A Voz da Lua
Por Filipe Chamy
A Voz da Lua
Direção: Federico Fellini
La Voce della luna, Itália, 1990
Última obra da colossal carreira de Federico Fellini, A voz da lua sofre de um mal já observado por Truffaut décadas atrás: a sanha dos críticos em opor as coisas, ao invés de analisá-las isoladamente. Assim, critica-se o filme por não ter o saudosismo de Amarcord, a crítica de A doce vida, a doçura de Noites de Cabíria, como se não possuísse qualquer identidade. Marginal na filmografia do grande diretor, pouco conhecido do público e injustiçado pela crítica — que insiste em apontar a escalação de Roberto Benigni (que Fellini admirava imensamente) como uma grande falha —, é um momento único de reflexão consciente e justificada paixão pelas descobertas da vida.
Ivo Salvini (Benigni) chega a um poço envolto pela névoa brilhante da Roma anoitecida. Uma voz o chama, ele procura e nada vê. O filme é todo um procurar de conhecimento, acoplado da certeza de não o encontrar. O que importa não é o resultado, mas o processo de busca da sabedoria. “É a curiosidade que me faz acordar de manhã”, diz Ivo a um ponto do filme. Esse rito impotente tem uma certa ternura pueril, as pessoas seguem sem se preocupar com respostas — até porque elas são inalcançáveis.
A jornada abarca personagens bizarros, cores esfumaçadas e/ou fortes, humor (e aqui o sexo tem um papel de caricatura), uma não-definição que deixa apenas a possibilidade de se alegrar pelo viver, pairando a sombra sóbria e aterradora da agonia do desconhecer — mas o amor pelo desconhecido. Os ambientes abertos, a amplidão, imensidão, solidão, Ivo vai andando sem rumo em direção ao sonho que tem todos os dias, de compreender a inconfessável beleza poética de sua vida. No caminho, choca-se com a modernidade e com a figura esquisita e de imponência bonachona, o prefeito Gonella (Paolo Villaggio). As máquinas perturbam o som do vazio, a música moderna ruidosa impede o prosseguimento da estabilidade das coisas, o sonho se funde com o pesadelo. O absurdo das imagens surrealistas só pode ser comparável ao non-sense das mentalidades e posições que Fellini parece se divertir em dissecar, apenas observando divertido as imagens circenses que sua cabeça imprimiu na película.
A música é importante não apenas em termos imediatos — o compositor Nicola Piovani soube dosar o lirismo e o absurdo — mas também em seu contexto visual ou simbólico. Pois as próprias imagens que se sucedem têm uma cadência melódica que apóiam a sensação de fantasia e desencaixe. A certo ponto surge a questão: para onde vai a música após seu fim? Aonde vão as notas após serem tocadas? Esses problemas trivialmente insolúveis são tratados por Fellini com um respeito sacro, dúvidas imortais que não devem ser jamais molestadas com resoluções. A verdade não existe, e verossímil é o que os olhos podem ver e o coração, crer. Ivo Salvini e Gonella aprendem que o clima onírico em que estão envolvidos não é fruto de suas percepções, mas uma certa brincadeira do mundo. Eles sabem que ruídos não passam de barulhos, mas esperam a hora de poderem aperfeiçoar suas existências como seres humanos — afinal, é o que somos de menos (o que fica bem claro aqui às vezes).
Para coroar um evento tão especial e único na sua singularidade — as individualizações coletivas estão cada vez mais aceitas —, danças, Pinóquio e política. A metáfora talvez só não é mais forte por incompreensão das incapacidades próprias a cada um. Aos que não entenderam o roteiro dito atabalhoado, resta aconselhar ver o filme com olhos descomprometidos, sem esperanças vãs de encontrar sentidos prontos. A lua é sempre visível a quem quer que seja, então talvez seja um bom caminho começar por aí. "Se permitíssemos um pouco de silêncio, talvez consigamos entender algo”.
Direção: Federico Fellini
La Voce della luna, Itália, 1990
Última obra da colossal carreira de Federico Fellini, A voz da lua sofre de um mal já observado por Truffaut décadas atrás: a sanha dos críticos em opor as coisas, ao invés de analisá-las isoladamente. Assim, critica-se o filme por não ter o saudosismo de Amarcord, a crítica de A doce vida, a doçura de Noites de Cabíria, como se não possuísse qualquer identidade. Marginal na filmografia do grande diretor, pouco conhecido do público e injustiçado pela crítica — que insiste em apontar a escalação de Roberto Benigni (que Fellini admirava imensamente) como uma grande falha —, é um momento único de reflexão consciente e justificada paixão pelas descobertas da vida.
Ivo Salvini (Benigni) chega a um poço envolto pela névoa brilhante da Roma anoitecida. Uma voz o chama, ele procura e nada vê. O filme é todo um procurar de conhecimento, acoplado da certeza de não o encontrar. O que importa não é o resultado, mas o processo de busca da sabedoria. “É a curiosidade que me faz acordar de manhã”, diz Ivo a um ponto do filme. Esse rito impotente tem uma certa ternura pueril, as pessoas seguem sem se preocupar com respostas — até porque elas são inalcançáveis.
A jornada abarca personagens bizarros, cores esfumaçadas e/ou fortes, humor (e aqui o sexo tem um papel de caricatura), uma não-definição que deixa apenas a possibilidade de se alegrar pelo viver, pairando a sombra sóbria e aterradora da agonia do desconhecer — mas o amor pelo desconhecido. Os ambientes abertos, a amplidão, imensidão, solidão, Ivo vai andando sem rumo em direção ao sonho que tem todos os dias, de compreender a inconfessável beleza poética de sua vida. No caminho, choca-se com a modernidade e com a figura esquisita e de imponência bonachona, o prefeito Gonella (Paolo Villaggio). As máquinas perturbam o som do vazio, a música moderna ruidosa impede o prosseguimento da estabilidade das coisas, o sonho se funde com o pesadelo. O absurdo das imagens surrealistas só pode ser comparável ao non-sense das mentalidades e posições que Fellini parece se divertir em dissecar, apenas observando divertido as imagens circenses que sua cabeça imprimiu na película.
A música é importante não apenas em termos imediatos — o compositor Nicola Piovani soube dosar o lirismo e o absurdo — mas também em seu contexto visual ou simbólico. Pois as próprias imagens que se sucedem têm uma cadência melódica que apóiam a sensação de fantasia e desencaixe. A certo ponto surge a questão: para onde vai a música após seu fim? Aonde vão as notas após serem tocadas? Esses problemas trivialmente insolúveis são tratados por Fellini com um respeito sacro, dúvidas imortais que não devem ser jamais molestadas com resoluções. A verdade não existe, e verossímil é o que os olhos podem ver e o coração, crer. Ivo Salvini e Gonella aprendem que o clima onírico em que estão envolvidos não é fruto de suas percepções, mas uma certa brincadeira do mundo. Eles sabem que ruídos não passam de barulhos, mas esperam a hora de poderem aperfeiçoar suas existências como seres humanos — afinal, é o que somos de menos (o que fica bem claro aqui às vezes).
Para coroar um evento tão especial e único na sua singularidade — as individualizações coletivas estão cada vez mais aceitas —, danças, Pinóquio e política. A metáfora talvez só não é mais forte por incompreensão das incapacidades próprias a cada um. Aos que não entenderam o roteiro dito atabalhoado, resta aconselhar ver o filme com olhos descomprometidos, sem esperanças vãs de encontrar sentidos prontos. A lua é sempre visível a quem quer que seja, então talvez seja um bom caminho começar por aí. "Se permitíssemos um pouco de silêncio, talvez consigamos entender algo”.