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Que história espera seu fim lá embaixo?
Por Melody Westenra

Flicts, de Ziraldo

Ziraldo foi autor de livros que praticamente toda criança brasileira leu, de O Menino Maluquinho aos livros metonímicos sobre joelhos e bocas com nome próprio. A maioria dessas histórias é sobre alguém [ou parte desse alguém] que por algum motivo qualquer não se adequa à sociedade da qual faz parte. Todos esses personagens, de uma maneira ou de outra, são capazes de enxergar seus próprios erros, defeitos, problemas, ou o que for, e acabam se adaptando, se encaixando, se encontrando.

Flicts é provavelmente o único livro de Ziraldo em que isso não acontece. O protagonista, Flicts, termina o livro tão só e desajustado quanto como começou. E não apenas isso, o triste Flicts, em oposição a todos os personagens ziraldianos, simplesmente desiste de procurar o algo que falta para que ele seja incluso no mundo. Ele pára e some.

Flicts é a fábula sobre uma pequena e esquecida cor, que por ser feia e sem charme é desprezada por todas as outras cores do mundo. Todas! Sem uma única exceção. Flicts ou não é forte o suficiente, ou não é luminoso o suficiente, ou não é pacífico o suficiente... nem cinza o suficiente para ser a cor do dia chuvoso ele é. Flicts é uma cor que, no nosso mundo onde tudo já tem nome e significado, não serve para nada. Não representa nada.

Muito possivelmente eu devo ser a única que enxerga toda a agonia nesse livro – porque muito possivelmente eu tenha inventado essa agonia –, mas a questão é que as poucas páginas desesperançadas que nos levam pela vida de Flicts traduzem com exatidão tudo o que qualquer um que tenha se sentido – um pouquinho que seja – excluído em qualquer momento da vida experimentou. Curiosamente eu sempre fui uma garotinha esquisita, então não é estranho que goste tanto da biografia da cor-sem-graça inventada por Ziraldo.

Flicts tenta a todo custo achar seu lugar, sua função. Pede ajuda a todas as cores, viaja por todos os mundos, e só descobre, como um certo Álvaro de Campos já o havia feito, que é “estrangeiro aqui como em qualquer lugar”. Nada no mundo é Flicts, e nada no mundo quer ser Flicts.

A única solução, impreterivelmente, para Flicts, é sumir. E é o que a triste cor faz. Desaparece. Não é um desaparecimento físico, não é uma morte, porque afinal de contas, Flicts já praticamente não existia. Ninguém lembrava dele, e quando lembravam, se incomodavam. A presença de Flicts era a lembrança amarga de que sempre há em algum lugar um alguém que nós deixamos para trás propositalmente. E cada vez que Flicts tentava fazer uma incursão no universo em que as cores tinham utilidade e vida, ele era rudemente afastado, porque representava todas as sobras de um mundo onde ou você faz parte de um grupo desde sempre ou será eternamente o ‘outsider’.

O desaparecimento de Flicts é tão somente a realização, a concretização, do que todas as outras cores querem. Se elas desejam que Flicts pare de tentar fazer parte do mundo, é isso que Flicts fará.

Flicts abre mão de uma existência trivial num mundo trivial, para existir triunfante onde ninguém o alcança, mas onde será sempre admirado, mesmo que não admitidamente, mesmo que apenas por trás de outras cores mais representativas, mais poéticas e mais bonitas... Ninguém sabe a verdade (a não ser os astronautas).

“Era uma vez uma cor
muito rara e muito triste
que se chamava Flicts
(...)
Era apenas
o frágil e
feio
e aflito
Flicts
(...)
não existe no mundo
nada que seja Flicts
- nem a sua solidão -
Flicts nunca teve par
nunca teve um lugarzinho
num espaço bicolor
(e tricolor muito menos
- pois três sempre foi demais)
Não
Não existe no mundo
nada que seja Flicts

Nada que seja Flicts"




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