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Ingmar Bergman Descobre o Grande Segredo

Por Filipe Chamy

Se há alguma dúvida sobre a personalidade de Ingmar Bergman, é porque seus filmes não foram vistos com a devida atenção. Nem o mais autobiográfico dos cineastas chegou a um nível de tamanho desprendimento com o orgulho, a ponto de desnudar diante da tela todas as suas neuroses, loucuras e demônios internos — ao menos não com tanto brilhantismo como o diretor sueco.

Bergman nasceu em 1918, em Uppsala. Desde jovem gostava de teatro e filosofia. Por ser filho de pastor, cresceu ameaçado pela fé, e mais tarde exorcizará em suas obras alguns de seus traumas religiosos. Após trabalhar em pequenas ocupações teatrais, o jovem Ingmar arrisca-se e escreve peças: é a época de Morte de Kasper, vinda à luz em 1941. Daí, entra modestamente na sétima arte: corrige roteiros de diretores infinitamente menos dotados que ele. Numa ocasião, não só conserta um roteiro como o reescreve inteiramente. Transformado em filme, o roteiro prova que Bergman é um jovem de potencial e visão. O filme é Hets, de 1944, e Ingmar ainda dirige os momentos finais. Com isso, teve a grande chance de sua vida: a oportunidade de dirigir e roteirizar um filme. Nasce Crise, a primeira criação legítima de Ingmar Bergman.

Mas o caminho à glória não foi fácil. O filme não foi bem recebido e o ainda inexperiente diretor encontrou muita hostilidade, quase abandonando prematuramente a carreira. Com muita paciência, vontade e inteligência (quem sabe sorte?), segue trabalhando e parindo fitas como Um barco para a Índia, Música na noite e Prisão. Já vinha despertando a admiração dos cinéfilos e o apoio da crítica, mas a aclamação geral e internacional veio apenas na década de 1950. Seus filmes dessa época estão entre os mais importantes que realizou — e os mais importantes da Suécia —: Monika e o desejo, Noites de circo, Sonhos de mulheres, Sorrisos de uma noite de amor... suas obras vinham permeadas de profunda insatisfação com a sociedade e a vida, vivo desejo de mudanças, apaixonados testemunhos de amor ao cinema e às mulheres. Destacam-se duas atrizes nesse período: Eva Dahlbeck (a loura de porte atrevido e expressão sofrida, forte) e Harriet Andersson (a linda moça, tentação carnal e espiritual, inocente e sexual) — e um ator, Gunnar Björnstrand, talvez o mais menosprezado de seu país. Cabe aqui falar do amor de Bergman por suas atrizes, seus atores e seus personagens. Talvez seja impróprio dizer que Ingmar Bergman dirigia atores; ele os observava e guiava como a si mesmo. Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Gunnel Lindblom, Max von Sydow, suas máscaras são suas nuances. Seus intérpretes são representações de seus sonhos, memórias e pensamentos. Trabalhava muito com as mesmas pessoas, desenvolvia dinâmicas excepcionais com amigos, conhecidos, afetos, ídolos. Era uma pessoa de difícil convivência (para quem conhece um mínimo de sua obra, é a coisa mais perceptível), caráter complexo, um enigma. Mas ainda assim é possível encontrar algo de humano nesse artista tão colossal, nesse questionador tão incisivo, nesse cérebro tão poderoso. Admirador de Victor Sjöström (com quem trabalhou mais de uma vez), Charles Chaplin (com quem se encontrou), Tarkovski (que foi influenciado por ele!), Truffaut, Fellini, Bergman às vezes chocava com suas opiniões francas e livres: criticava abertamente Welles, Antonioni, Godard.

Após vários prêmios mundo afora, o mestre sueco começa a sua fase mais conhecida, vista e estudada: em 1957 é autor de nada menos que dois dos melhores filmes da história do cinema: Morangos silvestres e O sétimo selo. Não vou me deter nestas duas obras-primas, apenas porque Bergman estava em uma maravilhosa “rotina” de genialidade. Foram anos de diamante, em que tudo reluzia e fascinava. No limar da vida, A fonte da donzela, Através de um espelho, Luz de inverno, O silêncio [sobre o qual escrevi para a Zingu! 11, um texto produzido poucos dias antes da notícia de sua morte]... não havia nada que ele tocasse que não beirasse a perfeição. Perfeição alcançada finalmente com Persona, o ápice técnico e narrativo de seu cinema. É uma opinião (e, como toda opinião,) discutível, ainda mais porque dois anos depois, em 1968, ele lançaria A hora do lobo, impressionante retrato da insânia, obsessão, medo, morte: todos os seus temas mais caros estão ali retratados, com o auxílio necessário do grande Sven Nykvist, para muitos o melhor fotógrafo do cinema. A figura trágica de Liv Ullmann ganha projeção e reconhecimento.

E quem achava que Ingmar Bergman deixaria de surpreender se enganou. Não se acomodou; parecia mais atormentado do que nunca, e o que talvez não fosse bom para seus íntimos era fantástico para os observadores entusiasmados de sua arte. Depois de uma passagem frustrada pelos EUA — em que chegou a trabalhar —, o sueco apresenta, no início da década de 1970, uma obra fulminante e que ainda hoje é uma das provas da intensidade que o cinema pode alcançar: Gritos e sussuros retoma as dúvidas metafísicas de um homem que inegavelmente ama a morte, apesar de temê-la sinceramente. Triste, honesto, duro (até cruel), Gritos e sussuros foi um inesperado sucesso no mundo inteiro, que vinha esnobando Bergman há algum tempo.

Em 1973, dirige para a TV (algo freqüente para ele) o sublime Cenas de um casamento. Possivelmente o momento de maior atração das personagens sobre Bergman. O casal central, Johan (Erland Josephson, fantástico e recorrente parceiro) e Marianne (Liv), vive uma história de uma vida, em cerca de cinco horas de projeção. O filme foi adaptado para o cinema, perdendo um bom pedaço de sua duração. Mas aqui o que interessa é a imensa gama de sentimentos que o diretor sueco imprimiu nas gentes de seu filme. Johan e Marianne são extremamente reais, o espectador sente por eles o que sente por pessoas que conhece, eles são palpáveis, tridimensionais, críveis. E não apenas eles; Peter e Katarina, o casal que janta com eles certa feita, têm a sua vez também: foram retomados em Da vida das marionetes, um dos pontos mais pesados de toda a filmografia bergmaniana. Johan e Marianne também teriam a sua chance de retorno: trinta anos depois reaparecem em Saraband, último filme de Ingmar Bergman, falecido aos oitenta e nove anos em 30 de julho de 2007. Todos já esperavam a sua morte, devido a conhecidos problemas de saúde (e a avançada idade) — mas ninguém conseguiu se conformar de imediato com o seu falecimento. Aquele ser tão brilhante, de sensibilidade ímpar, capaz de emocionar tanto com uma adaptação de Mozart (A flauta mágica) como com um desabafo nostálgico de sua infância (Fanny e Alexander), aquele cineasta que alcançou todo tipo de competência almejada em seu ramo, que foi copiado, citado, elogiado (dificilmente criticado), aquele homem tão profundo, ao mesmo tempo tão sereno e tão verdadeiro, aquele sinônimo de cinema, deixou de respirar no mesmo dia em que Michelangelo Antonioni — mas a dor de sua ausência esteve muito mais presente no peito do mundo. As peças que fazia, os filmes aos quais se dedicava febrilmente, as mulheres que louvou, os homens que feminilizou (sim, seus homens são mulheres, com fobias, mentes e ações femininas), as cenas incríveis que construiu, as frases magníficas que escreveu, os roteiros (até de filmes que não dirigiu), os diálogos, a presença. Sua vida foi inteira um dedicar-se ao que há de belo no feio, ou seja, exteriorizar (até liricamente) coisas horrendas e nefastas da alma humana. Na vida pessoal, casou mais de uma vez, teve filhos, enfrentou inúmeros problemas psicológicos e familiares, amou, chorou, teve tantas vidas dentro de si que é impossível pensar em uma jornada tão completa. E esse homem, que entendeu a dor e a cor dos relacionamentos, a crueldade e a paixão da passagem terrena, a vida em todas as suas ocorrências, enfim, agora descobriu o grande segredo da existência e transcendeu-se.

Filmografia completa de Ingmar Bergman (como diretor):

2003 - Saraband (TV)
2000 - Bildmakarna (TV) (Os construtores de imagens)
1997 - Larmar och gör sig till (TV) (Na presença de um palhaço)
1995 - Sista skriket (TV)
1993 - Backanterna (TV)
1992 - Markisinnan de Sade (TV)
1986 - Två saliga, De (TV)
1986 - Dokument Fanny och Alexander (Documentário sobre Fanny e Alexander)
1984 - Efter repetitionen (Depois do ensaio)
1984 - Karins ansikte(O rosto de Karin)
1983 - Hustruskolan (TV)
1982 - Fanny och Alexander (Fanny e Alexander)
1980 - Aus dem Leben der Marionetten (Da vida das marionetes)
1979 - Farödokument 1979
1978 - Höstsonaten (Sonata de outono)
1977 - Das Schlangenei (O ovo da serpente)
1976 - Ansikte mot ansikte (Face a face)
1975 - Trollflöjten (A flauta mágica )
1974 - Misantropen (TV)
1973 - Scener ur ett Äktenskap (Cenas de um casamento)
1972 - Viskningar och rop (Gritos e sussurros)
1971 - Beröringen (A hora do amor)
1970 - Farödokument 1969
1969 - Ritten (O rito)
1969 - En passion (A paixão de Ana)
1968 - Skammen (Vergonha)
1968 - Vargtimmen (A hora do lobo)
1967 - Stimulantia [segmento Daniel]
1966 - Persona (Quando duas mulheres pecam)
1965 - Don Juan (TV)
1964 - For att inte tala om alla dessa kvinnor (Para não falar de todas essas mulheres)
1963 - Tystnaden (O silêncio)
1963 - Drömspel, Ett (TV)
1962 - Nattvardsgästerna (Luz de inverno)
1961 - Sason I em spegel (Através de um espelho)
1960 - Djavulens oga (O olho do diabo)
1960 - Jungfrukällan (A fonte da donzela)
1960 - Oväder (TV)
1958 - Ansiktet (O rosto)
1958 - Rabies (TV)
1958 - Nära livet (No limiar da vida)
1958 - Venetianskan (1958) (TV)
1957 - Smultronstallet (Morangos silvestres)
1957 - Herr Sleeman kommer (TV)
1957 - Det sjunde inseglet (O sétimo selo)
1957 - Bakomfilm smultronstället
1955 - Sommarnattens leende (Sorrisos de uma noite de amor)
1955 - Kvinnodröm (Sonhos de mulheres)
1954 - En lektion I kärlek (Uma lição de amor)
1953 - Gycklarnas afton (Noites de circo)
1952 - Sommaren med Monika (Monika e o desejo)
1952 - Kvinnors väntan (Quando as mulheres esperam)
1951 - Sommarlek (Juventude, divino tesouro)
1950 - Sant händer inte här (Isto não aconteceria aqui)
1950 - Till glädje (Rumo à felicidade)
1949 - Torst (Sede de paixões)
1949 - Fängelse (Prisão)
1948 - Hamnstad (Porto)
1948 - Musik I moker (Música na noite)
1947 - Skepp till India land (Um barco para a Índia)
1946 - Det regnar pa var kärlek (Chove em nosso amor)
1946 - Kris (Crise)

Filmografia completa de Ingmar Bergman (como roteirista [títulos originais]):

Bergmanova sonata (2005) (TV) [peça]
Saraband (2003) (TV)
Persona (2002) (V)
Trolösa (2000)
Larmar och gör sig till (1997) (TV)
Enskilda samtal (1996) (TV)
Sista skriket (1995) (TV) [também a peça]
Söndagsbarn (1992)
Den goda viljan (1992)
Markisinnan de Sade (1992) (TV)
"Den goda viljan " (1991) [minissérie para a TV]
A little night music (1990) (TV) [roteiro Sommarnattens leende]
Dokument Fanny och Alexander (1986)
Efter repetitionen (1984) (TV)
Karins ansikte (1984)
Fanny och Alexander (1982)
Aus dem leben der marionetten (1980)
Höstsonaten (1978)
A little night music (1978) [roteiro Sommarnattens leende]
The serpent's egg (1977)
Ansikte mot ansikte (1976)
Trollflöjten (1975) (TV) [adaptação]
Scener ur ett äktenskap (1973)
The lie (1973) (TV)
Viskningar och rop (1972)
Beröringen (1971)
"Play for Today" [Um episódio (TV) - The lie (1970)]
Reservatet (1970) (TV)
En passion (1969)
Riten (1969) (TV)
Skammen (1968)
Vargtimmen (1968)
Stimulantia (1967)
Persona (1966)
För att inte tala om alla dessa kvinnor (1964)
Tystnaden (1963)
Trämålning (1963) (TV)
Nattvardsgästerna (1962)
Lustgården (1961)
Såsom i en spegel (1961)
Djävulens öga (1960)
Ansiktet (1958)
Nära livet (1958)
Smultronstället (1957)
Nattens ljus (1957)
De sjunde inseglet (1957) [também a peça Trämålning]
Sista paret ut (1956)
Sommarnattens leende (1955)
Kvinnodröm (1955)
En lektion i kärlek (1954)
Gycklarnas afton (1953)
Sommaren med Monika (1953)
Kvinnors väntan (1952)
Frånskild (1951)
Sommarlek (1951)
Medan staden sover (1950) [sinopse]
Till glädje (1950)
Fängelse (1949)
Eva (1948) [também a história Trumpetaren och Vår Herre]
Hamnstad (1948)
Musik i mörker (1948)
Skepp till India land (1947)
Kvinna utan ansikte (1947)
Det regnar på vår kärlek (1946)
Kris (1946)
Hets (1944)



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