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CANTORAS

Por Domingos Ruiz Júnior

Nara Leão

“Musa da Bossa Nova”, detentora dos joelhos mais bonitos do Brasil, Nara Leão redirecionou, no começo da década de 1960, a postura da mulher-artista na música brasileira. De violão em punho, mas trajando minissaia, de voz mansa e curta, mas dotada da veemência necessária para interpretar os sambas inconformados vindos dos morros cariocas, era, á primeira vista, a contradição em pessoa.

Aparentemente, apenas. Leitora voraz do existencialismo (e de outros vários – ismos então em voga) francês de Jean-Paul Sartre e admiradora dos sambas de Zé Kéti (“A Voz do Morro”, “Opinião”, “Diz Que Fui Por Aí”), Nara foi o leitmotiv para o “protesto ao protesto” (viva o samba de Roberto Silva !) de Marcos Valle e seu irmão Paulo Sérgio em “A Resposta” (1965): “Falar do morro de frente pro mar/Não vai fazer ninguém melhorar”. Era o recado da ala dita alienada da segunda dentição da bossa nova à turma que se reunia no famoso apartamento da família de Nara na Avenida Atlântica, em Copacabana.

A seguir essa trajetória, somada ao casamento com o cineasta alagoano Carlos Diegues (“Ganga Zumba” e “Xica da Silva”, dentre outros), ninguém cogitaria a hipótese de Nara gravar, quase 15 anos depois, um disco-tributo às canções de Roberto e Erasmo Carlos. Era primeiro grande nome da “classe alta da MPB” a dedicar um trabalho inteiro à obra essencialmente romântica de Roberto e Erasmo, solenemente desprezada, quando não execrada, pela elite artística. Maysa, no entanto, tenha sido talvez a pioneira. Gal Costa era tropicalista, e por isso, quase tudo era permitido, enquanto Elis Regina ainda está definindo o seu estilo. Maysa incluiu no repertório de seu show arrasa-quarteirão na choperia Canecão a seminal “Se Você Pensa”, também integrante do disco ao vivo lançado naquele ano de 1969, “Canecão apresenta Maysa”, posto no mercado pela gravadora Copacabana-EMI.

Nara havia morado em Paris no início dos anos 1970, deixando um pouco de lado a música e dedicando-se a cuidar dos filhos Isabel e Francisco e aos afazeres domésticos. Em suma, tornou-se dona-de-casa, mas em Paris, o que pode ter proporcionado a vivência das situações prosaicas muitas vezes descritas nas músicas de Roberto e Erasmo Carlos.

O namoro com os clássicos carlistas começou com a gravação de “Meu Ego”, juntamente com Erasmo Carlos, no belíssimo disco de duetos “Os Meus Amigos São Um Barato” (Philips/Phonogram/Universal-1977), álbum que por todas as participações especiais de Tom Jobim, Chico Buarque, Carlos Lyra, Edu Lobo, João Donato e outros seis cantores igualmente especiais, já mereceria ter lugar entre os dez mais da MPB.

No ano seguinte, foi cometido o outrora sacrilégio: Nara Leão dedica todo um disco ás canções de Roberto e Erasmo Carlos. “...E Quero Que Tudo Mais Vá Para o Inferno”, lançada também pela antiga Philips, ganhou ainda versão em espanhol, dirigida ao mercado latino-americano, grande receptor daquilo que tenha a assinatura de Roberto Carlos. O título do disco, homônimo da canção emblemática, não se manteve nas reedições em CD, e foi alterado para “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”, devido ás restrições de Roberto Carlos à sua própria canção, abolida de seu repertório até ordem contrária. Em 1995, quando da primeira reedição, a faixa, que abre o disco, foi mantida, mas, na segunda, em 2002, no lançamento das caixas que contêm a discografia completa de Nara, a canção foi extirpada. “...E Que Tudo Mais Vá Para o Inferno”, portanto, passou a se chamar “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” e contar com 11 das 12 faixas originais.

Apesar de afirmar, no texto da contracapa do disco, que sempre teve prazer em ouvir as músicas de Roberto e Erasmo, cantá-las foi tarefa difícil, bem mais árdua que dizer “yeah!”, juntamente com o autor Gilberto Gil, em “Sarará Miolo”, presente no disco anterior. A tímida e reservada Nara sempre cultivou certo distanciamento pessoal em relação àquilo que cantou e, por isso, penou um bocado para cantar coisas simples e sinceras como “Eu te proponho/nós nos amarmos”, versos de “Proposta”.

Para decidir as canções que integrariam o repertório, Nara contou com a ajuda do conterrâneo e amigo de toda vida Roberto Menescal, produtor e um dos arranjadores do disco. Privilegiou-se a faceta mais positiva e alegre de Roberto e Erasmo, em detrimento da chamada “dor de cotovelo”. Os arranjos foram divididos com o “chorão” Maurício Carrilho, exímio violonista. É linda a abordagem que foi dada à autobiográfica “O Divã”, aquela em que o Rei nos conta da infância capixaba passada em Cachoeiro do Itapemirim.

“Cavalgada”, canção ícone da “fase motel” de Roberto, tornou-se uma delicada bossa, perfeita na voz pequena de Nara, pontilhado pelo piano engenhoso de Antônio Adolfo. “As Curvas da Estrada de Santos” ultrapassou o “soul” brasuca de Roberto para alcançar o blues do Mississipi norte-americano. O piano Fender Rhodes de Antônio Adolfo perpassa por “Além do Horizonte”, sempre á frente do tema, que se repete de maneira cíclica, buscando o que possa estar onde não conseguimos enxergar. “Dia de Chuva” é antecessora do rock-fofura de grupos como Pato Fu, cuja vocalista, Fernanda Takai, também de voz pequena, já foi comparada a Nara Leão.

Acompanhada apenas pelo piano acústico de Antônio Adolfo, a mística “A Cigana” toma outra dimensão, de intimidade dilacerante. “Como É Grande o Meu Amor Por Você”, única faixa de autoria exclusiva de Roberto Carlos, afirmou-se como um autêntico bolero. Ficou ainda mais sincera, caso ainda isso fosse possível depois da própria interpretação de Roberto. O disco se encerra com certo clima de festa, em ritmo samba-funk, à la Banda Black Rio, com baixo bem marcado e guitarra com efeito “wah-wah”, aplicados a “Se Você Pensa”.

Nara gravou ainda dos Carlos, “Café da Manhã”, em 1980, no disco de duetos “Erasmo Carlos Convida...” (Polydor/Phonogram/Universal) mas infelizmente não chegou a homenagear o Rei com uma personalíssima interpretação acanhada de “Brotinho Sem Juízo” (1960), a primeira impressão do conservador Roberto Carlos sobre sua contemporânea Nara Leão: “brotinho tome juízo/vê se cobre esse joelho”. Teria sido sublime.



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