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Cassandra Rios: A Rainha da Literatura Erótica

Por Judson Ovídio, especialmente para a Zingu!

Programa humorístico TV Pirata, 1988.Em um dos seus melhores momentos, a inspirada trupe de atores apresentou o quadro Tróia profunda, gozação com a cidade mitológica e o título original do clássico pornô americano Garganta profunda(Deep throat). O quadro era mais ou menos assim(afinal já se passaram 19 anos e não me recordo de tudo): estavam em cena Claudia Raia , Cristina Pereira e Ney Latorraca e acho que Diogo Vilela também. O cenário era um templo grego, a toda hora um dos atores ia para a frente da câmera e bradava: Cassandra! Prontamente ouvia-se barulho de trovões.

A última a fazer isso, Cristina, explicava: “pera aí, eu fui a única que não falei: Cassandra!” Exasperado, o afetado personagem de Ney dava um chilique: “quem é essa perua, afinal?” Cláudia prontamente explicava: “ela escreve romances eróticos com o pseudônimo de Cassandra Rios, entre eles, O jumento e a troiana”. O quadro atestava a popularidade que a escritora Cassandra Rios ainda desfrutava nos anos 80, embora tivesse experimentado seu auge de carreira nos anos 60/70, quando vendia 300 mil exemplares por ano.

Descobri seus livros durante a minha adolescência, no final dos anos 80. Quando meus colegas me viam com algum livro dela, não resistiam em fazer piadinhas, dizendo coisas do tipo: “lendo livro de putaria, né?”

De fato, as capas dos romances de Cassandra Rios eram famosas por trazerem fotos e desenhos de garotas nuas. Mas chamá-la de pornográfica é injusto e próprio de quem não leu seus livros. Apesar da ousadia presente em suas páginas, onde não faltavam adultério, perversão, assassinatos e o freqüente lesbianismo, leitores atentos perceberiam mais coisas na entrelinhas. Veriam uma mulher culta, que dominava a arte de escrever e aproveitava suas personagens atormentadas para discutir a condição feminina no século 20 e seus dilemas em um mundo machista e hipócrita.

PROFETISA

A autora paulista nasceu em 1932, filha de espanhóis e foi batizada como Odete Rios. Seu pseudônimo veio da mitologia grega: Cassandra era a profetisa condenada a prever mas não poder impedir tragédias, pois ninguém acreditava nela.

Felizmente, Odete teve mais sorte que sua xará e recebeu da mãe, Damiana Rios, um voto de confiança e dinheiro para lançar em 1948, seu primeiro romance, A volúpia do pecado. Com apenas 16 anos, Odete dava lugar a Cassandra e conforme escreveu para a orelha de uma das últimas edições do livro, durante o processo de escrevê-lo algumas vezes deixou de ser quem era para ser quem as pessoas gostaria que fosse.

A volúpia do pecado já apresentava uma amostra do que estava por vir: duas adolescentes (Lyeth e Irez) se conheciam e tornavam-se muy amigas. Aos poucos, se descobriam perdidas em uma paixão tempestuosa e sufocante. Elas têm brigas de ciúme, se “casam” em frente a um presépio e experimentam noites calientes(em uma delas Irez passa leite morno da boca para a vagina de Lyeth). Preocupadas com essa “amizade”, as mães separam as garotas. No final do romance, Cassandra, através do personagem Dr Fabiano, dá uma longa explicação psicológica do que levou as meninas a desenvolverem tendências lésbicas. Mesmo redescobrindo o amor com Mário, Lyeth se suicida ligando o gás e, prestes a morrer, delira e chama o nome da sua eterna amada, Irez. Precoce, Cassandra causou celeuma na época, mas não se intimidou e continuar a escrever, tornando-se cada vez mais ousada. Curiosamente, ela pediu à mãe que nunca lesse seus romances e, dizem, Dona Damiana Rios morreu sem ler uma linha sequer do que a filha escreveu!

MORALISTA

Apesar de considerada uma precursora da literatura GLS, Cassandra Rios não costumava se assumir como homossexual em entrevistas e mantinha sua vida particular em segredo, lembrando sempre às pessoas para não confundirem autor com personagem. Cassandra, inclusive, afirmou ser moralista, assim como o dramaturgo Nelson Rodrigues (que ela adorava!), cujas obras transpiravam em doses cavalares perversões, crimes e machismo. Ainda assim, o autor de Engraçadinha e Os sete gatinhos, também se considerava um moralista.

Seguiram-se dezenas de outros títulos, esgotados em múltiplas edições: Macária, A sarjeta, O gamo e a gazela , A borboleta branca, As traças, Mutreta. Os leitores variavam das lésbicas excitadas que liam os livros às escondidas até os tarados de plantão, que se masturbavam com as descrições eróticas homo e heterossexuais dos romances. As capas muitas vezes caíam como luvas para títulos sugestivos. Em especial as da Editora Record, imbatíveis em matéria de apelação e que traziam também a emblemática fase A autora mais proibida do Brasil. Em uma das edições de Copacabana Posto seis- A madrasta havia a foto de um animado ménage à trois; A volúpia do pecado mostrava o desenho de uma mulher exibindo a bunda com um rio ao fundo. Tara, uma das minhas favoritas , trazia uma bela morena de costas, um homem e uma mulher negra, em um desenho que lembrava cartazes de filmes eróticos dos anos 70.

Alguns romances de Cassandra traziam situações semelhantes, em que uma garota se descobre lésbica e seduz mulheres mais velhas e às vezes casadas. Mas Cassandra também incluiu elementos de suspense e violência em suas tramas. Logo no início de Tara, uma garota era enterrada viva durante um ritual macabro. Seguindo essa linha, a personagem-título de Anastácia matava as mulheres com as quais se envolvia. Já Pascale, protagonista de A noite tem mais luzes, se transformava em Pierre, sendo uma espécie de Dr Jekyl e Mr Hyde!

Para Adriane Piovezan, autora da tese de mestrado Amor românticoX Deleite dos sentidos: Cassandra Rios e a identidade homoerótica feminina na literatura(1948-1972), o pioneirismo da autora “está em garantir o direito à existência ficcional das lésbicas como protagonistas, não como simples figurantes de uma história”.

Obviamente esse conturbado universo lesbiano não cheirou bem para os militares no comando da ditadura instalada no Brasil a partir da década de 60. Cassandra perdeu as contas de quantas vezes foi intimada a depor e dar explicações sobre suas personagens. Em 1974, quase toda a sua vasta obra (mais de 40 romances) foi retirada das livrarias. Nesse período, a autora se refugiou atrás dos pseudônimos Lawrence Rivers e Oliver e continuou a escreveu tramas eróticas, mas sem homossexualismo

CRÍTICA

Os críticos se dividiam sobre a obra de Cassandra. Muitos a consideravam uma autora de romances apelativos e sem valor. Paraliteratura, sentenciou o crítico literário Waldenir Caldas. As autoras de O que é pornografia (um dos títulos da coleção Primeiros Passos da Ed Brasiliense, lida por 11 em cada 10 universitários brasileiros nos anos 80/90), Eliane Moraes e Sandra Lapeiz, aclamavam como expoentes da nossa literatura erótica Cassandra e sua contemporânea Adelaide Carraro-autora de romances onde aparecia o lado podre da alta sociedade, sendo o mais popular aquele que você leu na oitava série, mas talvez não lembre, O Estudante, um Christiane F de calças.

Ainda em O que é pornografia, as autoras fizeram um comentário irônico: enquanto Adelaide e Cassandra eram enxotadas pela crítica literária para “um canto”, dava-se muito espaço para escritores como Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Hilda Hilst, cujas obras também excitavam a imaginação dos leitores.

“Na medida em que ela foi a principal (senão a única) autora do gênero em nosso país durante trinta anos, não se pode desconsiderar sua importância no processo de (re)definição dos papéis sexuais entre significativo número de mulheres leitoras no Brasil contemporâneo naquele período” (final dos anos 40 até o início dos anos 70), lembra Adriane.

De qualquer forma, seus livros eram best-sellers: Cassandra chegou a atingir a marca de 1 milhão de livros vendidos nos anos 70. Na época, façanha desse porte era privilégio apenas de Jorge Amado. Além dele, a autora tinha entre seus admiradores Marcelo Rubens Paiva, Cazuza e Fernanda Young.

CINEMA

No final dos anos 70, diretores e produtores despertaram para as ótimas bilheterias que filmes inspirados em romances da “autora maldita” poderiam trazer. Segundo declarou em entrevista ao Pasquim, nessa época Cassandra foi sondada pelo catarinense João Callegaro- figura respeitada na boca-do-lixo paulista, diretor de O pornógrafo, com Hugo Carvana- sobre uma possível adaptação de Mutreta para as telonas que acabou não acontecendo.

A paranóica foi o primeiro romance de Cassandra a chegar ao cinema, com o título Ariella, dirigido por John Herbert. Assim como ocorreu com algumas peças de Nelson Rodrigues filmadas por Braz Chediak , críticos e fãs de Cassandra execraram os filmes baseados em seus textos, tachando-os como pornográficos e aquém do talento da autora.

Felizmente, Ariella foi um estrondoso êxito de bilheteria, graças a um público mais interessado em entretenimento, que soube apreciar a mistura de erotismo, drama e suspense, orquestrada pelo competente Herbert e contando com o carisma de Nicole Puzzi, Christiane Torloni e Lúcia Veríssimo-estreando no cinema-, além de Herson Capri, Laura Cardoso e Sérgio Hingst. Dois anos depois Herbert adaptou outro livro de Cassandra, Tessa, a gata, também trazendo Nicole no papel-título e com um elenco, digamos, eclético, que incluía as divas da pornochanchada Zaira Bueno e Patrícia Scalvi, as então chacretes Rita Cadillac e Índia Amazonense, o hoje diretor de novelas Jacques Lagoa, além de Francisco di Franco e Carlos Kroeber. A crítica, obviamente, esculachou de novo e aliás, dizem que, dessa vez, a própria Cassandra não ficou muito feliz com a versão feita por John Herbert para seu livro.

Provavelmente a mais bem cuidada adaptação para o cinema de um texto de Cassandra foi A mulher, serpente e a flor. Com roteiro do conhecido autor de novelas Benedito Ruy Barbosa e dirigido por J Marreco, o filme contou com bons atores (Juca de Oliveira, Eduardo Tornaghi e o saudoso Luíz Armando Queiroz).

A trama girava em torno de uma garota que abandonava o noivo minutos antes do casamento e fugia para uma casa de praia. Chegando lá, inicia affair com uma mulher misteriosa , enquanto coisas estranhas acontecem, em uma envolvente atmosfera de suspense e horror, apimentada por várias cenas eróticas.

LIVROS MÍSTICOS

Nos anos 80, Cassandra continuou a escrever livros, alguns de caráter místico como Entre o reino de Deus e o do Diabo. Em 1986, chegou a ter um programa de rádio e tentou carreira na política, mas não conseguiu se eleger.

Desde então, pouco se ouviu falar dela. Em 1990, foi ao programa de Jô Soares. Em 2001, concedeu uma longa entrevista para a revista Trip para mulheres-TPM. No final da vida, trabalhava como revisora de livros e dedicava-se à pintura. Faleceu de câncer, em 2002, aos 69 anos, no Dia Internacional da Mulher, 08 de março, pouco antes de lançar oficialmente sua autobiografia Mezzamaro, flores e cassis -que curiosamente não falava de sexo e relatava principalmente suas experiências como escritora.

Dois livros de Cassandra foram relançados pela Editora Brasiliense, além do inédito Crime de honra. Quem ficou curioso e realmente quiser conhecer sua vasta obra, é só procurar nas lojas de livros usados, os populares sebos, onde seus títulos podem ser facilmente encontrados, em variadas capas e edições.

Entrevista

Nicole Puzzi

Estrela do nosso cinema nos anos 70/80, a atriz paranaense Nicole Puzzi participou de dezenas de filmes, entre eles Eros, o Deus do amor ; Eu; Gabriela; As sete vampiras, além de Ariella e Tessa, a gata, adaptações para a telona de romances de Cassandra Rios dirigidas por John Herbert. Amiga da escritora, Nicole guarda lembranças de uma mulher corajosa e inteligente. Depois de uma temporada na Itália, onde fez cursos de teatro, produção e expressão corporal na badalada Cinecittà, a atriz voltou a morar no Brasil e conversou com a Zingu! sobre a sua convivência com uma das mais polêmicas escritoras brasileiras.

Z- Dizem que Cassandra não gostou das adaptações para o cinema feitas pelo diretor John Herbert para seus romances A paranóica( que virou Ariella, nome da personagem principal) e Tessa, a gata. Ela comentou sobre isso com você?
NP- Não comentou, mas era tão óbvio que os livros eram superiores àsadaptações que nem precisava. Ela adorava A Paranóica e só aceitou filmar quando eu assinei o contrato.
Z- Parece que, assim como as adaptações das peças de Nelson Rodrigues feitas por Braz Chediak para o cinema , a crítica também não gostou de Ariella e Tessa...
NP- Todo mundo metia o pau no cinema nacional, isso era normal. Os supostos intelectuais abominavam qualquer coisa proveniente da Cassandra, não se esqueça que ela assumia a própria homossexualidade sem problemas numa época que isso era "muito feio".
Z- Tessa, a gata contou com a participação das chacretes Rita Cadillac e Índia Amazonense. Você lembra delas?
NP- Eu não me lembro bem, fazia um filme atrás do outro, não curti essa adaptação, muito inferior a Ariella, então não assisti o filme. Se a Rita participou, não me recordo, pois não contracenei com ela.
Z- O nome de Rita está na ficha técnica desse filme(disponível no Internet Movie Database-IMDB), na qual também constam, além de você, mais duas pessoas com o sobrenome Puzzi.
NP- Acho que era participação de alguma irmã dando uma força para a produção. Não assisti o filme depois de pronto. Só vi alguns copiões.
Z–Segundo uma biografia sua, lançada nos anos 90- Infelizmente não lembro de jeito nenhum nem o título nem o nome do autor!-, o ator Herson Capri ficou nervoso para gravar uma cena erótica com você em Ariella.
NP -Esse livro não é de minha autoria, o autor é outro, é um equívoco. E sobre ele eu não falo porque não corresponde a minha realidade. Não vale a pena ser lido. O Herson sempre foi um ator extremamente profissional e fizemos belíssimas cenas neste filme. Nunca houve nenhum problema entre a gente, nem em cena, nem fora.
Z-Você teve dificuldades em fazer as cenas eróticas ?
NP-Devo ter levado numa boa, já que havia aceito fazer os filmes. Nunca sofri com essas cenas, visto que eram simuladas.
Z-Uma coisa que fascina em Cassandra é que ela parecia um pouco contraditória, pois escrevia livros sobe lesbianismo, mas não se assumia nas entrevistas que dava.
NP- Claro que ela se assumia. Lutava pelos direitos dela e isso a fez detestada pela direita. Fui sua amiga com muito orgulho. Vez ou outra saímos para jantar, eu com meu namorado e ela com a namorada dela. Só não se beijavam em publico porque seriam presas.
Z- Não há muitas entrevistas disponíveis com Cassandra, mas em todas que li, em nenhuma ela se assume efetivamente dizendo coisas do tipo: sou homossexual, sim e apoio o movimento gay, inclusive tenho uma companheira...você sabe, as frases típicas ditas pela maioria das famosas que se assumiram. Nunca vi ela declarar isso em entrevistas. Em uma das últimas, para a revista TPM, em 2001, Fernando Luna perguntou qual era a opção sexual de Cassandra Rios e ela preferiu não falar.
NP-Ela assumia naturalmente, inclusive apresentava a garota como sua namorada. Quanto às entrevistas, na época não se podia falar muito sobre isso. Não esqueça que a ditadura pegava no pé dela por causa dos seus livros, então creio que fosse melhor não falar muito. É bem verdade que Cassandra era discreta e tinha direito de preservar sua vida íntima. A quem interessava o que ela fazia na intimidade? Gentil e simples, acredito que não gostasse de aparecer devido a sua opção, mas sim através de sua arte.



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