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Dossiê Rubem Biáfora

BIÁFORA E EU

Por Sergio Andrade

Desde que me entendo por gente, sempre gostei de cinema. Lembro que quando meu pai trazia um jornal pra casa eu corria pra ver a penúltima pagina, que trazia a publicidade dos filmes em cartaz. Ficava vendo as fotos dos cartazes, lendo os nomes dos atores, dos diretores, e sonhando.

Nessa época ainda não tinha o costume de ler o jornal.

Até que, quando tinha uns 12, 13 anos, meu pai trouxe o “Estadão” de domingo. Sentei-me na mesa e passei a folhear o jornal, até chegar no caderno de cultura. Foi quando li a manchete de uma coluna informando sobre a reprise do filme “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio de Sica. Apesar da pouca idade, já tinha ouvido falar sobre ele, e sabia que era considerado um dos melhores filmes de todos os tempos.

Comecei então a ler a resenha com curiosidade. A princípio, estava tudo bem, mas de repente me deparei com uma palavra que não sabia o significado; citações de filmes e diretores dos quais nunca tinha ouvido falar; e em certos momentos o autor do texto passava a divagar sobre assuntos políticos, os quais eu não entendia direito, para retornar ao filme algum tempo depois. A leitura foi árdua, mas ao final uma coisa havia ficado clara: o cara não gostava de “Ladrões de Bicicleta”! Aquilo para mim foi uma verdadeira revelação: era possível então ir contra a opinião geral, as certezas absolutas, as unanimidades. Creio que reli o texto mais umas 2 ou 3 vezes, e então me lembrei de procurar pelo nome do autor. Lá estava: Rubem Biáfora. Percebi depois que a coluna, que ocupava uma página inteira do jornal, tratava das estréias da semana na cidade, e o Biáfora fazia comentários sobre cada uma delas, que eram mais de dez.

A partir daí, aguardava com ansiedade a chegada do domingo para pegar o caderno cultural e ir direto para as “Indicações” do Biáfora.

Os textos eram sempre saborosos, as indicações dialogavam entre si, ele citava um assunto na resenha de um filme e o retomava na resenha seguinte, um comentário a respeito do grande lançamento da semana poderia ter continuidade ao chegar a vez de uma produção menos badalada.

E havia as fichas técnicas, as mais completas possíveis. E a enorme quantidade de informações sobre diretores, atores, técnicos.

Foi pelo Biáfora que tomei conhecimento da existência de diretores como Sidney Salkow, Allan Dwan, Joseph M. Newman, Edgar G. Ulmer, Robert Gordon, Joseph H. Lewis, Reginald Le Borg, etc. E pude saber cada vez mais a respeito dos grandes mestres como Antonioni, Buñuel, Bergman, Visconti, Fritz Lang, William Wyler, etc.

Nomes hoje consagrados como Maurice Pialat, Michael Haneke, Emir Kusturica já eram conhecidos por seus leitores há 25 anos atrás.
Ele tinha um conhecimento enciclopédico de cinema. Ler seus textos valeu como todo um curso universitário de cinema.

O cinema japonês, por exemplo, me foi apresentado por Biáfora. Ozu, Mizoguchi, Kurosawa, Sugawa, Imamura se tornaram familiares para mim graças as suas indicações. Ficava admirado de como ele conseguia se lembrar dos nomes e das fisionomias de todos aqueles atores e atrizes maravilhosos do cinema nipônico da grande fase.

E ele comentava, com igual desenvoltura, filmes de outras procedências: alemães, franceses, italianos, americanos, espanhóis, argentinos, etc.

E claro, cinema brasileiro. É sabido que ele não gostava do Cinema Novo, embora reconhecesse o talento de alguns de seus membros. Mas chamava a atenção para a obra de diretores que não pertenciam ao movimento, como muitos da Boca do Lixo: Jean Garrett, Carlão Reichenbach, Juan Bajon, John Doo, etc.

Porém o que mais me marcou da leitura de seus textos foi seu imenso amor pelo cinema. Para ele o cinema era tão importante quanto qualquer outro tipo de arte.

Muitos o acusavam (e ainda acusam) de ser de direita. Nada mais equivocado. Afinal, como acusá-lo de direitista sabendo-se da admiração que nutria pelo cinema de países do leste europeu, que então pertenciam a chamada “Cortina de Ferro”? Filmes poloneses, iugoslavos, húngaros, tchecoslovacos sempre contaram com seu entusiasmo.

Na verdade ele era um humanista, que via no cinema o melhor instrumento para se falar sobre a condição humana.

Acompanhei sua coluna por cerca de 10 anos. A partir de 1976 comecei a colecionar as “Indicações”. Ele parou de escrever no começo de 1983. Carlos M. Motta assumiu a coluna até por volta do final dos anos 80. Devo a esses dois o fato de ter continuado, sozinho, anotando todas as estréias de filmes nos cinemas de São Paulo desde então.

Não sabia porque motivo guardava esses antigos textos dele, até o momento em que, graças ao blog, fiquei conhecendo um garoto cheio de energia, e que sempre comentava sobre o Biáfora, um nome que permaneceu décadas no esquecimento. Pois esse garoto criou uma revista eletrônica, me convidou para ser colaborador e me incumbiu da tarefa de selecionar textos do Biáfora pra serem publicados na revista, esta que vocês estão lendo. Soube então que, como sempre, tudo na vida tem um motivo. Muito grato, Matheus!
Claro que, ainda hoje, muitos continuam criticando o Biáfora, usando os mesmos argumentos que Paulo Emilio Salles Gomes, vejam só, usou num artigo no “Suplemento Literário” do Estadão no final dos anos 50. Certas coisas nunca mudam. O bom é saber que ele, se estivesse vivo, gostaria de saber que ainda é motivo de polêmica. Sempre gostou de uma discussão.

Ao longo dos anos, minha relação com “Ladrões de Bicicleta” sempre mudou. Às vezes acho uma obra-prima, às vezes considero de uma pieguice total.

Já em relação ao Rubem Biáfora é o contrário. Mesmo quando eu discordo completamente da opinião dele sobre algum filme, ao final sempre acabo chegando à conclusão de que, de algum modo, ele tinha razão.



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