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Uma Noite Sobre a Terra

Por Filipe Chamy

Uma noite sobre a Terra
Direção: Jim Jarmusch
Night on Earth, EUA, 1991

O diretor deste longa episódico, Jim Jarmusch, tem uma carreira estável e de produções geralmente parecidas; por isso é difícil entender por que é um nome tão pouco conhecido. Se alguém quer diversão, veja uma obra dele e lá estará. Se quer um grande trabalho técnico, também pode sair contente. Deseja ver personagens bem compostos?, eis um cineasta indicado. Enfim, a lista de méritos é grande e qualquer elogio a uma obra como Uma noite sobre a Terra vai parecer nada diante da beleza do filme, uma comédia tão lindamente projetada que é impossível não sorrir várias vezes ao conferi-la em cada plano e cena — e não crer realmente que vimos uma pequena amostragem dos tipos, nacionalidades e gentes que habitam nosso planeta. Vamos às divisões, claro que não a pé.

Los Angeles – Uma madame toma um táxi, e a motorista (uma moça simples e masculinizada) bate papo com ela durante a viagem. Jarmusch usa fatos simples como esse para desenvolver belíssimos estudos de personagens: a conversa brota, vai sendo continuada sem importância, apenas para não deixar o silêncio vencer na monotonia da corrida. E nesse ritmo as pessoas vão se conhecendo, se entendendo, se respeitando. E conhecemos a diferença de personalidades que torna naturalmente crível uma mulher que afirma categoricamente nada querer com promessas de entrar com tudo no cinema: a garota que guia o carro quer se especializar em mecânica, a despeito do convite da senhora.

Nova Iorque – Um rapaz precisa tomar um táxi à noite, mas ninguém pára quando o avista — a má vontade talvez seja por ele ser negro. O fato é que ele não consegue veículo algum, até que avista um senhor bem simpático que estaciona seu táxi para ele entrar. Só que o senhor era um imigrante completamente lost in translation (Sofia Coppola é jarmuschete assumida) e vive avoadamente na babel americana. O homem ainda foi palhaço de circo e dirige horrendamente, sendo que seu passageiro decide conduzir o táxi para chegar inteiro ao destino. Os dois ficam amigos e trocam experiências e histórias ainda com uma terceira pessoa, que surge inesperadamente e tem relação com um deles.

Paris – Um motorista afrodescendente (é, o mundo é pequeno... para as raças, pelo menos) briga com dois racistas — de sua etnia — que infestaram sua paciência com piadas bestas. Após expulsá-los do veículo, leva em seu carro uma moça, que descobre atônito ser completamente cega. É uma deliciosa inversão de papéis, o taxista se distrai e atrapalha com coisas que lhe estão debaixo dos olhos, enquanto a cega prova ver mais e ser mais capacitada que qualquer outro par de olhos descerebrados que pululam por aí.

Roma – Um taxista italiano, que adora matraquear e é extremamente expansivo e inconveniente, recebe em seu carro um religioso que não é amigo de uma discussão. Isso não impede o animado chato de confessar todos os seus pecados, problemas e casos para o desanimado ouvinte forçado — que acaba empacotando ali mesmo, de uma morte súbita, talvez para fugir das narrações do condutor.

Helsínquia – No talvez único segmento majoritariamente dramático da fita, um taxista melancólico conta a três passageiros que a vida deles poderia ser bem pior do que eles praguejam. Sua vida é um amontoar de desgraças, e ele segue dirigindo seu carro rumo à sobrevivência do dia seguinte. Não há o que falar, só o que se lamentar. Um final triste que coroa uma noite alegre. Jarmusch acerta em cheio nos relatos simples e eficientes, limpos e engraçados, primor de construção sólida. Não há nada em excesso na película, tampouco algo falta. As atuações são brilhantes — Gena Rowlands genial como sempre, Winona Ryder em seu melhor papel, Benigni como Benigni, Armin Mueller-Stahl... —, a música de Tom Waits é perfeita, o filme é uma obra-prima e por aí vai. De táxi, óbvio.




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