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Dossiê Rubem Biáfora

DUAS ESTRÉIAS E A GRANDE SURPRESA DO ANO

Por Rubem Biáfora
Seleção e transcrição: Sergio Andrade

“O Vale dos Amantes”, o filme nacional que marcou a estréia como diretor do veterano, famoso e competente iluminador Tony Rabatoni, não entrou em cartaz ontem, como relacionamos em nossas “indicações” de domingo passado. Mas entrará amanhã e, seguindo normas que nós mesmos nos impomos, voltemos aqui a fazer sua prévia. Já um filme japonês, “Aconteceu no Fim de Tokugawa”, do engajado, famosíssimo e também talentoso diretor japonês Shohei Imamura, não estava anunciado mas ontem entrou de súbito no Cine Gazetinha-Centro. São duas, pois, as estréias a tratar nesta última semana do ano. A menos que nova surpresa aconteça. Por outra, já sabemos que sábado próximo, dia 1°, teremos mais dois lançamentos, japoneses, nos Cines Shochiku e Niterói. Intencionalmente, porem, vamos deixá-los para as “Indicações” do dia 2, pois assim estaremos separando os filmes de 1982 dos futuros lançamentos de 83. Uma questãozinha de método, de rotina, mas que achamos positivo respeitar.

No que concerne às exibições especiais, há que salientar que no Cineclube SESC-Pompéia, amanhã, às 20 horas, o filme em cartaz será “Infâmia” (These Three), clássico de William Wyler, em 1936, extraído da obra de Lílian Hellman e com Miriam Hopkins, Merle Oberon, Joel McCrea, Bonita Granville, Margaret Hamilton, Catherine Doucet. E em homenagem ao talento dessas intérpretes, o complemento escolhido é um documentário curto francês sobre outra mulher de exceção: Marguerite Duras. Na terça, o filme do “Pompéia”, e que encerrará a programação do ano, é outro clássico, este de 41, o celebérrimo “Cidadão Kane”, de Orson Welles. Ainda importante como programação especial é a do “Carbono 14” (Sala Piloto 13): “A Comilança” (La Grande Abbuffata), o desafiador filme italiano de Marco Ferreri, em 73, com Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Ugo Tognazzi e Andréa Ferreol. No setor de vídeo (sala Kinorama), outra obra de importância, The Wall, um trabalho do mesmo Alan Parker do excepcional “O Expresso da Meia-Noite”.

E por falar em excepcionalidade, uma surpresa que não esperávamos aconteceu na quinta-feira (e que bisamos na sexta): “Sonhos Eróticos Numa Noite de Verão” (A Midsummer Night’s Sex Comedy). Andávamos um tanto contrariados com Woody Allen. De seu premiado Annie Hall (“Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”) não conseguimos ir além do rolo inicial. E o também louvado “Manhattan” nos pareceu sem interesse algum. Confessamos que perdemos “Boris Gruchenko”, “Interiores” e “Memórias”. Mas aqui a surpresa é total. O primeiro filme que vemos em muitos anos de atmosfera à maneira antiga, isto é, aquela clássica, criada por Griffith e retomada em alguns lampejos por Arthur Penn e por Terrence Malick parcialmente em “Terra de Ninguém” e in totum em “Cinzas no Paraíso”. E através do “falado” e do “intelectualizado” de Allen, um domínio até então insuspeitado. Mais que em La Partie de Campagne, mais talves do que em “Sorrisos de Uma Noite de Amor”, de Bergman, mais ainda que em La Regle du Jeu, do mesmo Renoir, toda uma poesia e uma “explicação” para a mítica do verão no Hemisfério Norte, uma magia como Shakespeare a concebeu em sua comédia clássica, que Max Reinhardt e William Dieterle levaram a tela no incompreendido filme que a Warner produziu em 35. Que ambientação, que domínio na recriação de um período, que utilização da cor, que fotografia, que sábio aproveitamento da suíte musical de Mendelssohn, afora a inteligência e aprofundamento de certos diálogos. Allen como ator não é o fascínio que pode ter como cineasta. Mas José Ferrer, que sempre foi um problema de tipo, aqui se transforma no melhor que poderia ser Rex Harrison, Mia Farrow, lembrando sua mãe Maureen O’Sullivan, Tony Roberts, parecendo uma edição de Erland Josephson com o Ronald Reagan all american de “Knute Rockne” e “Kings Row”, Mary Steenburgen, um misto da patética Zazu Pitts e Margaret Field, a sensível e fugaz estrela dos inícios de 50, mãe de Sally Field.

“Sonhos Eróticos”, quase que a contragosto para nós, acaba superando “Bodas de Sangue”, “Olhos Vendados”, “Mamãe Faz Cem Anos”, o trio respeitável que 1982 trouxe de Carlos Saura, superando “Crônica do Amor Louco” de Ferreri, “Corpos Ardentes”, de Lawrence Kasdan; levando de roldão o que de melhor nos deu este ano que ora finda.

E de novo, por falar em melhor. Qual será a melhor atriz estrangeira, Geraldine Chaplin em “Olhos” e em “Mamãe”? Romy Schneider em “A Mulher do Dinheiro”? Eva Mattes em “Alemanha, Pálida Mãe”? Ator, só pode ser William Hurt em “Corpos Ardentes”. Entre as nacionais, claro que Rossana Ghessa no episódio de “Fantasias Sexuais”; Tânia Alves e Carla Camuratti em “O Olho Mágico do Amor”, Patrícia Scalvi em “Duas Estranhas Mulheres”, a revelação de Cláudia Ohana. Atores temos José Lucas em “Fantasias Sexuais”; Julio Medaglia e Wilson Grey em “O Segredo da Múmia”; Roberto Miranda em “Amor, Palavra Prostituta”, e até mesmo Jotta Barroso, repetindo como Wilson Grey parodiando Karloff em “A Múmia”, um fac-símile de Lugosi, mesmo num filme péssimo como “Banquete das Taras”.

No terreno das exibições especiais, o intérprete absoluto foi Michel Lonsdale, repetindo em Bartleby e Le Diable dans la Boite, suas façanhas incríveis no ano anterior com Índia Song, e não só resistindo, como até erguendo um pouco Costa-Gavras, com “Seção Especial de Justiça”. O outro Michel, também singular, Michel Piccoli, não teve oportunidade à sua altura em 82, o que no que respeita às apresentações em São Paulo, foi absolutamente lamentável e depõe muito contra nossa importação, contra as restrições que a ganância da “cinema/novice” impõe à Embrafilme, contra o “fácil, fácil” de nossa legiferância, contra a nossa contumaz falta de vigilância crítica, contra muita coisa.

Voltando, porém, ao cinema estrangeiro, e às especiais, não vimos todas as estréias polonesas (falta imperdoável), mas soubemos que no “Festival do Masp”, o mais límpido foi “As Contas de um Rosário”, de Kazinier Kutz. Mas vimos “Quem se lembra de Dolly Bell”, de Emir Kusturica, outra maravilha do cinema iugoslavo, e também o holandês “A Marca da Besta”, de Peter Verhoeff, com Gerard Toolen, um ator realmente fora de série e o único que pode ameaçar, nos dois planos, a soberania de Hurt e Lonsdale. Deixemos, contudo, este improvisado apanhado de fim de ano e vamos às duas “Indicações” em pauta.

*Publicado originalmente no “O Estado de São Paulo” de 26/12/82.



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