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CANTORAS

Por Domingos Ruiz Júnior

Dora Lopes

Cantora e compositora, Dora Lopes foi descoberta no programa de calouros de Ary Barroso, no final dos anos 1940. Gravou vários discos de 78 rotações na década seguinte e excursionou mundo afora com a orquestra de espetáculos de seu padrinho artístico. Mas Dora gostava mesmo era das noitadas, em companhia dos cantores e compositores Johnny Alf e Dolores Duran e da cantora Marisa Gata Mansa. Seu “Samba da madrugada”, composto em parceria com Carminha Mascarenhas e Herotides Nascimento, recebeu gravação antológica de Isaura Garcia e foi manifesto da boêmia dos anos 1960 e 70.

Um de seus maiores sucessos foi a marchinha “Pó-de-mico”, aquela do “foi ele, foi ele sim/foi ele que jogou o pó em mim”, escrita com Renato Araújo, Arildo de Sousa e Nilo Viana e lançada por Emilinha Borba no Carnaval de 1963.

O texto da contracapa do primeiro LP de Dora, “Enciclopédia da gíria”, adverte que “antes de mais nada, antes mesmo de ser sucesso, este é um LP documentário”. É preciso acatar a recomendação. O disco, de fato, datou-se. Certos trechos das letras são incompreensíveis. A primeira faixa, “Dicionário da gíria”, de César Cruz e Dora Lopes, tenta elencar algumas das inúmeras expressões usadas no disco, mas o dicionário não dá conta da enciclopédia. “Você que é soçaite na língua do povo/tem que morar no assunto, tem que ter vivacidade/porque o papo lá do morro/é diferente da cidade”, anuncia a voz rouca de Dora, mesclando a malandragem do samba de breque de Moreira da Silva com o balanço do samba de boate de Miltinho.

Não se sabe o ano em que o disco foi lançado. 1957 ou 1959? Se a data for 1959, o álbum encontra a bossa nova a pleno vapor, criticando-a com o salamaleque da linguagem do morro e tributando-a com a ausência de formalismos nos arranjos, na interpretação de Dora e, sobretudo, nas letras. Mas, se o disco tiver sido lançado em 1957, é antecessor da bossa nova de João Gilberto, Roberto Menescal e Tom Jobim. E isso não é brinquedo, não.

“Galã continental”, parceria da compositora com Franco Ferreira, é bossa nova da melhor estirpe. Ela diz cantando, sem qualquer afetação: “Você não é batom para estar em tudo quanto é boca.” É samba também – e bossa nova – a “Nega Odete” (Dora Lopes/Aldacyr Louro), “o assunto do dia, de boca em boca”, aquela que tem pinta de vedete.

Única faixa do disco composta apenas por Dora Lopes, “Tostão não tem troco” é surpreendente, seja pela divisão joãogilbertiana, seja pelo charmoso “scat singing” de Dora. À letra, impagável: “Você pode ir embora, porque você é quadrado/é melhor ir dando o fora, você não casa com meu sincopado/você é todo na pauta, eu sou improviso, eu sou bossa nova/você é muito implicante, o meu beijo é dissonante.”

Cabe ainda sátira ao rock, com “Falso cabrito” (Dora Lopes/Franco Ferreira). Depois de uma breve introdução em ritmo de “boogie-woogie”, com direito a gritinhos à la Little Richards, Dora ordena: “Hei, neca! Pára! Neca de transviado, neca de rock’n roll. Ah, nada disso. Isso tudo é araque. O negócio, meu chapa, é telecoteco. Aí, morô? Legal. Vamos nós!”, para sentenciar que “agora, meu chapa, neca de grito, porque quem gosta de broto é cabrito”.

“Diploma de otário (Dora Lopes/Ary Monteiro) e “Ninando muriçoca” (Ary Monteiro/Zeca do Pandeiro) encerram o disco, sem deixar cair a verve e o suingue de Dora, que enfim sucumbiram no seu terceiro e último disco, “Testamento” (RGE-Som Livre/1974). O texto da contracapa, escrito pelo produtor do LP, já anuncia que este pode não ser o melhor disco de Dora Lopes, e certamente não o é. Registrado no início da derrocada artística sofrida pela gravadora paulistana RGE, o álbum tem como tema a morte – o crítico Tárik de Souza, ao comentar o disco, comparou a compositora a um Nelson Cavaquinho de saias - e conta com a hedonista “Se eu morrer amanhã, tá tudo certo” e a melancólica “Ponto de encontro”, na qual Dora enumera o panteão de sambistas que a espera no céu, além da regravação de seu maior sucesso, “Samba da madrugada”.

Ouça Tostão não tem troco (http://www.mediafire.com/?4g0x3dmzzcn) e Falso cabrito (http://www.mediafire.com/?fnbvblkdi9r)



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