final apresentado pelo diretor e demais realizadores do filme, e é assim que ele deve ser analisado, como obra terminada e que tem na sua primeira exibição o verdadeiro marco zero. Dito isso, prossigamos.

Os “nossos amigos verossímeis” (como bem definiu Hitchcock) detestariam um filme em que a história praticamente inexiste, pelo menos em sua forma pura: estamos diante de uma alegoria, espécie de fábula que se estende ao longo de quase duas horas. Quatro autoridades reúnem-se na província italiana de Saló, durante a ocupação nazista em 1944. Autoridades graúdas, entre as quais um bispo e o presidente. Elas ordenam a captura de oito moças e oito rapazes e tem-se início a um festival de incrível regressão humana, livremente adaptado por Pasolini da obra do marquês de Sade. Dividido em ciclos — das taras, do sangue e da merda —, é uma viagem lisérgica com toques políticos em que o surreal impera e o poder desnuda-se na intimidade putrefata de um local fechado e secreto. O diretor falava que sua película era um ataque violento ao nazi-fascismo, e talvez não seja coincidência ele ter morrido assassinado pouco após concluir a fita.

As imagens grotescas e sem concessões causam antes choque que nojo, pois a maior podridão aqui é a da alma, clausura em que as perversões afloram se postas à prova. Uma das personagens conta com horripilante orgulho suas memórias sexuais infestadas de sujeira e baixeza; um banquete de fezes é servido compulsoriamente a uma escrava sexual — e todos os poderosos acabam comendo-o com muito gosto; coleiras são o primeiro passo de dominação das vítimas, obrigadas a andar de quatro e latir. A crueldade só não é maior que a covardia, forçar alguém a algo repulsivo apenas pelo prazer sádico de ver a pessoa sofrendo com a imposição. Talvez isso seja o de menos, se contabilizarmos a nefasta certeza de que os algozes autoritários fazem, sem ninguém o saber, todas essas mesmas coisas que exigem de seus prisioneiros, com um gozo doente e disfarçado frente à sociedade.

Pasolini dirige com atenção um filme naturalmente bem fechado em si, hermético em seu esconderijo arquitetônico — quase toda a obra se dá em ambientes decadentes e fechados — e possuidor de uma amoralidade que ultrapassa a caricatura felliniana. É algo singular e inclassificável. A belíssima música de Ennio Morricone corrobora o paradoxo: os créditos se desenrolam tendo ao fundo uma doce e evocativa melodia, que, repetida no fim da fita, passa a ser um tanto ridícula, por embalar terrores de tortura em ambiente sem consolo visual de qualquer espécie: partes de corpos sendo arrancadas de maneira bruta é apenas um dos fenômenos narrados ao final dos tais cento e vinte dias do título — uma marca cronológica real ou simples impressão de tempo transcorrido?

Proibido em incontáveis países e mantido até hoje na redoma duvidosa dos “filmes malditos”, Saló — desenvolvido pelo mesmo diretor do filme número 1 do Vaticano, O evangelho segundo São Mateus — é um filme que merecia ser redescoberto como obra de interessante apelo autoral, provocador narrativa e tecnicamente, e não um filme de fama indevida ligada às polêmicas que teria suscitado em meios mais conservadores. Como grito de revolta, Saló talvez seja mais valioso se analisado de maneira apenas cinematográfica.




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