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TRUFFAUT: UM GIGANTE DO CINEMA

Por Filipe Chamy

François Truffaut foi um homem apaixonado. Homem tímido apaixonado pela vida, cinéfilo doente apaixonado pela sétima arte. Seus textos, entrevistas e filmes refletem seus amores e pontos de vista, sendo impossível dissociar o homem do artista.

Nascido em 1932, o jovem François teve uma infância conturbada, marcada pela delinqüência advinda do desajuste com a escola e a família, na França da época da ocupação. Aos sete anos viu Paraíso perdido no cinema e apaixonou-se por filmes, desejando trabalhar na área. A obra de Abel Gance lhe fascinou a tal ponto que a marca deixada no espírito do pequeno francês foi indelével. Passou a ver dezenas de filmes por mês — faltando a aulas, inclusive — e a anotar os nomes dos diretores das obras que gostava. Fundou um pequeno cineclube e certa vez resolveu conhecer seu “rival”, dono de um cineclube maior e mais influente, o crítico André Bazin. Bazin não apenas simpatizou com o jovem cinéfilo como o incentivou a amar cada vez mais os filmes e não desistir de fazer alguma atividade na área. A influência de Bazin foi decisiva não apenas a Truffaut, mas a praticamente todos os diretores que fundaram a nouvelle vague, a “nova onda”.

Truffaut serviu ao exército por cerca de dois anos, período em que teve pouco contato com o cinema. Tentou escapar, foi preso por deserção e Bazin intercedeu em seu favor, o que fez com que o liberassem. Pouco tempo depois, o entusiasmado francês entraria definitivamente na história do cinema ao ser convidado, por Bazin, a escrever para a prestigiosa revista Cahiers du cinéma, que o crítico dirigia. Causou polêmica ao escrever artigos como Uma certa tendência do cinema francês, em que revelava o pensamento dos cineastas de sua geração, baseado na convicção de que o cinema francês de então era uma cópia pálida e mal acabada do cinema americano, sem originalidade ou vida, uma espécie de subliteratura ou subteatro que diminuía a arte cinematográfica — alçada a grandes patamares pelo jovem François e seus colegas. Na Cinemateca Francesa, Truffaut e outros amigos cinéfilos — que mais tarde tornar-se-iam também seus colegas de profissão — assistiam a inúmeros filmes e discutiam sobre diretores e experiências cinematográficas. Para a Cahiers, Truffaut ajudou a desenvolver a teoria que definia a politique des auteurs, ou política dos autores: os jovens críticos acreditavam que a força de um filme está na personalidade de seu autor (unânime e convictamente apontado como o diretor). Truffaut acreditava que um filme mais fraco de um diretor bom é sempre preferível a um filme bom de um diretor medíocre, pois este era um acaso. Separava os diretores “autores” dos diretores “executantes”, sendo os primeiros aqueles que têm total domínio da concepção e criação artística de suas obras, e os segundos, aqueles que sofrem imposições de estúdios, atores, interferências abusivas e externas. Acreditava ainda que mesmo que o cineasta não tivesse escrito uma linha do roteiro, uma frase do diálogo ou o que fosse, ainda assim o filme seria parecido com ele e sua qualidade dependeria apenas da competência, idéias e visão do homem que o dirige.

Após alguns anos como crítico da Cahiers e outras publicações voltadas à arte cinematográfica, François Truffaut conseguiu realizar o sonho de sua vida: virar diretor de cinema. A estréia se deu com o curta Une visite, pouco visto — e desaparecido até prova em contrário. Isso em 1955. Dois anos mais tarde dirigiria outro curta, que seria na verdade o pilar inicial de sua magnífica carreira: Os pivetes. Bem-feito, já demonstrava várias características estético-narrativas que seriam constantes em sua filmografia. Truffaut chegou a declarar que toda a obra de um cineasta está contida no primeiro minuto da primeira cena de seu filme inicial. Como o próprio François lamentava o resultado de Une visite e considerava Os pivetes seu primeiro filme real, pode-se perceber que o curta não é nada menos que um semi-divisor de águas da cinematografia mundial — e de particular interesse afetivo a seu realizador.

Em 1959 dirige seu filme mais famoso e aclamado, o perfeito Os incompreendidos. Essencialmente autobiográfico, narra as desventuras de Antoine Doinel (vivido por Jean-Pierre Léaud, garoto de talento gigantesco descoberto pelo diretor), que não sabe se adaptar à vida tal como ela se lhe apresenta. A fita foi um estrondoso e inesperado sucesso, rendendo a Truffaut vários prêmios (incluindo direção em Cannes) e lançando seu nome entre os grandes de sua área. A partir de então, com reputação estabelecida, permitiu-se ousar e experimentar, fazendo obra-prima atrás de obra-prima. Em 1960 veio o neo-noir Atirem no pianista, estrelado por Charles Aznavour, filme pautado em mudanças de tom e uma forte identificação pelos personagens, mais que por suas ações. Em 1961, junto a seu amigo Jean-Luc Godard, Une histoire d’eau, curta-metragem sobre problemas ocasionados por enchentes e um pouco de lirismo e abstração sobre esses problemas habituais da vida de muita gente. No ano seguinte, Uma mulher para dois, ou simplesmente Jules e Jim, película de montagem frenética e personagens inesquecíveis, uma fábula irrequieta sobre a amizade. 1964 é o ano de Um só pecado, elogiado filme estrelado por Françoise Dorléac.

Em 1966, um prenúncio de carreira internacional frustrou-se com as decepções de Truffaut com Fahrenheit 451, seu único filme de língua não-francesa (no caso, inglesa). O cineasta voltou definitivamente os olhos para as pessoas francesas e seus próprios questionamentos, seja com histórias próprias ou adaptadas de livros que gostava. E ainda arranjava tempo e disposição invejáveis para criar verdadeiras odes a seus ídolos, como fez com Alfred Hitchcock em A noiva estava de preto (1968) e com Jean Renoir em A sereia do Mississipi (que, apesar de dissociar-se um pouco do estilo do homenageado, não deixa de ser um belíssimo e emocionante conto moderno). Outras marcas notáveis em seu currículo se seguiram: O garoto selvagem, Duas inglesas e o amor e Uma jovem tão bela como eu vieram à luz respectivamente nos anos de 1970, 1971 e 1972.

Antoine Doinel, personagem tão carismático e rico em nuances e possibilidades, acabou voltando em outros quatro filmes, todos brilhantemente desenvolvidos, uma saga extremamente humana e deliciosa de se presenciar. São: O amor aos vinte anos — filme com três episódios, cada um dirigido por um cineasta de uma nacionalidade; o de Truffaut é Antoine e Colette —, Beijos proibidos, Domicílio conjugal e O amor em fuga, apresentados em 1962, 1968, 1970 e 1979. Antoine Doinel passa por uma infinidade de acontecimentos e mudanças, acompanhado pela câmera, as obsessões e pensamentos de Truffaut.

Os últimos filmes do grande François incluem o premiado A noite americana (1973) — em que expõe todo o seu inquestionável amor pelo cinema e pela profissão de diretor —, A história de Adèle H., triste constatação da indiferença amorosa, Na idade da inocência (1976), O homem que amava as mulheres (1977), sobre sua admiração pelo sexo oposto, O quarto verde (1978), um dos poucos filmes em que atua, O último metrô (1980), A mulher ao lado (1981) e De repente, num domingo (1983). Seu carinho por atores e personagens ficou evidenciado na sua coesa jornada, interrompida prematuramente por um câncer.

Admirador de mestres como Hitchcock — com o qual fez uma fantástica (e talvez sua mais famosa) entrevista —, Renoir, Welles, Hawks, Fellini e Chaplin, François Truffaut teve um histórico invejável de realizações sinceras, românticas, doces, emotivas e muito, muito pessoais. Nunca fez nada que não sentisse, não aceitava palpites que não apenas amigáveis conselhos, pautou seu trabalho no bom-gosto e honestidade consigo e com seu público. Por isso não é de se estranhar a sua imensa popularidade, seus êxitos de bilheteria, sua influência decisiva para a vida de tanta gente, não apenas da área do cinema.



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