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O Inquilino

Por Filipe Chamy

O Inquilino
Direção: Roman Polanski
Le Locataire, França, 1976.

Talvez o melhor trabalho de Polanski, O inquilino é a última parte de uma magistral trilogia temática dedicada a apartamentos e composta ainda por Repulsa ao sexo e O bebê de Rosemary. Dramas de personagens desajustados em ambientes pequenos e sufocantes, filmes tensos e detentores de perfeita técnica e condução narrativa. É de se lamentar que a carreira do diretor tenha enveredado por caminhos tão aquém de sua evidente competência, como se tivesse sido acometido pelas alucinações de suas crias.

O próprio cineasta faz o papel de Trelkovsky (— como negar sua aparência tão exótica, típica de um imigrante olhado com riso burlesco pela sociedade? —), um homem comum que quer alugar um apartamento para morar. Após uma breve conferência com a detestável e roliça zeladora (interpretada por Shelley Winters) e com um certo monsieur Zy (Melvyn Douglas), o senhorio austero e um tanto misterioso, o pacato sujeito passa a residir no imóvel. Tudo acabaria aqui, se uma mulher não tivesse se jogado da janela do apartamento pouco tempo antes — e por isso o lugar estava vago. A mulher não morrera, mas estava terrivelmente debilitada, mumificada num hospital após sair de um coma feroz. Trelkovsky vai visitá-la no hospital e conhece Stella (Isabelle Adjani), uma moça que supostamente é amiga da enferma e que diz estar terrivelmente abalada com o que lhe aconteceu; mas não apenas ela: da cama, do fundo das ataduras e amparos, a moribunda produz ainda umas palavras incompreensíveis e um profundo grito, como se suas entranhas se contorcessem auditivamente em forma de uma agonia extrema. Stella, abalada, sai do hospital amparada por Trelkovsky — que lhe diz ser amigo da agonizante — e vão tomar um café. A garota, de visual despojado e confusa psicologicamente, sente-se muito frágil com os rumos de sua vida. Vão ao cinema (onde a relação começa a tornar-se física), depois separam-se sem prenúncios de reencontros futuros.

E é aqui que de fato começa o papo todo. Trelkovsky atrai bizarrices e problemas, o senhorio fica bravo, a zeladora olha feio, os moradores lhe são hostis. Ele é simpático com todos, mas, para retribuir sua solicitude, apenas frieza. Quando não está com visitas indesejadas, o homem começa a pensar. E pensando, ele chega a beiras de abismos infinitos, nada se encaixa. Nesse meio tempo, morre a suicida, e isso só o confunde ainda mais. Trelkovsky começa a ficar preocupado com sua saúde mental e teme entrar no caminho do suicídio, sendo que tudo e todos parecem conspirar contra ele.

Eis que o homem começa a sofrer uma estranha metamorfose, transfigurando-se em uma outra pessoa, de personalidade e aparência completamente diferentes (?) das suas. Mas a metamorfose, paulatina, leva a uma conclusão que na verdade é o início. Nada de metalinguagem (ou metafísica): o que Polanski nos apresenta é um ciclo, o ciclo do horror na vida moderna. Pensamos que a questão se resume a uma série de coincidências, como a marca do cigarro e a bebida tomada no bar, mas não, a realidade é pior do que o sonho da ilusão. Uma peruca ou um salto alto às vezes podem soar ridículos, mas o contexto é de sofrimento e pesadelo, nada risível.

Trelkovsky, antes calmo e racional, agora é uma espécie de ente fantasmagórico habitante da tênue barreira entre a loucura e a injustiça. Stella ri e o consola como a uma criança, como se ela mesma não demonstrasse antes tantas ações pueris. A jornada rumo ao nada vai cada vez tornando-se mais concreta, e, afinal, descobrimos que o enigmático grito, da mulher no hospital (mas quem é essa mulher?, quase sabemos), é uma não-resposta, que serve como ponto-zero de uma infindável relação de absurdos que se sucedem ao mesmo tempo na vida terrena e na cabeça tumultuada dos seres que desfilam na tela.




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