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Dossiê Carlos Motta

RUBEM BIÁFORA POR CARLOS MOTTA

Por Carlos Motta
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Só comecei a ter contato pessoal e profissional com Biáfora quando passei a trabalhar na então Página de Arte de O Estado de São Paulo, hoje Caderno 2. Era para eu ser um dos responsáveis pela projeção de filmes no auditório do jornal, projeto do jornalista e documentarista Rubens Rodrigues dos Santos (diretor de Roteiro dos Pampas). Esse projeto não chegou a ser concretizado. Biáfora tinha lido uma crítica minha do reprise de Tico-Tico no Fubá, sobre o compositor Zequinha de Abreu, fita da qual particularmente eu gostava, e achou que eu era uma pessoa que poderia trabalhar com ele (devo dizer que Biáfora não era dos que mais apreciava o filme). Na época ele fazia principalmente as Indicações da semana, como era chamada as estréias nos cinemas. Tarefa trabalhosa, para informarmos o público o mais corretamente possível. Utilizávamos material enviado pelas distribuidoras, o Motion Picture Herald e os catálogos de filmes europeus. A seção era fechada no sábado e isso permitia que ele descesse até as oficinas e examinasse as chapas de impressão dos anúncios dos cinemas, para verificar se havia alguma mudança de última hora na programação. Então passei a trabalhar como apoio, tratando do noticiário das agências estrangeiras, eventuais entrevistas, críticas- o crítico titular, até 1967, era Alfredo Sternheim, que eu já conhecia dos tempos do Cine Clube Dom Vital- e também as indicações em caso do impedimento dele.

Minha cultura cinematográfica começou lendo a revista A Cena Muda, da qual mais tarde fui correspondente. Os críticos que eu lia eram Moniz Viana (de quem Biáfora era amigo, a atriz Amiris Veronese fez um papel em O Quarto) do Correio da Manhã e Almeida Salles, também de O Estado. Não tive acesso á fase de Biáfora na Folha da Tarde. Também já havia feito crítica no Shopping News de 61 a meados de 65, primeiro com Álvaro Malheiros e Luiz Antônio de Macedo, depois sozinho. Os amigos mais próximos de Biáfora eram os críticos José Júlio Spiewak, Jacob Timoner (também advogava), Rubens Stoppa (tinha sete filhos), Sternheim, Ely Azeredo mais José Fioroni Rodrigues, nosso especialista em cinema japonês, o diretor e crítico Flávio Tambellini e Walter Hugo Khouri, de cuja obra Biáfora foi o mais fiel divulgador e analista.

Claro que depois, com o convivência, assimilei algo dele, mas sem deixar de manter meus gostos e preferências. Em 67, quando a revista Filme e Cultura realizou uma enquête sobre as 20 maiores obras do cinema. Votei em O Anjo Azul de Sternberg como a melhor (depois Biáfora me disse que tinha problemas de roteiro) e ele num filme grego inédito aqui, As Jovens Afrodites (62). Em outra enquête, de filme s brasileiros, Biáfora elegeu Noite Vazia, de Khouri (votei em Ganga Bruta, de Humberto Mauro).

Biáfora tinha uma visão extremamente pessoal do fenômeno cinematográfico. E mantinha intactas suas convicções. Ely Azeredo faliu em “coragem de ser”. Afinal, remar contra a maré, ir contra o pré-estabelecido requer firmeza, plena convicção e até sangue frio. Biáfora não privilegiava modismos. Não apreciava o cinema francês de antes da Segunda Guerra (Marcel Carné, entre outros cineastas), o engajamento do cinema soviético, o neo-realismo. Preferia o cinema expressionista alemão (Fritz Lang, notadamente, em lugar de F.W. Murnau). Tinha afinidade com o cinema de William Wyler, para citar um exemplo. Ravina, seu primeiro filme tinha influências dele. O Morro dos Ventos Uivantes era seu filme de cabeceira. Assistiu-o 51 vezes. Quando Merle Oberon, estrela do filme, esteve em São Paulo na década de 70, eu lhe apresentei Biáfora, contei isso e ela exclamou: “-oh, what a darling !”.

Nosso companheiro de redação Frederico Branco, por ocasião do pensamento de Biáfora, lembrou sua memória enciclopédica, respondendo a qualquer dúvida de algum colega sobre o cinema americano, notadamente os anos 30 e 40. Uma característica de Biáfora, disse era não se render ás facilidades dos elogios. Disse também que era ao mesmo tempo introvertido e expansivo.

A propósito de crítica Biáfora dizia: crítico não gosta, crítico reconhece, colhe dados. Isso ia ao encontro do ponto de vista contrário ao que se dizia ser “critério de qualidade”. Biáfora era um apaixonado pelos atores. O público, dizia, procura histórias que possam entender de imediato e atores que correspondam a seu gosto ou necessidade de evasão, fantasiar. A interpretação é um dado importantíssimo e de certo modo único e insubstituível no processo de criação cinematográfica. E acrescentava: por mais que existissem ou fossem procurados outros parecidos e semelhantes, cada interprete e cada tipo são únicos, inimitáveis e insubstituíveis. Jamais poderia haver um igual ao outro, independendo do talento. Cada um, fosse uma Garbo, um Emil Jannings (de Anjo Azul) ou intérpretes maneiristas como Marlon Brando, ou limitados, como Sophia Loren (dizia que ela ficava melhor nos papéis de mulheres comuns, do povo, como os de Anna Magnani, do que de sedutora), só eles eram capazes de fazer o que fazem nos papéis que lhes eram dados.

A família dele o levava muito ao cinema. Garbo era seu grande ídolo, mas a primeira impressão indelével foi Marlene Dietrich em Marrocos (31), de Josef Von Sternberg. O cineasta esteve em São Paulo e Biáfora conversaram no jardim japonês construído por Walter Hugo Khouri (que o hospedou), em seu apartamento de cobertura á rua Martins Fontes. Entre os tópicos da conversação, os figurinos de Travis Banton para Marlene em O Expresso de Shangai, mas percebi que Joe (era como Khouri o chamava) não era de falar muito. Dizia que tudo o que teve a dizer sobre a sua carreira já havia feito em seu livro Fun on a chinese laundry, editado em 1965. Mais surpreendentemente e proveitoso foi o encontro de Biáfora com William Wyler. Num dia de fevereiro de 1973 o crítico Ademar Carvalhaes (prematuramente falescido) passava em frente ao MASP, na Paulista, e viu um casal de turistas, nele reconhecendo Wyler (ela era sua segunda esposa, Margaret Tallichet, que deixou o cinema para casar com ele). Marcaram um encontro, Carvalhaes nos chamou e foi assim que tivemos uma entrevista particular (mas talvez a mais concorrida da história, com direito a fotos, uma delas da entrevista propriamente dita e outra tipo álbum de família, numa escada do Othon Palace, onde o casal se hospedou).

Nem precisaria falar de sua capacidade de observação- sem o que, claro, não seria crítico nem cineasta. Dizia que eu era um Mercúrio, devido á minha tendência de andar apressado. Fazia sentido, Mercúrio era o mensageiro dos deuses, tinha asas nos pés. E é o planeta regente do signo de Gêmeos, que era o de Biáfora e também é o meu. Já quarentão, Biáfora teve a felicidade de se casar com sua alma gêmea, Eva, moça de ascendência portuguesa, de personalidade cativante, esposa e amiga, com ele até o fim. Um dia, falando com ela sobre Biáfora, a propósito de alguma coisa que não me lembro exatamente, eu disse: “ah, mas ele nem vai perceber”. “Humm, isso é o que você pensa, respondeu ela”.

Biáfora cedo teve intimidade com o piano. Sabia tocar de cor, sem partitura, o tema musical de seu querido O Morro dos Ventos Uivantes. Lembro que adorava gatos. Tinha um, lindo, no grande apartamento dele, na Martins Fontes. Não lhe deu um nome. Referia-se a ele como o bichano. Ah, uma última lembrança. Também sabia cozinhar. Sempre lembro que um dia, visitando o casal, Biáfora começou a me explicar como preparar uma sopa usando aqueles tabletes de caldo de carne concentrado: ...você pega um boizinho...



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