html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê Rubem Biáfora

O CRÍTICO LIBERTÁRIO

Por Matheus Trunk

Definir Rubem Biáfora é uma das tarefas mais difíceis que conheço. Durante trinta anos, este homem magricelo e de óculos de fundo de garrafa publicou seu amor pelo cinema nas páginas do Estadão. Talvez ás vezes exagerado ou mesmo abusando dos parênteses, o crítico paulista tinha uma grande devoção ao cinema. E mesmo assim, uma personalidade da dimensão e da importância de Biáfora caiu no completo esquecimento.

Mostras e publicações não o incluíram como se ele fosse um maldito ou um teórico marginal. Esquecido e jogado as favas, esse é o quadro em que ele se encontra. Marcando mais de uma geração de cinéfilos brasileiros, Biáfora era um homem de grande coragem.

Ao mesmo tempo que falava mal de filmes internacionalmente reconhecidos como “Apocalipse Now” ou “Roma, Cidade Aberta”, ele via méritos artísticos em produções como “O Banquete das Taras” ou fitas do Tony Vieira. Isso sem falar em realizações obscuras do Japão ou mesmo do Leste Europeu que ele conhecia de cor e salteado.

Em uma crítica recente, Inácio Araújo se lembrou que a única pessoa que ele tinha conhecido que não gostava de “Cantando na Chuva” era justamente Rubem Biáfora.

Por isso tudo, fica fácil jogar nele o cunho de reacionário. Biáfora não fazia média e não era um homem de academia. Sua linguagem era a do jornalismo, e a qual praticou desde os quinze anos de idade até o fim de sua vida. Um homem que nasceu e morreu para o cinema. Exagerado sim, mas apaixonado e inteligente. Professor que não se vangloriava de seus conhecimentos e muitas vezes não conheceu seus mais fiéis alunos, que colecionavam suas críticas. É bom lembrar que antes dos tão idolatrados franceses, RB descobriu Bergman e o cinema japonês.

Homens como ele viam filmes diversas vezes somente para anotar toda a ficha técnica de uma fita. Antes do IMDB, antes do Dicionário de Cineastas, Rubem Biáfora era a grande referência de dados cinematográficos do Brasil. Até Jairo Ferreira, que teve uma série de problemas com ele reconheceu certa vez: “É uma das maiores autoridades de cinema no Brasil. Faz arquivo de filmes desde 1928, guardando tudo sobre os lançamentos do cinema estrangeiro e nacional. Sem maiores esforços consegue lembrar os principais filmes exibidos no Brasil, principalmente até 1950”.

Quando um filme era exibido novamente, mesmo décadas depois Biáfora sabia exatamente onde ele tinha passado quando fora lançado comercialmente. Mesmo as salas onde a fita tinha sido exibida, ele colocava em suas críticas ou indicações.

Quando se fala nos grandes críticos/teóricos do cinema brasileiro sempre são lembrados personalidades como Paulo Emílio Salles Gomes ou Alex Viany. Todos tem sua devida importância. Paulo Emílio teve e é uma grande referência para nosso cinema, em particular na ECA/USP onde deu aulas. Mesmo seu livrinho, “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimentismo” foi uma das primeiras obras que li. Viany, além de excelente crítico, tem pelo menos dois livros fundamentais: o clássico “Introdução ao Cinema Brasileiro” de 1959 e uma coletânea de entrevistas “O Processo do Cinema Novo”.

Mas pessoalmente, pra mim como pesquisador ou crítico ou mesmo redator da Zingu!, a figura que mais fundamental foi e é ainda é Rubem Biáfora.

E por quê? A realidade, é que ele não julgava os filmes por seu conteúdo político. Ele levava ao espectador a liberdade de poder escolher e de saber que aquela obra (o filme) tinha um viés ideológico. Por isso talvez, era tido como reacionário, quando na verdade era um libertário, por não julgar os filmes por seu conteúdo político.

Quando se fala de cinema brasileiro, o esquecimento de fíguras fundamentais é fácil. Mas quando se fala de cinema paulista, a situação se torna pior ainda.

Sem verbas de mecenato oficial e independente da crítica oficial, o cinema de São Paulo sempre sofreu de enorme preconceito. Walter Hugo Khouri é quase sempre tratado como um “tarado”; Coimbra um “acadêmico”.Autores como Ody Fraga, Cláudio Cunha, Alfredo Sternheim, Rubens da Silva Prado e Fauzi Mansur quase nunca são lembrados. Ou mesmo os meios sabem da importância de personagens como Tony Vieira, David Cardoso, Mazzaropi e tantos outros.

Sendo uma espécie de porta-voz e defensor de todos eles, Rubem Biáfora sofreu e sofre até hoje o julgamento ideológico.

Ele não foi somente o mais influente e talentoso crítico que tivemos em São Paulo e talvez no Brasil. Teve toda uma geração de discípulos e críticos influenciados por ele, ele deixou um grande e precioso legado de ver todo o tipo de películas desde as consagradas e mesmo as não-consagradas.

Se o lendário Moniz Viana parou de ver filmes em 61, pois considerava o “cinema morto”, o contrário pode-se dizer do libertário. Sua paixão pela sétima arte era tão grande, que ele prosseguiu indo aos cinemas e admirando novos diretores como Herzog, Carlos Saura, Wim Wenders e tantos outros.

Um mestre, um verdadeiro libertário, no real sentido da palavra.



<< Capa