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O Silêncio

Por Filipe Chamy

O Silêncio
Direção: Ingmar Bergman
Tystnaden, Suécia, 1963.

Não há quase nada de explicado em O silêncio. São dúvidas, questionamentos e inquietudes que permanecem insolúveis. E isso não é um defeito. É que o cinema de Bergman sempre foi pautado no conhecimento íntimo como maneira de reflexão exterior — se é que isso é possível —, e neste último capítulo da chamada Trilogia do Silêncio (completada por Através de um espelho e Luz de inverno) isso é um tanto quanto mais explícito. Estamos diante de algo que não se define melhor que “um grito visual mudo”.

Não cabe aqui resumir a história, pois não é um filme de acontecimentos, mas de momentos e personagens. Anna e Ester, duas irmãs que vivem no calor do desconhecimento mútuo, incompreendidas em suas vidas principalmente por elas próprias. O filho de Anna, criança serena e imperturbável, algo ameaçadora. Por meio dessas três gentes, a sondagem psicológica vai sendo efetuada pelo diretor-roteirista, que parece se interessar e se perturbar pelas suas crias do mesmo modo como o espectador, que a tudo assiste sem poder alterar nada. Os rumos traçados das vidas na tela, tudo imutável e sufocante, uma realidade que enclausura qualquer sopro de fuga.

As mulheres e o menino estão hospedados (ou internados?) em um hotel semi-deserto em um país estrangeiro. A língua não é a maior dificuldade a superar — aliás, talvez seja a menor delas. Na tentativa de se expressar, o corpo é usado como algo que vale bem mais que um pedaço de carne, algo etéreo, provavelmente uma alma. Não há exatamente maldade no sexo; a mãe deita-se nua ao lado do filho, e adormece sinceramente, nada de lúbrico ou incestuoso. O incesto é insinuado na relação entre as duas moças, sendo uma ligação tão complexa que é complicado estabelecer qualquer tipo de afirmativa sobre o que elas representam uma para a outra.

Mas a dubiedade inerente a caracteres humanos está sim presente. Traição, infidelidade, o prazer de machucar outra pessoa, todos esses elementos combinados no plano moral, de modo a resultar numa ferida ainda mais sangrenta e dolorosa. Não à toa, tantas carências emocionais e explosões sentimentais. São personagens que necessitam ser amadas, e entendem que antes devem amar-se a si mesmos, ou seja, compreender sua própria essência. No quesito imperfeição de personagens vista sob um viés feminino e existencialista, O silêncio é uma espécie de prelúdio para Persona, do mesmo autor. Mas isso é subestimar as duas obras, cada uma com suas particularidades e seus muitos méritos.

Se Gunnel Lindblom (Anna) tira a calcinha molhada após ver um casal fazendo sexo selvagem ao seu lado num teatro, se Ingrid Thulin (Ester) sorri estranhamente ao constatar isso, masturba-se e tem surtos de depressão e violência, se o filho de Anna (Jörgen Lindström) flagra a mãe em cenas nada castas com um homem que não lhe parece familiar, nada importa mais que mostrar com imagens esse tráfego de sensações inconfessáveis — e não por falso pudor, mas pela ignorância de não saber se comunicar com palavras ou atitudes coerentes. O relógio faz um tique-taque irritante e (por pouco) interrupto, mas o tempo parece distorcido e os segundos desabam com a força de eternidades. Muitos séculos se passam para essas pessoas, muitas coisas ocorrem com elas, sem que com isso elas saiam da experiência mais sábias. A arquitetura do lugar aprisiona pensamentos e condiciona comportamentos, ou, mais do que isso, viabiliza reações intensas e por vezes extremas. Besteira tentar analisar verbalmente um filme assim. O clichê é mais do que verdade: Bergman disse tudo. Percebemo-nos marionetes nas mãos do sueco. Seus caminhos são muitos, as interpretações divergem, mas não há como duvidar de sua maestria e genialidade. O silêncio não deve ser ouvido nem falado, mas simplesmente visto.




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