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TESOUROS DOS QUADRINHOS
Clássicos absolutos das HQs, de todas as épocas e estilos.
Por Daniel Salomão Roque

GHOST WORLD, de Daniel Clowes (1993-1997)

Daniel Clowes, ao lado de gente como Peter Bagge, Charles Burns e os irmãos Hernandez, é um dos mais prestigiados expoentes dos quadrinhos independentes norte-americanos contemporâneos, e talvez seja o mais "ianque" (no bom sentido) de toda essa turma. A comparação entre o seu estilo e o do cineasta David Lynch já se tornou um dos grandes clichês da crítica especializada, mas não deixa de fazer sentido: tanto um quanto o outro nutrem uma obsessão desvairada pelos cacoetes da cultura popular estadunidense - lanchonetes, super-heróis, rockabilly, Disneylândia, sitcoms, baseball, Hollywood clássica, subúrbios tranqüilos repletos de enormes casas com cerquinhas brancas - e, consequentemente, pela aterrorizante bizarrice oculta por trás desses alegres ícones: serial killers, armas de fogo, massacres estudantis, competitividade doentia, snuff movies, pornografia, etc. Se por um lado os trabalhos mais herméticos do cartunista soam como equivalentes quadrinhísticos de filmes como "Eraserhead" e "A Estrada Perdida", por outro seus momentos mais acessíveis exalam um tipo de melancolia muito peculiar (sem nunca abandonar a esquisitice generalizada, é claro). "Ghost World" é um desses momentos.

Ao ler esta fabulosa graphic novel, o leitor deve esperar tudo, menos uma "história" convencional. Ou melhor: fazendo um paralelo grosseiro com a literatura, "Ghost World" está muito mais para a crônica do que para o romance. Sua narrativa não é composta por um conflito que vai se resolvendo ao decorrer das páginas, mas sim por um sem-número de enfoques em situações cotidianas, que por sua vez são atropeladas bruscamente por outras, nunca nos fornecendo sequer uma solução concreta - tal como a vida. Este emaranhado de flashs paradoxais, tão banais quanto insólitos, é centrado no dia-a-dia de duas garotas, Enid Coleslaw (anagrama de Daniel Clowes) e Rebecca Doppelmeyer, que não por acaso são amigas de infância e possuem uma sagacidade incomum às adolescentes de sua faixa etária. Ambas acabaram de concluir o colegial e enfrentam um dos períodos mais turbulentos da trajetória de um ser humano, isto é, aquele começo de vida adulta em que somos esmagados por uma infinidade de incertezas, pela falta de perspectivas e pela mais cruel das dúvidas: o que fazer de agora em diante? As protagonistas ainda não encontraram respostas para estes anseios, e, talvez por medo de planejarem seus rumos, preferem passar o tempo de forma ociosa ou zombando da mediocridade alheia.

Deste ponto em diante, somos agraciados com as mais diversas anomalias culturais e sociais: humoristas fracassados de TV; padres pedófilos; jornalistas imbecis; um casal de velhinhos satanistas; um astrólogo pervertido; um nerd de sexualidade duvidosa; um punk de boutique que resolve se tornar um yuppie endinheirado...ninguém é poupado das observações e comentários impiedosos das meninas, nem mesmo uma ex-colega de classe, outrora a "mais popular" da escola e alvo principal das cantadas masculinas do colégio, que se transforma numa aberração disforme devido a um imenso tumor que surge em seu rosto. Aliás, quem já teve a oportunidade de conferir o autor do gibi sendo entrevistado com certeza sabe o quanto esta obra-prima é pessoal: Clowes costuma contar que sua paixão pelos quadrinhos é oriunda da infância, quando ele nem mesmo sabia ler e folheava a coleção do irmão mais velho; segundo seus depoimentos, passava horas olhando para as revistas e imaginando como seriam as histórias nelas impressas... de acordo com sua cabeça de criança freak, um casal se beijando, por exemplo, se transformava em duas pessoas se mordendo. Tal qual seus personagens, o cartunista sempre enxergou as pequenas coisas do cotidiano sob a ótica mais estranha que se possa imaginar.

"Ghost World" é o tipo de gibi que pode ser entediante para quem considera os quadrinhos um mero escapismo, mas é uma ótima pedida para todos aqueles que enxergam as reais potencialidades desta mídia e também para pessoas que não fogem de obras que escancaram sem concessões nosso lado patético e idiossincrásico. Levando em consideração que todos nós fomos, somos ou seremos adolescentes um dia, é quase impossível que o leitor não se identifique com as protagonistas, e muito provavelmente é esta a razão pela qual muitas pessoas não gostam da trama, já que a maneira como Clowes obtém estes resultados passa longe da condescendência.

Publicada originalmente em pequenos capítulos espalhados por oito edições da revista Eightball (editada por Clowes e distribuída pela Fantagraphics), a HQ logo foi encadernada num volume único, tornando-se um dos maiores êxitos artísticos e comerciais dos anos 90. Por incrível que pareça, a obra permanece inédita no Brasil; contudo, sua simpática adaptação cinematográfica, dirigida por Terry Zwigoff, produzida por John Malkovich e estrelada por Thora Birch, Scarlett Johansson e Steve Buscemi, chegou a ser lançada em DVD nas bancas de todo o país.




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