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Dossiê Rubem Biáfora

Odisséia do cinema em 76

Por Rubem Biáfora
Seleção e transcrição: Sergio Andrade

O que de melhor, em matéria de cinema, tivemos no ano ontem findo? Se a pergunta abrangesse o panorama internacional (coisa a que poucos estarão em condições de dar opinião qualificada) a resposta já não seria muito animadora. Tratando-se, então, de um panorama nacional de exibição, produção ou de um adequado e isento julgamento crítico, aí ela só pode ser melancólica. Como vem sucedendo de muito tempo para cá, aliás.

Em matéria do conhecimento, da apreciação em condições normais do que se fez de sério e de bom no mundo do cinema em 1976, aqui entre nós a miserabilidade foi indiscutível. Culpa-se muito, culpa-se demais a censura por isso, mas certamente bem menos que a censura – cuja finalidade e processos, limitações e obrigações, de tão intrínsecos e conhecidos já nem podem causar maiores males do que aqueles já exaustivamente catalogados – as causas mais determinantes estão com o TODO, estão com o desinteresse, o cansaço ou mesmo a inexistência de uma camada ideal de espectadores. Estão com tibieza e o menor descortino de uma crítica (quase sempre provisória) e dos chamados especialistas (que quase nunca o são), estão com a mediocridade e estratificação dos processos de distribuição e exibição, agravados agora com portarias insensatas como o da copiagem compulsória (os oculistas deveriam ter a palavra), como o terrorismo e restrições às importações de qualidade, como o aumento capcioso e ineficiente dos dias de obrigatoriedades e outras medidas catastróficas sopradas unicamente em causa própria pelos interessados em sua prosperidade econômica e poder pessoal.

Assim, muito pouco ou quase nada de tudo aquilo que cada cidadão brasileiro tinha o direito de assistir, do que tinham a obrigação de lhe apresentar, pôde ser visto por nosso público em 76.

Da produção internacional, numa época como esta, tida especificamente como de crise política e de crises existenciais (há denominações menos corteses para o fenômeno), o melhor filme do ano só poderia ser “O Passageiro” de Antonioni. Com procuras e soluções (inclusive no plano dramatúrgico, ficcional) que já pareciam impossíveis de ocorrerem a mais alguém, o mestre de “La Notte” e “Blow-Up” dá-nos uma inquietante preleção do que ainda pode ser feito em matéria de realização cinemática.

Distantes do filme de Antonioni (e sempre dentro do que tivemos oportunidade ou ânimo para assistir) ressalte-se também a relativa surpresa que foi poder apreciar uma visão ética de um mundo (o atual) nada ético, e isso partindo de um realizador duvidoso como Arthur Penn, em “Um Lance no Escuro”. Somente por via da TV, mas nem por isso deixando de ser filme de cinema, outra obra ponderável foi “Entre a Fama e a Loucura” (“Puzzle of a Downfall Child”) do mesmo Jerry Schatzberg de “O Espantalho”.

De Visconti tivemos um testamento não completamente expressivo nem tão impecável, mas sincero e, sobretudo, pessoal e coerente: “Violência e Paixão”. O classicismo, ou melhor, o permanente em linguagem e recursos fílmicos, em arcabouço dramático, em visão de mundo, ainda que (como “Lance no Escuro” e também “Um Estranho no Ninho”, outra parábola constrangedora distorcida, mas igualmente certeira) esse classicismo, dizíamos, ainda que adotado as degenerescências em voga, retornou no belo e pungente “Cidade das Ilusões”, de John Huston.

“Claudine” nos devolveu um John Berry em forma e provou que o negro em cinema (mesmo que o cinema brasileiro deturpe o fato), é assunto tão digno e merecedor de tratamento artístico como qualquer outro. Lattuada mergulhou na crueza e na escatologia e continuou cineasta com “Quando o Sexo é Pecado”. Pasolini, justamente quando desaparecia, aqui teve dois de seus primeiros trabalhos, “Desajuste Social” e o episódio “La Ricotta” em “Relações Humanas”, como se fosse para dar a medida do que o cinema se veria então desfalcado. E, finalmente, na seleção “Isto Também era Hollywood”, Greta Garbo provou que continua soberana e absurdamente contemporânea.

No plano nacional, 1976 foi um ano em que mais lobos-em-pele-de-cordeiro e antigas ditatoriais e propaladas pseudoconvicções cada vez mais foram deixando ver sua oculta face. Ideologias, mesmo as mais contraproducentes ou fanáticas, ainda seriam desprendimento de Francisco de Assis diante da real finalidade desses “batalhadores”: complexos, frustrações, gula de honrarias, cargos e empregos, ânsia exibicionista, além de uma duplicidade na melhor tradição do sempre vivo pessedismo. E nada do verdadeiro interesse para com a condição humana e sua expressão em arte e realidade, que é o “sine-qua-non” do cinema.

A Embrafilme, e organismos inutilmente recém-transformados e recém-rotulados, mas sempre caudatários, abarcou em prazo recorde volume tal de recursos, um consenso oficial e um consentimento governamental que talvez nem mesmo seu essencial criador, o falecido Flávio Tambellini (agora intencionalmente esquecido), teria imaginado tanto. Relativamente e em termos brasileiros, é claro, ela enfeixa atualmente possibilidades decisórias e criativas que nem nos acasos ou períodos de mais efervescência criadora do cinema mundial se tem conhecimento (a atuação do roteirista Carl Mayer na primeira fase áurea do cinema alemão, as aberturas para produtores como Eric Pommer, Adrian Scott, Harry Joe Brown, Arthur Freed, o convite feito pela RKO ao Grupo “Mercury” de Orson Welles em 1940, a incumbência para 12 filmes classe B que Val Lewton conseguiu da mesma RKO entre 42 e 45, as oportunidades a Bergman na Suécia, o surgimento de Miklos Jancso no moderno cinema húngaro, os primeiros anos do cinema nacionalizado polonês, o abre-caminho da “nouvelle vague” francesa). E no entanto a paisagem é o imediatismo, o sensacionalismo, a superfície, o mesmo deserto de pessoas e de idéias, a ausência de autêntica paixão pela causa.

Felizmente, ainda assim algumas sementes não foram lançadas ao chumbo derretido, alguns cartuchos não foram queimados em vão, alguns anseios, amparados ou autônomos, deram resultado: em filmes (“Nem os Bruxos Escapam”, “O Desejo”, “O Predileto”), em esforços dentro do quase impossível (o diretor Sarne e a intérprete Vera Fischer em “Intimidade”), no desvio autocomplacente (“A Lenda do Ubirajara”), na interpretação (Monique Lafond, Liliam Lemmertz, Adriana Prieto, Irene Stefânia, Nadia Lippi, Vera, Norma Benguel, Selma Egrei, Elke Maravilha, Arlete Sales, Kate Hansen, Roberto Bolant, Xandó Batista, Luis Linhares, Sergio Hingst, Mauro Mendonça), na fotografia (Antonio Meliande, Dib Lufti), na revelação de “metteur-en-scene” (John Herbert em seu episódio de “Já Não se Faz Amor”). A superprodução, Moloch insaciável, deu a nota com “Xica da Silva” e “Dona Flor”, mas só os amáveis não viram que elas deveriam estar em outros termos e proposições, que o que elas teriam de bom, outros filmes mais normais, menos dispendiosos, menos sensacionalistas e menos promovidos o têm em mais leal teor. E que fazer do êxito comercial o fim supremo até para a avaliação “crítica”, leva à imposição fascista do modelo único e à violência financeira, além de criar um “dumping” de programação para o restante da produção global do país, gerando uma competição impossível entre tubarões e peixinhos e criando uma euforia néscia e criminosa diante tão-somente de êxitos comerciais, prática suicida que jamais abriu, como se propala, caminhos nem mercados. E isto o provam os antecedentes melancólicos de “O Ébrio”, “Carnaval no Fogo”, “Tico-Tico no Fubá”, “O Cangaceiro”, “Sinhá Moça”, “A Morte Comanda o Cangaço”, “Independência ou Morte” e todo o ciclo das mascaradas ou das “pornochanchadas” de grande consumo com as quais umas e outras fitas sempre têm forte relação em seus aspectos mais popularescos e “bem sucedidos”.

E se o exemplo nacional não conta, veja-se o de Hollywood. Nunca a Paramount, a Warner e a Universal, ganharam tanto dinheiro como com “O Poderoso Chefão”, “O Exorcista”, “Tubarão”, “Love Story”. Nunca tantas foram as semanas no Radio City, no Roxy, no Strand, no Capitol, os maiores cinemas do mundo (nem com Garbo, Dietrich, Gable, Flynn, Bette Davis, Hepburn) como as que alcançaram as novas fitas tolas com Walter Matthau, Jack Lemmon, Barbra Streisand, etc. mas são mesmo esses os períodos de plena florescência e revelação, estabilidade e força criadora do cinema americano? As fabulosas rendas para que e quem estão servindo? Terá o cinema se tornado uma aventura pessoal? Mas então...

*Publicado originalmente no “O Estado de São Paulo” de 02 de janeiro de 1977



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