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Que história espera seu fim lá embaixo?

Por Melody Westenra

Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, de Robert Pirsig

Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas é o tipo de livro pelo qual a maioria das pessoas passaria reto nas livrarias. O título, embora resuma perfeitamente a suposta temática do livro, é um pouco assustador e aparentemente destinado a um público alvo seleto – amadores e entendedores de motocicletas e seguidores do budismo. Mas quem conseguir ultrapassar essa fachada vai se deparar com uma das histórias mais intensas e perturbadoras já escritas sobre uma viagem pelas estradas americanas.

Nós acompanhamos a viagem de 17 dias em que o narrador e seu filho de 12 anos tentam estabelecer algum tipo de contato entre o ser humano, real e pulsante, dentro de todos nós, e a máquina, o produto embalado e preparado para viver numa típica sociedade ocidental. O próprio subtítulo do livro – “uma investigação sobre valores” -, embora soe pedante, não deixa de resumir bem a intenção do autor.

O romance se desenvolve a partir de uma dicotomia crítica e presente em cada sentido oculto da história: O casal que viaja com o narrador tem um nojo quase absoluto de tratar da parte mecânica da moto, assim como de se envolver com outros concertos domésticos que envolvam o trato com a tecnologia pura de um objeto acima de seu valor estético. É uma incapacidade de conciliar a beleza estética com a capacidade funcional que, para o narrador, é a característica mais marcante e a crise dos nossos tempos.

Essa dicotomia aparece, mais a fundo, na própria pessoa do narrador, que precisa se mostrar como a funcionalidade humana, o racional, o socialmente válido, mas é, contra todas as suposições e aceitações, o estético-grotesco, a beleza sombria que foi ocultada, quase eliminada, porque não convinha com a objetividade de funcionamento esperada do homem ocidental comum.*

Esse homem teve de se afastar por completo de tudo o que o classifica como ‘não-prático’, para que a objetividade restante permita a criação de trabalhos que gerem valor. No entanto, tanto o ‘artista’ – não-prático – quanto o ‘mecânico’ – funcional – querem gerar valor, e a separação desses dois pólos afastou a Qualidade real de qualquer trabalho humano, tanto artístico quanto operacional.

A viagem pelos Estados Unidos não deixa de ser uma metáfora para a viagem psicológica paralela que envolve uma crítica dura às instituições e aos parâmetros do que é loucura e razão – parâmetros que estreitam limites intelectuais e filosóficos, e que escondem a faceta humana onde as verdadeiras paixões, tanto as belas quanto as horrendas, estão guardadas.


“Provavelmente era por isso que ele sentia uma afinidade tão grande por tantos maus alunos de fundo de sala, cujas expressões de desprezo refletiam exatamente o mesmo sentimento que Fedro tinha em relação ao processo racional e intelectual como um todo. A única diferença era que eles desprezavam o processo porque não o compreendiam. Ele próprio estava cheio de desprezo, mas por compreendê-lo. Como não o compreendiam, eles não tinham remédio senão repetir a matéria e lembrar-se disso com amargura durante o resto de suas vidas. Fedro, por sua vez, sentia-se fanaticamente obrigado a fazer algo a respeito.
(...)
Formas e maneirismos – detestados pelos melhores, adorados pelos piores. Anos e anos, décadas e de´cadas de ‘leitores’ de primeira fila, com sorrisos fingidos, brandindo canetas bonitas, tudo para conseguir o seu A aristotélico, enquanto aqueles que possuem a verdadeira aretê ficam em silêncio, sentados lá no fundo, imaginando o que há de errado com eles, que não conseguem gostar dessa matéria.”




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