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Cyrano

Por Filipe Chamy

Cyrano
Direção: Jean-Paul Rappeneau
Cyrano de Bergerac, França, 1990.

Cyrano de Bergerac é um sujeito conhecido na França por seu nariz descomunal. Mas não apenas por isso: é um exímio esgrimista e um poeta talentosíssimo. É a representação da dubiedade, já que une a força física com a do intelecto. E quem melhor para interpretá-lo do que Gérard Depardieu, com seu corpanzil ameaçador e voz terna, seus modos bruscos e o jeito inocente (que o tornaria o Obélix ideal)? Este é o diferencial do filme de Jean-Paul Rappeneau, cineasta competente e que apresenta a provavelmente melhor versão cinematográfica da peça de Edmond Rostand. Se em outras adaptações o teatro fazia-se empecilho, aqui a mise en scène é desenvolvida de modo a aproveitar os aspectos surreais da obra original: por exemplo, um duelo ao ar livre regado a poesia improvisada e piadas velozes acerca do inacreditável nariz do protagonista.

Cyrano ama Roxane (Anne Brochet), sua prima. Sente vergonha de seu nariz e imagina (com certa razão) que a moça nunca teria interesse amoroso por alguém com uma característica tão ímpar. Chega a ter esperanças, mas descobre que ela gosta de um certo Christian de Neuvillette (Vincent Perez), um cadete engajado na companhia que o próprio Cyrano comandará (em uma das inúmeras guerras francesas). Chega a ser comovente a gigantesca gentileza do personagem narigudo: sacrifica-se pela amada e ele mesmo sugere a Christian cortejar Roxane através de seus versos — já que a fútil donzela só quer saber de lirismo, pouco se importando com emoções “reais”; seu pretendente não sabe lidar com a palavra e tem a sensibilidade de um soldado (o que é uma contradição em termos). Roxane representa a incoerência de quem gosta de afirmar-se: pensa respirar arte e que só lá há a verdade, mas não percebe os sentimentos do primo e não entende significados (ou significância) atrás das palavras. Não ama o físico de Christian, e sim a alma de poeta: mas ela é de Cyrano. Portanto, o amor divide-se entre o ideal, incorpóreo, etéreo (versos de Cyrano) e o terreno, carnal, tangível (Christian). Todos os personagens apresentam imagens que não são as suas íntimas, ninguém é culpado e portanto ninguém é inocente. É um acúmulo de enganos e talvez excesso de sinceridade e até altruísmo. As pessoas querem agir como são e por isso mesmo estão erradas, ainda mais quando se trata de relações sociais — é preciso sempre contextualizar intenções e ações.

Mas a verdade é que o próprio Cyrano sofre de uma insegurança extrema. Nesse sentido, reitero a afirmação da ótima escolha de Depardieu para o papel: um homem de aparência arrogante e estúpida, mas bastante doce e quase infantil, sempre escondendo seus traumas através de humor ferino, poesia rápida e de métrica impecável. É um artista escapista por excelência: a escrita lhe é um refúgio, e ele se expressa maravilhosamente apenas nessa área; acovarda-se ante decisões sentimentais e o peso de uma possível derrota — perde o amor de Roxane sem lutar de verdade. Seus versos transbordam sentimentos e às vezes seus olhos transbordam lágrimas (nas cartas que escreve para a prima, em nome de Christian). Quando a moça vai conhecer a guerra, quase descobre a identidade de seu amor, e Cyrano mais uma vez se sacrifica, por respeito e lealdade ao agonizante cadete (que nunca foi tão leal com Cyrano).

Quase todas as adaptações de Cyrano pecam por serem excessivamente teatrais; não que Rappeneau tenha operado um milagre e modificado todo o espírito da peça — que é muito bonita —; mas aqui, talvez por ser adaptação de um francês (e roteiro de Jean-Claude Carrière!), o humor e a encenação são tão mais livres, tão naturais, tão compreensíveis, que a farsa é humana e delicada, trágica e delirante, bastante ágil e colorida.

E disso tudo tiramos o óbvio: em guerras do coração, é melhor não meter o nariz.




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